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CAP 3 – DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE IDEAL

3.7 Uma educação universal e gratuita aliada ao culto do saber

3.7.1 O pensamento utopiano

Na república ideal concebida por More a comunicação processava-se através de uma língua própria – de que é fornecido o alfabeto num dos paratextos da 1ª edição –

193 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p 387.

194 Diga-se a este propósito que na Vtopia III o personagem-narrador P. Martins não perde uma

oportunidade para continuar a instruir o seu leitor, explicando-lhe vários pormenores relacionados com a recepção das correntes literárias europeias na cultura portuguesa, nomeadamente a circulação tardia de grandes obras do séc. XVI, XVII e XVIII entre nós, por não terem sido vertidas para “lísico” (português) em resultado não só do papel censório da Inquisição, mas também porque o conhecimento do Latim dispensava o uso do Português.

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enquanto que o Latim era o veículo de transmissão do saber científico. Teria sido Rafael Hitlodeu que introduzira na sociedade utopiana as edições clássicas, gregas e latinas e que falara aos utopianos dos grandes filósofos da antiguidade, uma vez que estes eram desconhecidos na “Utopia”, com excepção dos grandes nomes que se destacaram no campo da música, da dialéctica, aritmética, geometria e ciência. Praticavam também a astronomia (e não a astrologia que era, aliás, condenada pelos humanistas). A filosofia moral utopiana privilegiava as questões que se prendiam com os “bens da alma e do corpo” e, em particular, com a questão da felicidade humana. Os utopianos “nunca […] discut[iam] sobre o problema da felicidade sem tirarem alguns princípios da religião e sem os associarem com a filosofia que se serve do raciocínio“195

, de modo a evitarem a imprecisão e a falsidade de ideias.

Na “Vtopia Nova” o conhecimento é sobretudo veiculado através das ciências exactas, cujo nível é tão avançado como no mundo não-utopiano. Se no passado o conhecimento científico utopiano se baseava no método de dedução, no presente utiliza- se sobretudo o método indutivo.

Em 1974 foi abolida a especulação filosofante das “teorias filo-escolásticas”, isto é, a escolástica e todas as filosofias que, embora proclamando-se, como o idealismo hegeliano, fiéis ao pensamento racional, não estão fundeadas no conhecimento empírico e racional da Natureza. Os utopianos contrapõem àquele idealismo o irenismo de Pico della Mirandola, na medida em que, como refere Miguel Hytlodeu, “procurou, todavia, contrabalançar a dialéctica escolástica pelo conhecimento do pensamento platónico, plotiniano, arabizante, orientalizante, esotérico, cabalístico e mesmo mágico.”196

Neste sentido, Miguel Hytlodeu rejeita todo tipo de pensamento filosófico de raiz escolástica formalista, idealista, hegeliano e manifesta-se também a favor de uma “filosofia humanista, de um humanismo ético”197

. Para ele, Galileo é o “génio da Modernidade que fecha o Renascimento e abre os tempos novos”198

pois, não só determinou a linha orientadora da modernidade científica e filosófica da “Nova Vtopia”, oposta à escolástica e à superstição, como abriu o caminho à ciência experimental. Talvez devido a essa forte tradição empirista, na “Nova Vtopia” a medicina mais avançada coexiste com a medicina natural, razão pela qual é dada grande importância ao uso de tratados de

195

MORUS, Thomas, op. Cit., p 545.

196 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit, p 10. 197

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.229.

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medicina caseira. O tratamento do cancro, considerado como uma doença provocada pela poluição feita pelo homem, é realizado com o recurso a produtos naturais.

Os novos utopianos preferem o pensamento de Platão a Aristóteles, de Karl Marx a Hegel, de Muratori a Vico, de Rousseau a Kant, de Condorcet a Diderot, e de Lucien Febvre a Toynbee. O pensador “lísico” (português) mais apreciado é Francisco Sanches. O pensamento filosófico novo-utopiano confunde-se com o pensamento religioso: os utopianos acreditam que a realidade divina e humana não pode ser mensurada por simetrias matemáticas ou avaliada por paralelismos geométricos. A concepção utopiana humanista do homem e do universo tem, porém, um cariz simultaneamene racionalista e metafísico, na medida em que o conhecimento da razão do ser do homem e do mundo se apoia numa religião “racional e natural” de cariz eminentemente vivencial.

Para M. Hytlodeu, e por consequência para os novo-utopianos, o homem é um ser dualista composto de alma e corpo. A alma humana, reflexo do divino, é a verdadeira essência do homem que se reflecte na faculdade da razão, tal como é defendido pelo platonismo e pelo pensamento patrístico.

Segundo M. Hytlodeu “a vida e a morte [...] são realidades antitéticas simultaneamente complementares”199, o que leva a que os utopianos acreditem na imortalidade do espírito. Para os teólogos utopianos a vida após a morte é uma continuação da vida terrena, concebendo-se Deus como o fim último de tudo. Neste sentido, sustentam que o Homem, criado à imagem e semelhança de Deus, tem como destino principal unir o seu espírito ao divino. Para os utopianos, como para os não utopianos, a morte individual não é encarada como uma separação trágica do mundo dos vivos, uma vez que na “Nova Vtopia” os mortos continuam vivos no coração dos homens pelo afecto e pela memória dos seus actos. De facto, trata-se de uma “concepção optimista”200

, e P. Martins considera-a mesmo uma crença em linha com o pensamento católico-ocidental, que encara a morte de forma mais “racional e natural”, sem a errância da alma humana separada de Deus.

Para os novos utopianos, o homem é o ser mais digno criado por Deus. A “filosofia moral” utopiana funda-se no “pensamento ético postulado pela sua religião racional e natural” e “está voltada para uma concepção austera de defesa da integridade

199

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.238.

104 do Homem e da Natureza”201

. Com a morte, o espírito do homem funde-se com a natureza e com a eternidade divina. Se o homem em vida agiu contra as leis que governam a ordem cósmica, então ele continua a sua peregrinação no espaço terreno até atingir um estado em que esteja em condições de se fundir com a “realidade ontológica do ser, isto é, de Deus.”202

Miguel Hytlodeu acredita assim na “transmigração dos espíritos”, sem no entanto saber se os seres conservam ou não a sua identidade individual.

201

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.537.

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