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Resumo

Atrav´es de uma etnografia multilocalizada percorri os trajetos transna- cionais de um grupo de 26 jovens migrantes entre Lisboa (Portugal) e Mantena (Minas Gerais), cuja particularidade se prende ao fato de terem experenciado uma migra¸c˜ao internacional autˆonoma entre os 18 e 20 anos. Nesta comunica¸c˜ao, apresentarei algumas reflex˜oes iniciais sobre a forma como as categorias de diferencia¸c˜ao: classe, cor da pele, etnicidade, gera¸c˜ao e nacionalidade entretecidas com o gˆenero, s˜ao articuladas pelos jovens nos locais de origem e de destino, configurando as suas experiˆencias e seus posicionamentos identit´arios. Atrav´es da observa¸c˜ao dos processos e momentos em que s˜ao articulados estes marcadores de diferen¸ca e da an´alise dos itiner´arios sociais dos jovens procurarei discutir duas princi- pais quest˜oes: Quando e de que forma a migra¸c˜ao internacional emerge como alternativa de reprodu¸c˜ao social? E em que medida migra¸c˜ao na juventude altera os padr˜oes locais e regionais na transi¸c˜ao para a vida adulta?

Palavras-chave: jovens; imigra¸c˜ao brasileira; etnografia; diferen- cia¸c˜ao; itiner´arios sociais.

Introdu¸c˜ao: notas te´oricas e metodol´ogicas

A partir de pesquisas explorat´orias identifiquei um grupo de aproximadamente 26 jovens oriundos do interior de Minas Gerais que vivem em Portugal ou

j´a viveram anteriormente – um fluxo migrat´orio espec´ıfico que denominei como Mantena-Cac´em. A descoberta deste fluxo marcado por redes migrat´orias bas- tante consolidadas e de um grupo cuja particularidade ´e a de terem experenciado uma migra¸c˜ao internacional autˆonoma, entre os 18 e 20 anos, que n˜ao fazem parte de reagrupamentos familiares,1mas que n˜ao ´e necessariamente um projeto

exclusivamente individualizado, mas parte tamb´em de uma estrat´egia familiar de reprodu¸c˜ao social, marcou a minha decis˜ao em relacionar as tem´aticas sobre

CRIA – Centro em Rede de Investiga¸c˜ao em Antropologia/IUL: k tognilisboa@gmail.com 1 Reagrupamento familiar ´e um processo que diz respeito `a migra¸c˜ao de alguns membros

da fam´ılia, no sentido de se juntarem aos familiares j´a instalados num novo pa´ıs ou regi˜ao (Fonseca,2005, p. 14).

juventude e migra¸c˜oes internacionais.

Geisen(2010) aponta para o fato de que ainda que a migra¸c˜ao tenha se tor- nado um importante recurso biogr´afico na transi¸c˜ao para a vida adulta, os jovens migrantes tˆem sido completamente ignorados nos estudos sobre as migra¸c˜oes, ou s˜ao apenas notados em seus pap´eis desempenhados no reagrupamento familiar dos pais. De acordo com o autor, s˜ao no campo de estudos sobre a juventude que tem sido desenvolvido pesquisas sobre estes deslocamentos (ver Cox 2009; Hoerder et al., 2005).

interesse p´ublico e acadˆemico sobre jovens migrantes ora percebidos como potenciais trabalhadores com d´eficits educacionais (Hoerder et al., 2005; ver tamb´em OCDE, 2006), ou como um problema social associados aos bairros

perif´ericos habitados por um grande n´umero de migrantes.2 Em Portugal, o

imagin´ario Arrast˜ao na Praia de Carcavelos3 e a pseudo-cria¸c˜ao do PCP –

Primeiro Comando de Portugal s˜ao alguns exemplos de estigmatiza¸c˜ao e asso- cia¸c˜ao dos jovens migrantes `a delinquˆencia e ao desvio.

Primeiro Comando de Portugal (PCP). O clone do Primeiro Co-

mando da Capital, fundado nos anos noventa por um grupo de pri- sioneiros de S˜ao Paulo, instalou-se na margem sul de Lisboa. ´E composto por jovens provenientes das favelas brasileiras, para quem a violˆencia ´e um modo de vida. Tˆem hino no YouTube e agregam-se na internet, onde mostram alguns dos produtos do crime. Desafiam as autoridades e congregam o gosto pelas armas.4

Em janeiro de 2010, conheci Sheila, 23 anos, natural de Mantena (Minas Gerais) e que vive em Portugal h´a quatro anos. Foi atrav´es dela que conheci os outros jovens. Sheila tem dois irm˜aos, Wellington (28 anos) e Beto (26 anos). Na ´epoca em que decidiu imigrar para Portugal os dois j´a estavam no Cac´em. Wellington imigrou primeiro, quando tinha 20 anos. Posteriormente, veio Beto que permaneceu dois anos e j´a regressou ao Brasil. Al´em dos irm˜aos, Maicon, vizinho de Sheila, seu primo Jonas e a amiga Camila tamb´em vieram para Por- tugal.

´

E a partir da trajet´oria social e biogr´afica destes jovens e de suas experiˆencias migrat´orias que irei debater as rela¸c˜oes entre migra¸c˜ao internacional, juventude e reprodu¸c˜ao social, orientada pela proposta de Machado (2002) que aponta para a necessidade de dar uma particular aten¸c˜ao `a classe nos estudos sobre as rela¸c˜oes ´etnicas e raciais nos contextos migrat´orios, desconstruindo certo

2 Em Portugal, o imagin´arioArrast˜aona Praia de Carcavelos e as in´umeras not´ıcias

que associam criminalidade, migra¸c˜oes e nacionalidade s˜ao exemplos de estigmatiza¸c˜ao e as- socia¸c˜ao dos jovens migrantes `a delinquˆencia e ao desvio.

3 Para uma an´alise sobre oArrast˜aoem Carcavelos praticado por jovens dos bairros

considerados problem´aticos de Lisboa, ver Almeida (2007) e Carvalheiro (2008).

4 Dispon´ıvel em http://www.cmjornal.xl.pt/Noticia.aspx?

channelid=00000181-0000-0000-0000-000000000181&contentid=

B075BC4B-986E-4F98-97E3-B11916DD7676, consultada pela ´ultima vez em 1 de junho de 2012.

Figura 1: Foto exibida no jornal em 2008. M´afia das favelas entra em Portu-

gal

etnocentrismo ao mascarar o fato de quequalquer minoria tem sempre algum

grau de diferencia¸c˜ao do ponto de vista dos lugares de classe dos seus mem- bros. (2002, p. 39)

Utilizarei o termo juventude como processo, socialmente definido, e a ex- periˆencia et´aria como algo relacional e performativo (Debert e Goldstein,2000), ponderando a experiˆencia migrat´oria na juventude n˜ao somente como um fenˆo- meno meramente geracional - `a medida que se articula a in´umeras outras cate- gorias de diferencia¸c˜ao como classe, origem regional, nacionalidade,ra¸cacor

da pele e gˆenero, mas que desempenha um papel decisivo na gest˜ao de projetos migrat´orios, possibilitando motiva¸c˜oes e experiˆencias distintas quando compara- das com processos migrat´orios em diferentes fases da vida.5

A possibilidade de trabalhar com jovens oriundos de um mesmo contexto – uma cidade de pequeno porte – e que vivem num mesmo espa¸co na sociedade de destino poder´a trazer contribui¸c˜oes anal´ıticas distintas da literatura produzida sobre a imigra¸c˜ao brasileira em Portugal, assim como novos elementos para a discuss˜ao sobre juventude e a reprodu¸c˜ao social no Brasil. Como estrat´egia metodol´ogica realizei uma etnografia multilocalizada (Marcus, 1996)6 nos con-

5 A antropologia, ainda que n˜ao tenha se concentrado em todos os momentos sobre o estudo

dos jovens, j´a na antropologia da primeira metade do s´eculo XX, a monografia pioneira de Mead (1928), Coming of age in Samoa, e a etnografia de Malinowski (1929), The sexual life of savages in North-western Melanesia, desempenharam, sem d´uvida, um importante papel na defini¸c˜ao da adolescˆencia como um t´opico crucial de investiga¸c˜ao antropol´ogica e consequentemente, as quest˜oes associadas a este est´agio de vida - rituais de inicia¸c˜ao, pr´aticas sexuais-afetivas e rela¸c˜oes intergeracionais. No que se refere `as sociedades ditascomplexas, para alguns autores comoFeixa(1994) eWulff(1995) foi Parsons ([1942] 1964) atrav´es de sua an´alise estrutural-funcionalista de jovens de classe m´edia em escolas secund´arias nos EUA que legitimou academicamente o surgimento de uma supostacultura juvenil. Fundamentada na ideia de umanova consciˆencia geracional, na qual indiv´ıduos pertencentes `a determinada fase de vida compartilhavam um conjunto de cren¸cas, valores, s´ımbolos, normas e pr´aticas, a

cultura juvenilfoi analisada como um todo homogˆeneo (Feixa,1994, p. 54), que promoveria como resultado rela¸c˜oes de solidariedade baseadas emvalores universais.

6 Marcusafirma quetalvez sejam necess´arias formas inovadoras de etnografia multilocal

textos de origem e de destino destes jovens com a finalidade de percorrer os seus trajetos transnacionais entre Lisboa (Portugal) e Minas Gerais, compa- rando analiticamente a forma como as categorias de diferencia¸c˜ao – classe, cor da pele/ra¸ca, gera¸c˜ao e nacionalidade – entretecidas com o gˆenero, s˜ao ar-

ticuladas pelos jovens nos locais de origem e de destino, configurando as suas experiˆencias.

Pretendi analisar as migra¸c˜oes internacionais dentro do paradigma proposto porSayadde queo imigrante antes de “nascer” para a imigra¸c˜ao, ´e primeiro um

emigrante(1998, p. 18), o que torna imprescind´ıvel compreender os conte´udos

simb´olicos e materiais dos deslocamentos em sua rela¸c˜ao dial´ogica: sociedades de origem e de destino. Mais do que um pressuposto ou inova¸c˜ao metodol´ogica,7o

fato da etnografia percorrer os trajetos transnacionais dos jovens migrantes demonstra uma preocupa¸c˜ao igualmente epistemol´ogica na medida em que im- plica refletir sobre sujeitos que vivem dentro de campos sociais transnacionais, expostos a um conjunto de expectativas sociais, valores culturais e padr˜oes de intera¸c˜ao humana que s˜ao compartilhados em mais de um sistema social, econˆomico e pol´ıtico (Velasco,1998).

O in´ıcio da etnografia se deu no Cac´em, local de destino dos jovens. Con- siderado uma regi˜ao perif´erica da Grande Lisboa, a reputa¸c˜ao de periferia do

bairro est´a associada `a distˆancia das ´areas mais centrais e igualmente por

uma segrega¸c˜ao espacial ´etnica. A maioria das pessoas que habitam o Cac´em ´e oriunda da ´Africa portuguesa – Angola, Guin´e Bissau e Cabo Verde – e, mais recentemente, do Brasil.8 Durante cinco meses realizei trabalho de campo no Cac´em, acompanhando os itiner´arios destes jovens atrav´es da realiza¸c˜ao de observa¸c˜oes e entrevistas em profundidade nos espa¸cos de moradia e de socia- bilidade (festas e almo¸cos, bailes funks, caf´es e discotecas brasileiras).

Atrav´es da consolida¸c˜ao de uma rela¸c˜ao de confian¸ca, efetuei trabalho de campo no Brasil durante seis meses. Tive a possibilidade de me hospedar nas casas das fam´ılias de alguns dos jovens pesquisados em Portugal e vivenciar seu cotidiano, permitindo perceber a maneira como viviam no Brasil antes da migra¸c˜ao. A cidade onde a maioria dos jovens vivia ´e Mantena, localizada no leste de Minas a 460 km de Belo Horizonte, uma zona de fronteira entre os estados de Minas Gerais e Esp´ırito Santo. A etnografia foi realizada em dois cen´arios privilegiados: o Bairro dos Oper´arios (Morro do Margoso) e a zona rural de Cachoeirinha de Ita´unas, localizada a 12 km de Mantena, por se configurarem como zonas marcadas por redes migrat´orias bastante consoli-

constituem mundos regionais ou locais. (Marcus,1996, pp. 94-95)

7 As etnografias multissituadas tˆem sido realizadas desde o in´ıcio da d´ecada de 1990, sendo

o trabalho de Gramusck, S. e Pessar, P. (1991)Between Two Islands: Dominican Interna- cional Migration, uma importante referˆencia. No que se refere `a imigra¸c˜ao brasileira, temos as investiga¸c˜oes deAssis(2004) (2011),De Crici´uma para o mundo: rearranjos familiares e de gˆenero nas vivˆencias dos novos imigrantes brasileiros, e o trabalho dePiscitelli(2008a;

2008b) que tem realizado suas an´alises sobre gˆenero, sexualidade e migra¸c˜oes baseada em etno- grafias nos locais de origem e de destino de mulheres migrantes, acompanhando os trˆansitos e as redes migrat´orias na It´alia e na Espanha.

8 Para uma discuss˜ao sobre os bairros perif´ericos da Grande Lisboa e os jovensluso-

africanos ou de 2a gera¸c˜ao, ver (Machado,2002; 1994) e Rosales, Cantinho e Parra

dadas, sendo vis´ıvel a altera¸c˜ao no espa¸co com a verticaliza¸c˜ao das moradias, as chamadas casas modernas, pelo n´umero crescente de agˆencias de viagem

na cidade, como tamb´em pelo fato de que a grande maioria das pessoas possui um familiar, amigo ou conhecido que reside ou j´a residiram em Portugal ou nos EUA.9

De volta a Portugal, continuei a etnografia no Cac´em (outubro de 2010 a junho de 2011). ´E relevante ressaltar que a maioria destes jovens est˜ao em Portugal de 3 a 7 anos e nunca regressaram ao Brasil. Portanto, minha per- manˆencia na casa das suas fam´ılias foi fundamental para um estreitamento na rela¸c˜ao pesquisador-pesquisado. As redes virtuais – sobretudo ferramentas como o Messenger e Orkut – ocuparam um lugar metodol´ogico importante em todos os passos da pesquisa. Inicialmente para o estabelecimento de contatos com jovens migrantes e por permitirem um continuum entre os trabalhos de campo no Brasil e em Portugal, possibilitando di´alogos com os jovens tanto na origem como no destino. Ap´os este per´ıodo permaneci em Mantena por mais dois meses (julho e agosto de 2011), finalizando a etnografia em abril de 2012, no Cac´em.

Atrav´es da observa¸c˜ao dos processos e momentos em que s˜ao articulados os marcadores de diferen¸ca e da an´alise das trajet´orias e itiner´arios sociais dos jovens, a comunica¸c˜ao procurar´a debater, ainda que de maneira preliminar: quando e de que forma a migra¸c˜ao internacional emerge como possibilidade (al- ternativa) de reprodu¸c˜ao social? Se a migra¸c˜ao na juventude altera os padr˜oes locais e regionais na transi¸c˜ao para a vida adulta; e por fim, quais s˜ao os sig- nificados de serjovem no Cac´em e jovem em Mantena?

Sociografias de origem

Torna-se fundamental enquadrar socialmente os jovens migrantes e os que permaneceram nos locais de origem, relacionando-os com alguns indicadores so- ciais sobre a juventude no Brasil. A maioria dos jovens se autoidentificam como negros e vivem/viviam em cidades de pequeno porte e em zonas consideradas rurais do interior de Minas Gerais. Possui baixa escolaridade, menor entre os rapazes (4o ao 8oano do ensino fundamental). As meninas possuem em grande

parte o 8o ano completo do ensino fundamental e algumas o 1o e 2o ano do

ensino m´edio.

A maioria dos jovens desempenha/desempenhava atividades laborais na ´area de limpeza e servi¸cos dom´esticos, no caso das meninas, e na constru¸c˜ao civil, plantio e colheita de caf´e e corte de eucaliptos no caso dos rapazes. N˜ao ´e evi- dente uma mobilidade laboral ainda que se verifique uma mobilidade econˆomica. Sheila, tomava conta de menino e recebia por mˆes R$ 150 reais em 2007,

´epoca em que migrou, com 19 anos. Atualmente, trabalha como faxineira de segunda a sexta-feira em trˆes casas de fam´ılia e recebe 700 euros.

Em Mantena, a informalidade ´e uma marca que define estes trabalhos,

9 Desde a d´ecada de 1960, a cidade de Governador Valadares ´e associada a um fluxo

populacional direcionado para os Estados Unidos. Para an´alises socioantropol´ogicas sobre esse fluxo, verAssis(2004) e Siqueira (2009).

al´em da inerente sazonalidade. Assim, os jovens que fazem parte desta etno- grafia, como a grande maioria da popula¸c˜ao jovem brasileira empobrecida, pos- suem/possu´ıam n´ıveis de escolaridade bastante baixos, trabalhos prec´arios ou o desemprego como realidade cotidiana (Dayrell, 2000, p. 8). Ainda que seja impreciso definir os jovens como oriundos declasses populares, pois defini-la

apenas segundo crit´erios socioeconˆomicos e de ocupa¸c˜ao poderia ser problem´a- tico, algumas semelhan¸cas de ethos e vis˜oes de mundo e as motiva¸c˜oes para a imigra¸c˜ao vinculadas `as suas trajet´orias foram observadas, sobretudo no que se refere `a ideia de mobilidade social e dos valores a eles associados.

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Juventude, migra¸c˜oes e territ´orio

No momento em que a cidade tornou-se um locus privilegiado de an´alise, na chamada sociologia urbana desenvolvida pela Escola de Chicago, os jovens ressurgem enquanto categoria de an´alise consider´avel. O contexto anglo-saxˆonico do in´ıcio do s´eculo XX poderia ser considerado um caso t´ıpico de melting pot, onde diversas etnias, culturas e conflitos emergiam nos EUA, consequˆencia do r´apido crescimento urbano e dos fluxos migrat´orios originados de zonas rurais da Am´erica do Norte como tamb´em de pa´ıses considerados pobres na Europa (It´alia, Irlanda e Polˆonia). Atrav´es da an´alise da composi¸c˜ao social da cidade, da intera¸c˜ao entre diversos grupos e suas formas de vida no territ´orio, emergiu a escola de ecologia humana, cuja base te´orica centrava-se nos conceitos de

cont´agio socialeregi˜ao moral(Park, 1925).

Dessa forma, as pesquisas espec´ıficas sobre culturas juvenis que foram ini- cialmente produzidas na Escola de Chicago, ainda que estivessem focadas quase exclusivamente na ideia do desvio aos modelos sociais dominantes, abordaram indiretamente tem´aticas relacionadas com a imigra¸c˜ao, sociabilidades juvenis e a constru¸c˜ao e manipula¸c˜ao de categorias sociais e culturais que se associa a presente etnografia. A obra pioneira de Foot White (1943), por exemplo, so- bre Corneville, regi˜ao descrita comouma ´area pobre e degradada... habitada

quase que exclusivamente por imigrantes italianos e seus filhos, suscita a con-

formidade com o imagin´ario do lugar de destino dos sujeitos migrantes com quem realizei a etnografia. O Cac´em10 tem sido definido pelo senso comum e

pela m´ıdia como um bairroperigoso, com alto ´ındice de delinquˆencia juvenil

vinculada aos descendentes de africanos, nomeados como os de2agera¸c˜ao. A

juventude enquanto problema social, associada aoproblema da imigra¸c˜aoper-

manece ainda como o discurso hegemˆonico sobre estes espa¸cos perif´ericos, seja em Chicago ou em Portugal. A problematiza¸c˜ao dos sub´urbios multiculturais tamb´em ´e encontrada na sociologia urbana francesa, como em Monod (1968) e posteriormente no princ´ıpio da d´ecada de oitenta (Dubet, 1985; Lagr´ee y Lew-Fai, 1985). As tem´aticas priorit´arias eram, sobretudo, a marginalidade

juvenilnum contexto de crise do Estado do bem-estar social, a ruptura so-

cial e afragmenta¸c˜ao cultural que tinham como atores emergentes a 2a

10 Considerada uma regi˜ao perif´erica da Grande Lisboa, a reputa¸c˜ao de periferia do

bairroest´a associada `a distˆancia das ´areas mais centrais e igualmente por uma segrega¸c˜ao espacial ´etnica. A maioria das pessoas que habitam o Cac´em ´e oriunda da ´Africa portuguesa – Angola, Guin´e Bissau e Cabo Verde – e, mais recentemente, do Brasil.

gera¸c˜aode imigrantes africanos e antilhanos residentes nas periferias urbanas

que constroem sua identidade em torno de linguagens como o rap e o hip hop (apud Feixa, 1994, p. 70). Curiosamente, nestes trabalhos ´e sublinhada uma

identidade subculturaldestes jovens, ou seja, uma identidade perif´erica que

superaria as diferen¸cas ´etnicas. No terreno, as diferen¸cas ´etnicas e a nacionali- dade ser˜ao n˜ao somente valorizadas, como tamb´em hierarquizadas.

J´a na Escola de Birmingham, nos anos setenta e in´ıcio de oitenta, a argu- menta¸c˜ao desenvolvida n˜ao se centrava diretamente `a no¸c˜ao de desvio, mas `a quest˜ao do sistema de estratifica¸c˜ao social inglˆes. Surgem estudos sistem´aticos que produzem o conceito de subcultura e uma perspectiva te´orica marxista para entender as culturas juvenis da ´epoca, vistas como formas de resistˆencia `

as classes dominantes, uma guerra de classes simb´olica (Wulff, 1995, p. 3).

A classe ´e incorporada como um fundamental marcador de distin¸c˜ao social, tornando ainda mais complexa a an´alise sobre as subculturas juvenis. Como conceito alternativo `as subculturas, Maffesoli (1990) e Straw (1991), prop˜oem a no¸c˜ao detribaliza¸c˜ao das identidades socais e de cena, respectivamente,

dando enfoque ao poder criativo dos jovens para constituir e institu´ırem estilos de vida a partir de imagens e objetos de consumo determinados. Estas perspec- tivas tiveram forte reconhecimento nos estudos sobre juventudes e identidades sociais no Brasil (Abramo, 1994; Vianna, 1998; Di´ogenes, 1998; Herschmann, 2000).

Em uma perspectiva antropol´ogica, a juventude aparece como umacons-

tru¸c˜ao cultural relativa a um determinado tempo e espa¸co. N˜ao h´a, por-

tanto, um conceito ´unico de juventude que possa abranger os diferentes campos semˆanticos que lhe parecem associados (Pais,1993). No entanto, de acordo com (Feixa,1994, p. 11), o objeto de umaantropologia da juventudeapontaria

para duas principais dire¸c˜oes: o estudo de uma constru¸c˜ao social da juventude - a forma nas quais cada sociedade modela as maneiras de ser jovem - e o es- tudo da constru¸c˜ao juvenil da cultura - as formas que os jovens participam nos processos de cria¸c˜ao e circula¸c˜ao culturais. A partir da pesquisa sobre jovens migrantes na periferia de Lisboa, procurei abordar as duas dimens˜oes: como ´e ser jovem em Mantena e no Cac´em; ou seja, de que forma s˜ao constru´ıdas pelas sociedades de origem e destino as formas de ser jovem; como tamb´em, as maneiras como os pr´oprios sujeitos definem e participam de determinados estilos de vida definidos como jovens ou n˜ao, e os entretecem com outros marcadores de diferencia¸c˜ao social.