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Um optimismo antropológico em que o homem se constrói a si mesmo

Cap 4 – VTOPIA III COMO TEXTO DE HUMANISMO

4.4 Um optimismo antropológico em que o homem se constrói a si mesmo

No período do Renascimento, os humanistas começam a redefinir uma concepção de homem à luz do estudo que empreendem de diversas tradições e correntes da Antiguidade Clássica, como a literatura hermética, e o platonismo cristão cultivado em Florença, e que convergem para uma concepção do homem tido como a “maravilha da criação” de que fala Pico della Mirandola. “Maravilha”, no entanto, que engloba grande diversidade e complexidade e que, apesar de dividido entre a prática do bem e do mal, possui o potencial necessário para poder aspirar à salvação. De facto, o núcleo doutrinal do Humanismo “é afeiçoado e transformado à luz de novos conceitos do valor da humanitas, que sem autonomizarem o homem em relação ao Divino, o colocam no centro do Mundo e do Cosmos, como é patente no discurso De Hominis Dignitate”233 de Pico della Mirandola.

Se o pensamento medieval era centrado no divino e no eterno, o pensamento renascentista é centrado no humano e no terreno. Para P. Martins estudioso, o

232

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p. 530.

233 MARTINS, José V. de Pina – “Humanismo e Renascimento – A propósito de um estudo de

Ernst-Robert Curtius”, Sep. da Revista da Faculdade de Letras de Lisboa. Lisboa: [s.n.], [1967], II Série, nº11, p.36.

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Humanismo é, antes de mais, uma atitude filosófico-moral, sapiencial, e “a realidade científica interessa apenas em função do primado do homem na cidade terrena”234

. O humanista é, antes de mais, um historiador e um crítico mordaz dos grandes problemas que afectam o mundo que o rodeia, levantando questões fundamentais que dizem respeito ao homem, e procurando por essa via que este reflicta sobre essas mesmas questões. Como salienta P. Martins, nas suas incisivas reflexões sobre o espírito ético- pedagógico do Humanismo, “definida a consciência de um poder que tinha a sua raiz principalmente na acção, fonte de progresso e de renovação sociais, os homens voltam- se, na ânsia de criar um futuro digno de ser vivido, para os exemplos do passado: para colherem, da lição da história, o ensinamento da vida”235.

Para a doutrina filosófica do Humanismo quatrocentista é a inteligência e a vontade livre do homem que devem presidir à organização da vida civil. Em oposição à Reforma religiosa fundada em actos de fé desvalorizadores das virtudes e potencialidades do homem, o Humanismo caracteriza-se doutrinalmente pela sua genuína confiança na natureza humana e nas suas capacidades de aperfeiçoamento.

É neste sentido que a Utopia de More pode ser lida como um hino à honra e dignidade do Homem, na sua condição individual, mas também na sua condição de ser social, inserido numa comunidade, isto é, de cidadão, da nação e do mundo. Escreve P. Martins sobre More que ele

“não deseja apenas que os homens cheguem um dia ao paraíso onde hajam de contemplar eternamente o Bem Supremo: propõe também que a vida terrena seja já um reino de Justiça e que a Parusia se concretize numa realização viva, histórica. A revolução que a efectivar será uma autêntica metanoia em que os homens não virão a ser sacrificados, não serão escravizados, não serão vítimas das suas próprias ilusões”236.

A Utopia de More denota, portanto, a influência dos humanistas do

Quattrocento, nomeadamente Pico della Mirandola no que diz respeito ao seu

optimismo e ideal universalista. É de salientar que o homem renascentista se preocupa

234 MARTINS, José V. de Pina – “Sobre o Conceito de Humanismo e Alguns Aspectos

Histórico-doutrinários da Cultura Renascentista”. Sep. dos Arquivos do Centro Cultural Português. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1970, vol.2, p.217.

235 MARTINS, José V. de Pina – “Humanismo e Renascimento – A propósito de um estudo de

Ernst-Robert Curtius”, Sep. da Revista da Faculdade de Letras de Lisboa. Lisboa: [s.n.], [1967], II Série, nº11, p.14.

236 MARTINS, José V. de Pina – “A Utopia de Thomas More como texto humanístico” in

MORUS, Thomas – Vtopia. Ed. Crítica, trad. e notas de comentário por Aires A. Nascimento, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p.40.

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com o bem-estar espiritual, mental e social dos seus concidadãos, e a Utopia é o primeiro texto nessa linha de pensamento a teorizar sobre os problemas sociais, políticos e económicos da época e a reflectir acerca das grandes mudanças em curso no séc. XVI. José V. de Pina Martins considera também que o Moriae encomium de Erasmo de Roterdão e a Utopia são “duas das obras capitais que contribuíram para forjar o mundo moderno. São dois textos que se fundam numa concepção antropológica essencialmente optimista: a crítica dos erros humanos pressupõe a certeza de que o homem é susceptível de aperfeiçoamento”237

. Esse aperfeiçoamento tem como expressão mais relevante o domínio ético: ao tentar combater as suas inclinações para o mal, o Homem é susceptível de realizar-se na sua máxima plenitude existencial.

O texto moriano apresenta, contudo, um optimismo que é, de certa forma, radical e ingénuo. De certo modo, o realismo da crítica à condição social humana encetada no “Livro I” contrasta com a elevação espiritual dessa mesma condição descrita no “Livro II”: o regime de vida colectivo da ilha da “Utopia” encerra uma visão optimista de uma comunidade perfeita, mas de existência meramente textual uma vez que nunca conheceu nenhuma realização efectiva em nenhuma colectividade humana, por mais primitiva ou organizada que fosse.

Segundo Fernando de Mello Moser, o optimismo antropológico moriano deve ser confinado ao seu exercício de imaginação narrativa :

“Não podemos levar à letra o comunismo utopiano, e propor como remédio para todos os males da sociedade de hoje a adopção global das soluções teóricas jamais postas em prática (ou unicamente em pequena escala, nas comunidades monacais primitivas ou em certos conventos), porque isso iria falsear o sentido do texto238”.

O ideal utópico existe apenas na imaginação do escritor como talvez o ideal de fraternidade humana só exista para os crentes cristãos no reino metafísico de Deus.

Mas Thomas More, como humanista, acredita no valor de aperfeiçoamento do homem. No entender de P. Martins, More crê num Humanismo civil, na harmonia entre os homens movidos pela solidariedade de interesses comuns e “oferece-nos na sua

237 MARTINS, José V. de Pina – “A Utopia de Thomas More como texto humanístico” in

MORUS, Thomas – Vtopia. Ed. Crítica, trad. e notas de comentário por Aires A. Nascimento, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p.24.

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“(...) il ne faut pas se hâter de prendre à la lettre le communisme utopien, et de proposer comme remède à tous les maux d‟une société d‟aujourd‟hui l‟adoption globale de solutions théoriques jamais encore mises en œuvre (ou uniquement à une petite échelle, dans des communautés monastiques primitives ou dans certains couvents), car se ferait fausser le sens du texte”. MOSER, Fernando de Mello; MARTINS, José V. de Pina, Op. Cit., p.17.

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Utopia um dos documentos mais notáveis do Humanismo cívico moderno, [uma]

comunidade de homens que encontram, só pela via da razão e da natureza, a realização de um ideal de vida feliz na sua cidade”239

. Na Utopia, como vimos, a natureza do Estado é moderadamente tolerante, apoiando-se numa autoridade de tipo patriarcal, que protege, mas que também condiciona a liberdade individual do cidadão. O Estado é concebido em função do serviço que pode exercer em prol da comunidade e do indivíduo e, nesse sentido, a legislação deve ser clara e simples de modo a regular o conjunto de direitos e deveres que irão coordenar o bem-estar global do homem. A condição fundamental para esse bem-estar é justamente a renúncia à propriedade privada e a participação numa ordem livremente e naturalmente estabelecida, marcada por uma visão simples da vida e desapego pelos bens materiais.

Em Vtopia III, o ideal de bem-estar utópico é inspirado igualmente nos valores humanistas que continuam a conferir coesão e harmonia ao mundo utopiano. O Estado novo-utopiano radica num “conceito do valor transcendente do Homem240”, e os novos utopianos consideram-se humanistas, colocando o “Homem no centro do Vniverso como agente primeiro do devir histórico, como agente da História”241

. A vida para eles tem, pois, subjacente um sentido de esperança na condição humana na medida em que, mesmo perante sinais evidentes de decadência geral da civilização, crêem que o homem pode ser agente de mudança e recriar a sua própria cultura e modo de vida.

Mas mesmo o cidadão utopiano não deixa de se auto-reconhecer e de ser considerado, mesmo por Miguel Hytlodeu, como um ser imperfeito. E é talvez devido à sua imperfeição que o próprio Miguel Hytlodeu chega a confessar que vai ter saudades da “Velha Lísia”, assumindo-se, no final, com um estatuto moral paritário ao do seu interlocutor não-utopiano P. Martins. Esse reconhecimento leva-o a declarar que “como homens todos somos imperfeitos, embora sejamos talhados para a suprema perfeição”242

.

Se More na sua Utopia não deixa de denunciar os males da sociedade sua contemporânea através de uma crítica objectiva e acutilante, protagonizada por Hitlodeu, já na Vtopia III essa crítica é colocada na voz de Miguel Hytlodeu

239 MARTINS, José V. de Pina – “A Utopia de Thomas More como texto humanístico” in

MORUS, Thomas – Vtopia. Ed. Crítica, trad. e notas de comentário por Aires A. Nascimento, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p.40.

240 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p.180. 241

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p.219.

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corroborada, embora não com tanta veemência, pelo personagem-narrador P. Martins. A diferença do tom de crítica da segunda para a primeira obra é que a situação denunciada não incide tanto sobre o carácter económico e social inoperante da sociedade que é escrutinada, mas sobre a decadência espiritual e cultural do mundo.

Para J. C Davis há três forças que podem levar os homens a ter um comportamento socialmente aceitável e a contribuir para uma sociedade funcional e saudável, nomeadamente, a “lei”, a “opinião pública” e a voz da “consciência”243

. Ora, estas forças nem sempre estão em harmonia, podendo ocorrer uma fricção entre aquilo que é a lei e a consciência individual ou pública que, por meio da razão conduzida por princípios de justiça universal, põe em causa a legitimidade das instituições vigentes. Os princípios racionais entram muitas vezes em conflito com os programas instituídos de acção político-social.

A crítica social na Vtopia III é feita em nome da tal consciência individual conduzida por princípios de justiça universal ou pública, de um variado conjunto de práticas correntes que se pretendem resgatar, isto é, em nome da dignidade humana, da busca do bem-estar físico e espiritual do homem, em suma, da sua realização plena. Nisto reside a crença no poder da humanitas segundo a qual o homem pode aperfeiçoar- se, desde que as condições de organização político-administrativa em que está inserido estejam concebidas para favorecer tal aperfeiçoamento. Por meio da sua inteligência e vontade livre, pode assim o homem criar um conjunto de normas sociais que lhe permitam viver em comunidade da forma mais eficaz e harmoniosa possível.

É esta concepção de índole cultural e moral, definidora da doutrina geral do Humanismo que conduz More e P. Martins a reflectirem sobre o estado presente da condição humana das sociedades históricas em que viveram e a procurarem soluções para elas nos seus mais diferentes níveis: económico, político, social, cultural, educacional, etc. À semelhança dos humanistas do Quattrocento, tanto More como P. Martins procuraram propor normas de governação que atentem às necessidades de aperfeiçoamento do homem, inventando modelos detalhados de gestão colectiva.

Ao contrário da doutrina político-filosófica de Il Príncipe de Machieveli, obra publicada originalmente em 1532 e que é ainda hoje em dia considerada um clássico da

243

“They are law and the sanctions behind it; informal social pressure, in the shape of public opinion, accepted norms of behaviour and fashion; and conscience, the small voice within, be it the voice of God or the voice of society internalised”. DAVIS, J. C. – Utopia and Ideal Society: a Study of English

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lógica política de preservação do poder pelo poder, obra na qual se defende a tese de que o Estado se devia bastar apenas a si mesmo, nas utopias em estudo, o Estado existe apenas em função do indivíduo e da comunidade através de uma ordem jurídica que assegure a elaboração e a aplicação de leis universais, objectivas e justas, bem como de toda uma série de direitos e deveres que concorrem para o bem-estar geral. A função social do Estado são os interesses dos cidadãos, conferindo-se assim um grande valor à vontade colectiva nele representado. A diferença quanto à natureza do Estado caracterizado nas duas obras é que em Vtopia III já não é a figura do príncipe que representa o poder, mas sim um “Clube de Reflexão Política e Doutrinária” democraticamente eleito, constituído por cidadãos culturalmente preparados para o efeito. Na linha de um individualismo solidário e fecundo que alie a “humanitas” à “nobilitas” verifica-se uma continuidade, da antiga “Utopia” para a “Nova Vtopia”, de realização do ideal de uma ordem de governação baseada na meritocracia.

Essa ordem é estabelecida para potenciar a elevação espiritual de toda a comunidade. É assim que, quer a antiga, quer a nova República democrática utopiana, permitem que os seus cidadãos realizem o seu Humanismo cívico enquanto participantes activos e empenhados na vida das suas comunidades. A fórmula que P. Martins utiliza para superar os problemas económicos, políticos e especialmente culturais configura o desenho de uma sociedade alternativa, funcional e tolerante. Nessa sociedade, herdeira do modelo inventado por T. More a lei obedece aos trâmites da consciência. Por isso é que na “Nova Vtopia” bondade e moralidade, homem e cidadão se confundem. Isso não implica que deixem de se verificar comportamentos indiciadores da natural imperfeição humana, defeitos e debilidades que são contornados pela lei, pelos “contratos” sociais, pela supervisão e pela educação.

4.5 Espírito crítico interligado a uma religiosidade pura: o Humanismo