• Nenhum resultado encontrado

Uma economia baseada na propriedade privada e na classe social

CAP 2 – CRÍTICA DA SOCIEDADE HISTÓRICA

2.3 A motivação pedagógico-crítica de Vtopia III

2.3.2 Uma economia baseada na propriedade privada e na classe social

A economia é a base de sustentação de qualquer Estado moderno e a sua prosperidade depende, em grande medida, do sucesso das relações comerciais que estabelece com outros estados. No séc. XV verifica-se que o poderio mercantil inglês é afectado pela concorrência da Liga Hanseática Alemã, uma sociedade mercantil que

51

mantinha fortes relações com o Báltico e o norte da Europa. Em consequência dessa concorrência, por volta de 1485, apenas os Países Baixos, Holanda e Bélgica continuam a negociar com Inglaterra.

Ao nível da agricultura, na Inglaterra, nos finais do séc. XV, inícios do XVI, muitas das terras que se encontravam abandonadas passaram a ser usadas para terras de pasto. Com o aumento populacional e a falta de trabalho, alguns proprietários rurais passam a dedicar-se exclusivamente à pastorícia, privando os camponeses de cultivar as leiras de terra que lhes eram concedidas pelos seus senhores, ficando, portanto, sem o seu meio de subsistência. O processo de “enclosures” intensifica-se e a situação de abandono forçado das terras pelos camponeses agrava-se durante o séc. XVI.

Há um episódio no “Livro I” da Utopia em que Rafael Hitlodeu, em jeito de analepse, narra aos seus interlocutores e humanistas Pedro Gilles e Thomas More, o que se teria passado em casa do Cardeal Morton, Chanceler de Henrique VIII. É um episódio deveras curioso e exemplificativo da retórica hipócrita de muitos homens de Estado e juristas da altura, e contém uma crítica profunda à política Tudor quanto à aplicação da justiça e à natureza das leis, questões estas intimamente relacionadas com o sistema agrário e económico de “enclosures”. Tendo como mediadora a figura credível e sóbria do Cardeal Morton que, na realidade, foi um protector de Thomas More, esse episódio reporta-se a um diálogo curioso entre Hitlodeu e um jurisconsulto, verdadeiro defensor da ordem social dominante. Discutindo-se a inoperância do sistema penal inglês, o advogado incarna o peso da ideologia instituída na defesa que faz da mera aplicação da lei, enquanto que Hitlodeu, por seu lado, considera que essa aplicação da justiça apenas serve para perpetuar uma organização social e economicamente injusta. Hitlodeu defende a tese de que a aplicação da pena capital como punição universal para o roubo revela uma concepção errada do que é a justiça. Por essa lógica, combatem-se apenas as consequências de um comportamento desviante, provocado pelos defeitos de uma organização económico-social que não zela por garantir o bem geral. De forma cruel e irracional, a aplicação daquele modelo de justiça ignora as verdadeiras causas do problema, as quais se prendem com questões estruturais relacionadas com a distribuição da riqueza. Este comportamento punitivo incentivava apenas a que houvesse mais crimes. More tenta alertar para a importância de se melhorarem as condições de vida, pois muitos dos larápios eram forçados a roubar por terem caído na miséria, em resultado da política das “enclosures”. O enforcamento é apresentado como uma

52

solução inapropriada e as leis como sendo excessivamente cruéis e incapazes de recuperar os forçados delinquentes para a sociedade.

Para Rafael Hitlodeu, outra das questões de fundo que explicava a inoperância da justiça em Inglaterra era a deficiente organização económica da sociedade inglesa. Com o sistema de “enclosures”, a nobreza e o clero apoderaram-se de terras cultivadas e casas, transformando-as em pastos, com as consequências sociais acima referidas. Os grandes proprietários que tinham a seu cargo o monopólio de produção da lã controlavam o seu preço, o que determinava o aumento dos preços de outros produtos.

Mas se as classes possidentes usufruíam da sua riqueza, os seus criados, uma vez privados por morte daqueles, do seu sustento, ficavam socialmente desprotegidos, indo engrossar os exércitos de miseráveis, entregues à vagabundagem e ao roubo. Assim, enquanto que para Hitlodeu os camponeses espoliados e os criados desprotegidos eram vítimas da ganância de uma nobreza ociosa e de uma justiça arbitrária e cruel, para o advogado eles eram apenas uma fonte de recursos humanos para fins de alistamento militar.

Hitlodeu alude então à eficácia do sistema económico, político e ético de outros povos, referindo-se à justiça dos “Poliléritos”, aos instintos pacifistas dos “Ancários” e à racionalidade económica dos “Macários”, povos fundadores de uma ordem social em que reinava a justiça e a paz. E com esta descrição, o personagem-narrador Rafael Hitlodeu, prepara o leitor para a descrição do funcionamento da sociedade perfeita presente na ilha da “Utopia”.

O advogado, por seu lado, contrapõe o argumento de Hitlodeu, devido ao facto de, na sua condição de súbdito estrangeiro, não possuir um conhecimento fundamentado da situação social inglesa e, num discurso carregado de sátira e de ironia, insurge-se contra os argumentos do marinheiro português.

Num momento ulterior, e como conclusão desta cena evocada por R. Hitlodeu, e, perante a comunhão de ideias entre Hitlodeu e o Cardeal, o advogado acabaria por anuir reverentemente com o teor dos argumentos do seu antagonista, passando a comungar das suas opiniões. Ficava então exposta a imagem subserviente desse advogado, símbolo da retórica vazia e sem opinião própria, perante a voz do poder instituído.

Como corolário desta crítica à ordem social inglesa, contra o conceito de propriedade privada, e contra a forma como esta era administrada, Hitlodeu afirma que “em toda a parte em que há propriedade privada, em que todos medem tudo por

53

dinheiro, dificilmente alguma vez aí se poderá chegar a promover a justiça de Estado ou a prosperidade.”97

A este propósito, convém referir que a temática da crítica à propriedade privada pertence ao âmbito da doutrina do comunismo utópico. Assim, por exemplo, Stephen Greenblatt afirma que o debate sobre a natureza privada ou colectiva de propriedade como fundamento de uma formação social justa, além de se apresentar como um motivo literário que se articula formalmente com a temática do “Livro II”, constitui uma reflexão sobre as grandes questões que se prendem com o modelo de vida do próprio ser humano98.

Já para Krishan Kumar99, o momento utópico por excelência do pensamento ocidental acontece precisamente no final do “Livro I”, quando Rafael Hitlodeu considera o carácter ilegítimo da propriedade privada e lhe contrapõe o comunismo, na linha da República de Platão e da sociedade utopiana que ele visitou, apresentando não apenas princípios teóricos e gerais, mas particularizando a verdade dos seus princípios, descrevendo algo que os sentidos pudessem testemunhar. Este é o ponto de partida para o “Livro II”, para a “fábula” que simultaneamente entretém e ensina.

A colectivização da propriedade é a alternativa económico-social apresentada por More, pela voz de Hitlodeu, à ordem vigente. Ao carácter socialmente estratificado da sociedade inglesa, ele contrapõe uma visão dinâmica da estrutura social baseada na ascensão social e na evolução do próprio indivíduo.

Stephen Greenblatt é de opinião que

“tal como nos primeiros manuscritos de cariz económico e filosófico de Marx, também o trabalho de More propõe o comunismo não tanto como um programa coerente, mas antes como uma arma contra certas tendências da natureza humana tais como: o egoísmo e o orgulho, e também aquela complexa e auto-consciente acomodação teatral ao mundo que reconhecemos como uma característica do individualismo moderno.”100

97 MORUS, Thomas, Op. Cit., p.477.

98 Cf. GREENBLATT, Stephen, Op. Cit., p.37.

99 Cf. KUMAR, Krishan in CENTENO, Yvette K, Op. Cit., p.31. 100

“Like Marx‟s early Economic and Philosophical Manuscripts, More‟s work propounds communism less as a coherent economic program than as a weapon against certain tendencies in human nature: selfishness and pride, to be sure, but also that complex, self-conscious, theatrical accommodation to the world which we recognize as a characteristic mode of modern individuality.” GREENBLATT, Op. Cit., p.37.

54

No fundo, More pela voz de Hitlodeu insurge-se contra uma economia capitalista emergente, que na prática, não veio criar mais postos de trabalho nem veio trazer mais justiça social, acentuando, pelo contrário, grandes desigualdades associadas a outros grandes vícios como é o caso da luxúria, gula, etc...

Mas, para além da questão económica, há ainda a notar que no diálogo acima transcrito More parece adoptar uma atitude crítica contra a falta de ética da burguesia nascente representada pelo jurisconsulto, nomeadamente a sua ausência de virtude, honra e justiça. No entanto, a Utopia de More não é um libelo contra a burguesia como classe socialmente emergente que começa a questionar a forma como a Igreja e o Estado estão organizados e a pôr em causa o próprio sistema feudal por não criar riqueza, nem material nem espiritual, nem contribuir para o aumento de justiça social.

É importante mostrar que, a nível social, e em harmonia com os princípios filosóficos do Humanismo, tanto More, como o seu discípulo português do séc. XX P. Martins, defendem a “humanitas”, que se opõe à “nobilitas”, assente em meros privilégios de casta ou sangue.

Por outro lado, do ponto de vista dos direitos sociais, na sociedade utópica ideal descrita por Hitlodeu, vemos que o autor procura, nalguns aspectos, defender a igualdade de direitos entre os géneros, apresentando uma nova condição da mulher numa sociedade em que ainda era vista como um ser inferior ao homem, contaminada pelo pecado.

Mas se a questão da economia, associada à justiça social e à natureza da propriedade, é um motivo literário importante na Utopia de More, já através da sua personagem homónima na Vtopia III vemos que o aspecto económico é pouco abordado e restringido a questões que se prendem, por exemplo, com a saúde, educação, cultura, letras e Humanismo. O autor P. Martins parece querer dar à cultura e ao cultivo do espírito o destaque central da sua obra. Assim, num pequeno capítulo relativo à actividade económica, P. Martins salienta apenas que a abertura do comércio na “Velha Lísia” aos sábados, mais do que ser favorável à economia é-o pelos seus eventuais efeitos positivos no campo da ciência e da cultura. Miguel Hytlodeu, por seu lado, critica também a forma como os portugueses gerem o seu comércio, pois, a bem não só da economia, mas também da cultura, poderiam, por exemplo, ter horários mais flexíveis, e critica igualmente o oportunismo de alguns alfarrabistas.

A propósito da autárcica economia dos utopianos, P. Martins parece tecer uma crítica à economia sem barreiras do Portugal contemporâneo inserido na antiga

55

“Comunidade Económica Europeia”. De facto, P. Martins posiciona-se de forma crítica relativamente à adesão de Portugal à “Comunidade Europeia”.