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CAP 1 – CONTEXTUALIZAÇÃO DE VTOPIA III NO GÉNERO LITERÁRIO

1.4 Estratégias ambíguas de actualização do discurso: realidade / ficção

1.4.1 Triadismo em Vtopia III

A ambiguidade que estrutura a Utopia de Thomas More e a Vtopia III de P. Martins centra-se, nesta última obra, num interessante jogo numérico realizado à volta do número três. Por outro lado, o dualismo que perpassa na Utopia de Thomas More transforma-se em triadismo em Vtopia III. De facto, na obra de P. Martins, o paratexto que alude ao relato de Vtopia II, que teria ficado soterrado nos escombros do terramoto de 1737, explora o número três e seus múltiplos, e também serve de mote para o jogo que sustentará e atravessará a estratégia narrativa de Vtopia III. Diz Fátima Vieira:

“(…) de facto, as «nove linhas da página 333» que sobreviveram ao terramoto que abalou Amaurota em 1737, anunciam não só toda a estrutura triádica de Vtopia III [...] mas também [...] o apelo para a intervenção do leitor, que esteve sempre no espírito de Thomas More quando escreveu a sua obra-prima, isto é, o desejo de transformar o diálogo em «triálogo».”59

59 VIEIRA, Fátima - “Utopia III, de Pina Martins: finalmente o verdadeiro espírito moreano em

Portugal” [Em linha]. Deptº de Estudos Anglo-Portugueses - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS ANGLO- PORTUGUESES, 1, 2001, actual. Fevereiro 2008. [Consult. Janeiro 2004]. Disponível em www: <URL:http://www.fcsh.unl.pt/congressoceap/index.htm, p.4.

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E Fátima Vieira continua explicando que o significado do número três no texto de Pina Martins é importante para a

“(…) concepção da utopia como um texto eminentemente teórico, perfeito e exacto, redutível a uma descrição triádica apenas na medida em que se assume como uma hipótese. De facto, da sinopse dos capítulos (que faz parte do conjunto de documentos que antecedem a narrativa propriamente dita), sobressai a artificialidade da conjectura utópica, que não admite as variáveis que pontuam a vida real.”60

O numeral cardinal três tem, aliás, a simbologia de “número perfeito”61 para diferentes culturas e formas de pensamento científico-naturalista, filosófico ou esotérico. O três liga-se a uma “ordem intelectual e espiritual, em Deus, no cosmos ou no homem.”62

Segundo Mircea Eliade, também se impõem, a par de teorias lineares de explicação do mundo, teorias cíclicas que recuperam o sentido do mito arcaico da eterna repetição e recreação do mundo: “tudo o que sabemos acerca das recordações míticas do «Paraíso» mostra-nos […] a imagem de uma humanidade ideal, gozando de uma beatitude e plenitude espirituais inalcançáveis na condição actual do «homem pecador»”63

.

A simbologia do número três e seus múltiplos está presente ao longo da obra de forma quase “obsessiva”. Antes de mais, na tal “estrutura triádica” da obra que se divide em três partes: I-“A Revelação Nvminosa”, II-“Confronto de dois mundos” e III-“A Vtopia Nova tal como Miguel Hytlodev ma relatou”. Como salienta o próprio narrador, trata-se de “três partes distintas e complementares.”64

60 VIEIRA, Fátima - “Utopia III, de Pina Martins: finalmente o verdadeiro espírito moreano em

Portugal” [Em linha]. Deptº de Estudos Anglo-Portugueses - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, CONGRESSO INTERNACIONAL DE ESTUDOS ANGLO- PORTUGUESES, 1, 2001, actual. Fevereiro 2008. [Consult. Janeiro 2004]. Disponível em www:

<URL:http://www.fcsh.unl.pt/congressoceap/index.htm, p.4.

61 Dicionário dos Símbolos, Trad. de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. Lisboa: Editorial

Teorema, 1994, p.654.

62 Id., Ibid., p.654.

No Dicionário de Símbolos também se define assim a simbologia do número três: “o três designa, também, os níveis da vida humana: material, racional e espiritual ou divino, bem como as três fases da evolução mística: purgativa, iluminativa e unitiva. Este número exprime também a totalidade da ordem social, e principalmente a composição tripartida das sociedades indo-europeias.” Dicionário dos

Símbolos, Ibid., p.656.

63 ELIADE, Mircea – O Mito do Eterno Retorno. Trad. de Manuela Torres. Lisboa: Edições 70,

1984, p.105.

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O final da “parte I” e as “partes II e III” são, como P. Martins indica, a “transcrição” dos diálogos com M. Hytlodeu, o que confere uma maior veracidade ao narrado, como se de uma parceria se tratasse. Na “Parte I” explica-se o processo de escrita de Vtopia III e de como P. Martins foi incumbido de tão importante missão; na “Parte II”, Miguel Hytlodeu e P. Martins comparam o mundo utopiano com o não utopiano e na “Parte III” descreve-se a sociedade ideal.

Quando P. Martins inquire Miguel Hytlodeu acerca da “Vtopia Nova”, verificamos também que as suas dúvidas são registadas em “30 páginas com 33 quesitos e mais uma com nove, o que perfazia o número místico de 999 quesitos”65

, isto é, fazendo apelo obsessivo ao uso do algarismo 3 e às suas combinações de número e de uso como múltiplo. Relativamente ao jogo numérico com o número 33, o próprio narrador afirma o seguinte: “seria assim tão insignificante? Pitágoras não havia construído uma filosofia com base nas relações numéricas, cujas linearidades geométricas estariam no alicerce da realidade ontológica do cosmos?”66

O narrador legitima assim o seu recorrente uso do algarismo 3 fazendo alusão ao pitagorismo que, por meio de combinações numéricas variadas, considera ser o número racional que preside a todas as coisas.

Daniel Serrão, na apresentação que nos faz de Vtopia III, levanta-nos o véu do que lhe parece ser um “esoterismo triádico”67

subjacente a um nível textual e temático em Vtopia III. O mesmo autor fala ainda de triadismo, aparte teses numerologistas, como sendo algo inicialmente ligado à teoria da inteligência humana que Robert Sternberg formulou em 1985 e, segundo a qual, o conhecimento humano se estrutura com base em três premissas fundamentais: o contexto cultural, a capacidade de resolução de situações novas e a aprendizagem que deriva das primeiras duas e que permitem ao homem aprender e evoluir. A pureza triádica também se pode aplicar a diversos campos e constitui um apelo para que o leitor aceda ao sentido profundo da obra, ou seja, às motivações humanistas do autor.

Importa ainda referir que no final do livro e da “Parte III”, relativo à descrição da “Vtopia Nova”, representam-se dois triângulos interceptados, um de cor branca, cujos vértices definem um plano superior, símbolo do espírito e da Verdade que é

65

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.53.

66 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.52, 53. 67

SERRÃO, Daniel – “Utopia III – Outra Vez Portugal”. Brotéria. Revista de Cultura. Braga. Vol.149, (Agosto/Setembro 1999), p.186.

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preciso sobrepor à materialidade do triângulo escuro, cujos vértices definem um plano inferior. De facto, já a Vtopia II, segundo a narrativa de P. Martins, tem dois triângulos equiláteros sobrepostos, um branco orientado para cima (símbolo do espírito que se eleva ao divino) e um triângulo negro orientado para baixo (símbolo das solicitações corpóreas). Essa é a interpretação final de Miguel Hytlodeu que acredita no dinamismo ontológico, do ser que deve aspirar ao céu.

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