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Uma religião “natural e racional”

CAP 3 – DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE IDEAL

3.5 Uma religião “natural e racional”

O século em que viveu More foi o século das grandes reformas religiosas do ocidente, em grande medida determinadas pelos desvios à doutrina cristã e à banalização das relações com o divino. Na Utopia, apesar de prevalecer uma grande tolerância religiosa, pois são permitidas diversas crenças, é postulado que nenhuma se deve impor aos cidadãos de forma abusiva, o que é um aspecto doutrinal inovador e único para a época. Assim, na ilha visitada por Rafael praticava-se a tolerância religiosa, muito embora a maioria acreditasse numa forma de religião pura, inspirada num cristianismo primitivo, baseado na crença da imortalidade da alma e na existência de um

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“The society More pictures for us is the most de-materialized that any dreamer ever conceived of. In costume, in social forms and almost all the outward concerns where diversity and elaboration naturally prevail, More would preserve a uniform plainness of living. And this came at a time when England was sumptuously aglow with colour, exulting in the pride of life.” HERTZLER, Joyce Oramel, Op. Cit., pp.136, 137.

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“ente supremo […] a quem por natureza, por divindade e por majestade é atribuída, consensualmente por todos os povos, a totalidade das coisas”165.

Diga-se, a propósito, que esta conduta religiosa parece traduzir o próprio ideal de simplicidade cristã que inspirou More na sua vida pessoal.

Stephen Grenblatt refere que “a ousadia de Utopia é medida pela extrema marginalidade da Bíblia e dos preceitos da Igreja Católica: em defesa dos princípios utópicos, Hytlodeu invoca muitas vezes a «doutrina» e a «autoridade» de Cristo mas as implicações desta autoridade não são esclarecidas.”166

Neste sentido, a prática religiosa plural que guiava a conduta moral utopiana assenta num desejo de felicidade e de vivência humanista que se distancia das práticas de ascese moral de eremitas e ascetas que sacrificavam a sua natureza em nome da salvação das suas almas.

Uma das formas de manifestação da religiosidade utopiana é de natureza panteísta, assente na crença num ser supremo que está em todas as coisas, racionalmente aceite e não adorado por qualquer revelação transcendente. A religiosidade pura não é incompatível com esta crença nas forças divinizadas da natureza, tida como uma expressão fundamental da Verdade e da harmonia cósmica. Viver de acordo com a natureza é já preparar a salvação da alma, sendo esta entendida e concebida um pouco à luz do que diz o pensador de língua grega Plotino quando a identifica como a sede das virtudes morais, ou o verdadeiro Reino interior do homem espiritual.

Os cultos religiosos realizavam-se quer em ambientes colectivos, quer individualmente, podendo mesmo ter lugar em casa no seio da família, o lugar considerado apropriado para a prática da confissão. Nesses cultos, a música ocupava um papel preponderante como meio de pacificar o espírito e de prover à elevação dos sentimentos.

Para a estudiosa Marie Louise Berneri,167 a marca distintiva do sentimento religioso, tal como surge representado na Utopia de More, é inspirada pela Reforma luterana que recupera a mensagem do Novo Testamento da unidade e fraternidade

165 MORUS, Thomas, Op. Cit., p.633.

166 “The daring of Utopia is to be gauged by the extreme marginality of the Scripture of God and

the common faith of Christ‟s Catholic Church: in defense of Utopian principles, Hythlodaeus several times invokes the «doctrine» and «authority» of Christ, but the institutional implications of this authority are unspoken.” GREENBLATT, Stephen, Op. Cit., p.26.

167Cf. BERNERI, Marie Louise – Journey Through Utopia. New York: Schocken Books, 1971,

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humanas. É, portanto, representação dum sentimento religioso que não se atinge pela revelação divina, mas pelo coração, pela via do amor a Deus e aos homens. Joyce Oramel Hertzler parece coincidir com o pensamento desta estudiosa, quando afirma que “More procurou fazer da religião não uma fonte de divisões ou castas sociais, separadas pela barreira rígida da diferença, mas um elo de unificação social e fraterno – uma verdadeira plataforma para a perfeição individual e para o avanço social.”168

No que diz respeito à “Vtopia Nova”, continua a praticar-se a liberdade religiosa, mas, em nome de uma certa racionalidade é exercido um forte controlo sobre todo o tipo de seitas que se multiplicam no “Velho Mundo” e cuja prática é orientada não para a elevação espiritual, mas para a extorsão de dinheiro. A actividade de alguns desses grupos religiosos é assim regulamentada por motivos que se relacionam com a “saúde pública”, a “tranquilidade dos cidadãos” e a “pureza do ambiente”169

. Não se proíbem diferentes cultos religiosos, mas o dominante é um cristianismo de matriz humanista.

A religião utopiana do séc. XX é, assim, essencialmente monoteísta, continuando a prestar-se culto ao Deus da natureza “secundum naturam et rationem”170. Contudo, continua a ser uma religião “profundamente marcada pela influência do cristianismo primitivo e dos evangelhos”171. Com efeito, Miguel Hytlodeu refere que “a doutrina de Cristo, nos Evangelhos, faz parte integrante do património cultural, antigo e moderno, do […] Humanismo utopiano”172

. Os utopianos admiram a figura de Jesus Cristo e o seu “amor de Deus e do próximo”, prestam culto a S. Francisco de Assis, padroeiro de toda a “Utopia” e símbolo do amor à natureza, e “veneram Maria como modelo de mãe exemplar e praticam as virtudes do amor de Deus e do próximo”173

. É, portanto, uma religião que assume uma forma de afectividade não dissociada de uma tradição espiritual que se reporta ao amor do pai e, principalmente, ao amor da mãe. O destaque dado à figura tutelar da virgem Maria constitui uma inovação relativamente à antiga “Utopia”. Este destaque poderá talvez ser explicado à luz de um culto mariano

168 “More sought to make religion not a source of social divisions and castes, separated by the

hard line of sectarian difference, but a tie of social unification and brotherhood – a true agency for individual perfection and social advancement.” HERTZLER, Joyce Oramel, Op. Cit., p. 145.

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HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit, p 436.

170 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p 135. 171 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p 536. 172

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p 226.

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que se vem acentuando na vivência cristã do ocidente, e ao qual P. Martins terá estado atento174.

Se os utopianos se convertessem a um cristianismo primitivo, este seria semelhante ao dos Gnósticos, religiosos moderados que pretendiam ter um conhecimento completo de Deus, sobretudo ao dos Valentinianos ocidentais, “liberto dos formalismos ortodoxos”, mas sem adoptarem a mentalidade extrema pré-jansenista de violentarem as tendências naturais do corpo. Para Hytlodeu, “o único cristianismo possível em que poderia transformar-se a nossa religio natural e racional, seria o de uma religião que unisse alguns conceitos teológicos gnósticos ao essencial do pensamento cristão erasmiano.”175

Sublinha-se assim o carácter vivencial e puro da religião utopiana, por oposição a uma forma de catolicismo tutelado pela ideia de um Deus tido como um ser exclusivamente justiceiro.

Os utopianos na actualidade são “religiosamente laicos”176, na medida em que não observam um modelo institucionalizado de preceitos religiosos. A religião, como todas as demais actividades, tem apenas de ser vivida e sentida com sinceridade, quer no plano da vivência familiar, quer no da experiência comunitária. De facto, a Miguel Hytlodeu parece-lhe que a “racionalidade e a naturalidade” da sua religião nada têm a ver com os ritos sagrados instituídos no mundo não-utopiano. Neste sentido, Hytlodeu

174 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. cit., p 228.

É de referir que a escrita de Vtopia III se move num tempo em que cada vez mais o culto religioso católico dá importância ao papel de Maria na Igreja e na expressão de fé de todos os católicos, para o qual terá contribuído o Concílio Vaticano II ao esclarecer a relação entre Maria e a Igreja. A este propósito, o papa João Paulo II, em 1997, numa carta que dirige aos fiéis salienta a importância desse acto para um caminho ecuménico de fraternidade universal nele admitindo a maternidade universal de Maria e a sua importância para a salvação do mundo a par do papel desempenhado por Jesus Cristo. E continua salientando que “em tempos recentes, o aprofundamento do pensamento dos primeiros reformadores pôs em relevo posições mais abertas em relação à doutrina católica. Os escritos de Lutero manifestam, por exemplo, amor e veneração a Maria, exaltada como modelo de todas as virtudes: ele defende a excelsa santidade da Mãe de Deus e, às vezes, afirma o privilégio da Imaculada Conceição, compartilhando com outros Reformadores a fé na Virgindade perpétua de Maria” e adianta que “a preocupação de ressaltar o valor da presença da mulher na Igreja favorece o esforço por reconhecer o papel de Maria na história da salvação.” Papa João Paulo II - Carta aos Fiéis [Em linha], 1997, actual. Fevereiro 2008. [Consult.Agosto 2006]. Disponível em

(http://vatican.va/holy_father/john_paul_ii/audiences, p.2)

O culto Mariano é uma realidade cada vez mais presente na actualidade, não só no culto religioso como também noutros campos, nomeadamente no campo literário representado por Paulo Coelho. Parece- nos que José Pina Martins terá sido sensível a estas análises e tal reflecte-se na própria religião utopiana por ele descrita.

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HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit, p 417.

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cita Pico della Mirandola que nos explica a essência do pensamento religioso utopiano: “«a Filosofia procura a Verdade, a Teologia encontra-a, a Religião possui-a»”177

.

Relativamente aos membros da igreja, se na antiga “Utopia” de More os sacerdotes eram em número reduzido, apenas 13 em cada cidade, na “Nova Vtopia” continua a existir uma classe sacerdotal, não muito numerosa, formada apenas por alguns clérigos. A sua função é de manterem a unidade das crenças e transmitirem a explicação da doutrina. O matrimónio dos padres é admitido nalguns casos e o sacerdócio feminino é tido como normal, embora ainda nenhuma mulher tenha alcançado até ao presente a condição de “bispo”. Os sacerdotes e sacerdotisas continuam a ser pessoas de grandes virtudes.

Na “Nova Vtopia” a celebração da eucaristia é cristalina, neutra, em respeito ao “Senhor das altas montanhas” e, ao participarem dela, os utopianos procuram comunicar com o divino. Os templos tentam imitar na sua arquitectura a natureza através da representação de elementos nela inspirados, sendo que o seu espaço interior é circular ou triangular – símbolos de uma “proporção harmoniosa”. Os templos são erguidos ao Deus Infinito – com quem os utopianos dialogam “silenciosamente” nas festas solenes. De uma forma literária, plasticamente muito bela quase pictórica, Miguel Hytlodeu descreve um dos principais ritos, o “Rito do Esplendor no Pico do Fvlgor Radioso”, celebrado na “Nova Ausónia” (“Nova Itália”). É um rito de celebração da natureza que envolve a figuração geométrica do triângulo e se desenvolve segundo uma lógica aritmética assente em múltiplos de 3.

São também praticados vários actos simbólicos de purificação do corpo (desconhecidos na primeira “Utopia”) realizados para se despoluir o espírito e que têm lugar em diferentes fases da vida do homem. Um dos seus objectivos é apagar sinais de poluição deixados pela reincarnação para que o homem se vá “progressivamente desvinculando das misérias terrenas.”178

O acto de se purificar o corpo (realidade sensível) é assumido simbolicamente como condição para se purificar a alma (realidade inteligível).

Relativamente à forma como é encarada a morte, os utopianos foram educados no sentido de não sentirem de modo trágico a perda dos entes queridos, o que ainda sucedia na antiga “Utopia”. O culto dos mortos é praticado com fervor e os utopianos continuam a crer na imortalidade da alma.

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HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit., p 226.

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Importa ainda referir que, segundo a leitura de Daniel Serrão, exposta anteriormente, predomina na Vtopia III um certo “esoterismo triádico”, que se reflecte a nível formal e temático, e que advém de uma conjectura que explica o mundo como estando organizado segundo leis de perfeição geométrica. Neste sentido, poderíamos dizer que, no campo religioso, a Utopia III de P. Martins parece recuperar uma certa “pureza triádica ou trinitária do cristianismo”. Assim, a obra reflectiria a concepção trina do Deus cristão do Pai, do Filho e do Espírito, os três

“representando o poder, o amor e o saber; e ensinando que no poder do Pai se acredita pelas evidências, no amor do Filho se vive pelos afectos em relação aos outros, e à sabedoria do Espírito se chega pelo exercício da inteligência reflexiva. A Fé em Deus, a Caridade com os Irmãos e a Esperança em atingir a Verdade, são as peças fundamentais da estrutura triádica do Cristianismo”179.