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Política e religião movidas por interesses

CAP 2 – CRÍTICA DA SOCIEDADE HISTÓRICA

2.3 A motivação pedagógico-crítica de Vtopia III

2.3.1 Política e religião movidas por interesses

A Utopia de Thomas More espelha um tempo de convulsões sociais várias derivadas quer de transformações sociais e económicas, quer de uma nova forma de entendimento do exercício da política e da justiça, isto é, um tempo marcado por um declínio da mentalidade medieval, ultrapassada por novas formas filosóficas de conceber o destino do homem e do mundo.

Reportando-nos especificamente ao contexto histórico inglês, há que referir que, com a dinastia Tudor, nomeadamente com Henrique VII, se começa a desenhar a noção de Estado-Nação, associada ao exercício de um poder político do monarca e do Parlamento, que é regularmente consultado para o levantamento de impostos e criação de leis reformistas. No plano económico e social, a Inglaterra dos princípios do séc. XVI conhece uma verdadeira revolução na organização do espaço rural fundiário: o

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emparcelamento das terras deu origem a grandes propriedades rurais destinadas à pastorícia, as “enclosures”, que muito irão prejudicar a grande massa camponesa em benefício dos grandes proprietários.

Contudo, as fundações de uma nação rica e de uma monarquia poderosa que Henrique VII conseguira erguer, com base num novo poder mercantil e não tanto em guerras e glória, são abaladas pelas políticas de opulência e de conflitualidade institucional e internacional de Henrique VIII, que subiu ao poder por volta de 1509.

A Utopia de Thomas More reflecte estas convulsões da Inglaterra de finais de séc. XVI. Efectivamente, os males diagnosticados no “Livro I” prendem-se, antes de mais, com os males sociais e com as disfuncionalidades das instituições inglesas de finais do séc. XV, inícios do séc. XVI, como o roubo e a criminalidade, associados à pobreza e mendicidade, à injustiça, à crueldade da legislação ou aos vícios dos mais poderosos. Ali se retrata o ambiente de lisonja e mentira que predomina na corte inglesa, bem como a fragilidade das decisões legislativas e judiciais tomadas por orgulho, ganância, falta de escrúpulos, corrupção, abuso do poder e desejo de glória. Como refere J. H. Hexter, More acredita que muitos vícios por si descritos emanam das instituições; contudo, como autêntico cristão que era, “os seus estudos levam-no a acreditar que a raiz de todos os males da Europa do séc. XVI, apesar de radicados numa sociedade fortemente contaminada pela ambição e pela avidez, é alimentada pela torrente inexaurível do pecado.”90

Com efeito, More encontra diversos “pecados” na sociedade e no cidadão ingleses, destacando especialmente três deles: a preguiça, a avareza e o orgulho. A preguiça liga-a à vagabundagem; a cupidez associa-a à constituição das “enclosures” das grandes propriedades privadas sendo a concentração do dinheiro encarada como a fonte de todo o mal; o orgulho, tido como o vício mais presente no corpo social, associa-o à escravidão dos artífices e camponeses ao serviço de uma classe que se limita a viver no luxo, na vaidade e nas honras vãs.

Neste sentido, o debate que abre Utopia é uma reflexão séria acerca da função dos políticos dada a importância que eles assumem na direcção dos destinos de um país, e uma vez que eles podem constituir-se na tal classe de poderosos de onde emanam os maiores vícios. Esse debate pode ser interpretado como pondo em confronto o More político, encarnado pelo personagem - narrador Thomas More e o More cidadão crítico,

90 “His probings led him to believe that the roots of the evils of sixteenth century Europe, though

nourished in the rich black earth of an acquisitive society, were moistened by the inexhaustible stream of sin.” HEXTER, J.H., Op. Cit., p.72.

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encarnado por Rafael Hitlodeu e as duas posições acabam por ser irreconciliáveis. O debate centra-se na discussão sobre a função dos príncipes junto dos reis e serve de mote para o tom pedagógico e reformista da obra. Em conversa com Pedro Gilles, e a propósito da função dos conselheiros dos príncipes, Rafael Hitlodeu critica a subserviência de muitos conselheiros de estado que apenas se dedicam a bajular os seus monarcas, visando o aumento do seu próprio prestígio social. A discussão acerca de uma possível colaboração de Rafael Hitlodeu com o seu monarca, levanta a questão do fosso entre o ideal de serviço público que ele preconiza e a constatação que a prática política é geralmente corrupta e servil. Essa constatação leva Rafael Hitlodeu a manifestar a sua total indisponibilidade e a aceitar a condição de filósofo-político- reformador ao serviço do rei.

Por seu lado, a maior crítica do personagem - narrador P. Martins em Vtopia III, no campo da política, também se centra sobre o mau desempenho dos políticos. Miguel Hytlodeu apelida os políticos portugueses do séc. XX de “tecnocratas de uma incultura piramidal”,91

sem escrúpulos, corruptos e sem um “fundamento sério” nas “ciências humanas”, algo indispensável a qualquer formação e ao exercício de qualquer actividade no domínio da administração pública. Isto vai, aliás, na senda do que Rafael Hitlodeu defende na Utopia quanto a uma formação em Filosofia dos ministros ou conselheiros de Estado como antídoto intelectual contra a tentação de se formarem meros bajuladores ao serviço dos seus próprios interesses. O que se verifica também, segundo o narrador P. Martins, é que os ministros, em finais do séc. XX, não detêm, na maioria das vezes, a melhor formação académica para as funções que desempenham.

O capítulo intitulado “Uma Democracia sem Partidos” revela uma crítica profunda à democracia portuguesa contemporânea, cujo funcionamento é apresentado como fundado num certo clientelismo por parte dos políticos em geral, e, em particular, dos ministros que servem apenas os seus interesses ou os do partido que representam. Aí se critica a ausência de uma boa formação de base em Filosofia apoiada por uma reflexão política e doutrinária capaz de guiar os políticos a trabalharem em prol do bem comum. Na “Nova Vtopia”, “o poder, que tem a sua origem no povo, é transmitido tanto racional como naturalmente até à derradeira instância da pirâmide que constitui a Pólis.”92

Esta é para Hytlodeu a verdadeira república, a que trabalha em prol do “bem

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HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.264.

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comum” e não a que tem de subjugar-se ao interesse das forças partidárias, sendo algo que para ele evidencia uma total falta de valores ético-políticos.

Ainda assim, o regime democrático, consubstanciado na República, é considerado o melhor regime, embora as escolhas democraticamente realizadas devessem, na opinião de P. Martins, ser feitas entre candidatos efectivamente formados nos valores da liberdade e da cidadania.

Apesar de o narrador-personagem P. Martins se reportar ao contexto democrático do regime político português do séc. XX, ele não deixa de criticar o facto de as liberdades dos cidadãos continuarem condicionadas por políticas que, só em teoria, defendem a justiça e a liberdade. Ainda segundo ele, o “monopólio” do exercício da Democracia política, por dois únicos partidos, contribuiria para a estagnação, falta de renovação, constituindo, enfim, uma nova forma de plutocracia.

Miguel Hytlodeu, à semelhança do seu antepassado Rafael Hitlodeu, também denuncia o primarismo e a falta de cultura humanista dos políticos portugueses, traduzida numa agressividade retórica, sem ideias, num verbalismo oco.

Outra crítica de carácter político que se desenha no “Livro I” da Utopia de Thomas More é a que incide sobre o desencadear arbitrário de guerras pelos monarcas que usam de todo seu poder para sobrecarregarem os mais desfavorecidos com impostos que ajudem à concretização dessas acções bélicas.

A este propósito, João Manuel Nunes equaciona a temática da guerra em Machiavel e More visto este tema ocorrer nas obras de que são autores, respectivamente

O Príncipe e a Utopia. Segundo João Nunes, a “memória da guerra”, em ambos,

“latente ou declarada, próxima e permanente […] constitui a prova por absurdo de que o sistema feudal já não serve, e factor premente da apologia do reforço do poder centralizador do „príncipe‟ e do Estado.”93 Com efeito, um dos traços característicos do ideário ético-político de Hitlodeu é o seu desprezo pela guerra, se bem que na narrativa que faz da vida social dos utopianos estes não sejam apresentados como sendo pacifistas, pois embora recorressem a todo o tipo de estratagemas para evitarem a guerra, também não a receavam.

Já em Vtopia III, ambas as personagens, M. Hytlodeu e José Pina Martins, condenam todas as circunstâncias da história em que foi preciso praticar a guerra e a violência, feitas muitas vezes em nome de ideais cristãos.

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Continuando a sua análise da sociedade contemporânea portuguesa, Miguel Hytlodeu faz um balanço positivo do regime democrático em Portugal implantado após a ditadura que dominou durante 45 anos, até 1974. Contudo, não deixa de considerar que o nosso país tem ainda muito a fazer, entre outros aspectos, no “combate contra a corrupção, contra a droga, contra a poluição”,94

bem como, contra a má comunicação social ou contra a falta de ordem pública, devido a um enfraquecimento de autoridade policial mal conseguida.

Outra classe, tradicionalmente detentora de poder e de saber, e bastante visada pela crítica de Hitlodeu na Utopia de Thomas More, é o clero, que vinha perdendo autoridade moral devido, não só à sua forma de vida baseada no conforto e na ostentação, mas também derivado do facto de prosseguir uma relação conflituosa com a monarquia inglesa.

A crítica às instituições religiosas, na Vtopia III, adopta o mesmo tom de More: condenam-se as Igrejas que confundem o poder espiritual com o temporal, em particular a Igreja Católica que, em nome da fé cristã, prosseguiu uma política de intolerância e perseguição religiosas, nomeadamente através das Sangrentas Cruzadas contra os “infiéis” e da terrível Inquisição contra os Judeus e contra todas as formas de culto não conformes aos preceitos do dogma católico-romano. É neste contexto que se relembra a prepotência de Carlos V, e de outros príncipes cristãos, cujas políticas não foram efectivamente inspiradas no ideário do cristianismo autêntico, apesar de, na época em que governaram, serem afirmadas como tal. É referido o saque de Roma ordenado pelo imperador cristão Carlos V, no ano de 1527, e como os papas, entre eles Clemente VII, colocaram os seus interesses temporais acima de tudo, transformando a referida cidade numa nova “Babilónia”.

P. Martins não nega os erros da Igreja Católica, mas tenta contextualizá-los e explicá-los. “Veritas filia temporis”95 (a verdade é filha dos tempos) é a premissa que, segundo ele, compreende e explica bárbaros costumes levados a cabo em nome da fé cristã. P. Martins evoca, portanto, uma conjuntura histórica, a do Renascimento europeu, para aludir a um poder temporal exercido pelos vigários de Cristo que assumiam para si, e em nome da sua suposta supremacia cultural e espiritual, o direito de exercerem a gestão dos negócios do estado. Apesar de o narrador P. Martins recorrer

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HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.253.

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à expressão latina “errare humanum est”,96 parece manifestar simpatia pelo irenismo conciliador de Erasmo face às polémicas questões de Lutero com os católicos, realçando ainda, como prova do arrependimento da Igreja o facto desta, por via do seu principal representante, o Papa, se ter redimido pelos atentados cometidos contra a verdadeira doutrina de Cristo.

Quanto ao estado actual da vivência cristã, o narrador considera que os lísicos se mostram indiferentes, conduzidos por um estilo de vida cada vez mais materialista, ambicioso e irracional, à margem, portanto, de um espírito de religiosidade puro. Ainda neste capítulo de avaliação do sentido e da prática religiosa, M. Hytlodeu, relativamente a alguns ritos católicos, considera que o baptismo só se devia ministrar quando a pessoa fosse adulta, considerando ainda a celebração da missa como uma cerimónia algo leviana por não usar o Latim como a língua apropriada, pela sua solenidade, ao mistério do rito, considerando as cerimónias fúnebres destituídas de valor espiritual e estético.

Miguel Hytlodeu critica, por fim, quer a arrogância e o dogmatismo dos papas, quer o farisaísmo e autoritarismo dos bispos, advogando a não laicização das actividades dos sacerdotes, que deveriam estar menos nas escolas e mais nas igrejas, segundo a letra do Evangelho.

Em jeito de síntese, poderíamos afirmar que estas duas utopias literárias apresentam algumas ideias erasmianas tais como: a pureza evangélica, a crítica à corrupção do clero e ao exercício moral do poder instituído. Tanto More como P. Martins evidenciam um espírito crítico, anti-“establishment”, mas não anti-cristão, nem preconizador de uma ordem social e política sem qualquer tipo de orientação e enquadramento institucional.

2.3.2 Uma economia baseada na propriedade privada e na classe