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CAP 3 – DESCRIÇÃO DA SOCIEDADE IDEAL

3.3 Uma República democrática

3.3.1 Sistema judicial simplificado

Relativamente ao conceito de justiça refere o estudioso Nelson Saldanha que

“a idéia de justiça, tal como dela dispomos e tratamos a esta altura dos tempos, acha-se presa à dimensão moral dos atos humanos, da consciência humana e das normas que permeiam a vida social. Acha-se também ligada ao itinerário das formas de poder e à rede de conceitos e valores que vem sendo tecida durante todos os séculos que ligam a cultura antiga à ocidental: valores a que se reúnem instituições e doutrinas, reexames históricos, indagações etimológicas.”149

Na esteira deste pensamento sobre a origem e evolução histórica do direito, podemos constatar que também as utopias expressam diferentes formas de se ver a justiça em diferentes tempos e latitudes.

149 SALDANHA, Nelson – “Justiça e Utopia – Reflexões na Entrada do Milênio” in II Colóquio

Internacional do Instituto Jurídico Interdisciplinar - Direito Natural, Justiça e Política. Cunha, Paulo

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Uma das formas do exercício da justiça é por intermédio das leis. No regime republicano utopiano preconizado na “Utopia” antiga, a elaboração das leis pressupunha que elas fossem amplamente debatidas antes de serem promulgadas e, para mais facilmente serem interiorizadas, o seu teor focalizava-se sobre o essencial das matérias a serem legisladas, procedimento este que configura, de forma camuflada, uma crítica à quantidade e complexidade das leis inglesas feitas a bel-prazer pelo monarca e segundo os seus próprios interesses. As leis dos utopianos eram racionais, à semelhança das leis de Deus que também visam o que é justo e recto. Na ilha da antiga “Utopia” e, quando essas leis eram aplicadas, as penas eram proporcionais aos crimes praticados, tendo em vista a recuperação do infractor. Num certo sentido podemos considerar que nesta noção de direito, More se antecipa à reforma do ordenamento jurídico inglês iniciado após a “revolução gloriosa” nos finais do séc. XVII, e acentuado nos finais do séc. XVIII, inícios do séc. XIX, com o alargamento progressivo dos poderes do parlamento e dos direitos sociais e individuais dos cidadãos.

Na “Utopia” moriana aplicava-se a pena capital a indivíduos que conspiravam fora do senado, aos que cometiam grandes crimes, quando se verificava a reincidência em casos de adultério, ou ainda para punir qualquer revolta dos escravos. Era também punida a viagem não autorizada, o aliciamento de cometimento de actos impuros, o culto de certas crenças religiosas, o adultério ou como penalização para estrangeiros condenados à morte.

Atendendo à época em que foi escrita a obra, podemos considerar que são relativamente escassas as acções passíveis de serem criminalizadas, e a quase ausência da aplicação da pena capital pode querer significar a superioridade civilizacional do modelo da sociedade utopiana. A escravatura funcionava simultaneamente como uma instituição económica, penal e moral, e com ela visava-se inculcar um sentimento de vergonha dissuasor do cometimento de violações da lei. Neste sentido, os infractores tinham de trabalhar em espaços públicos, para servirem de exemplo a quem os observasse. A “Utopia” fora concebida de modo a que os cidadãos estivessem sempre sob observação mútua e disciplinada. Apesar dos utopianos trabalharem e se divertirem de maneira saudável e decente, não dispunham de condições para fruírem de uma vida privada sem constrições e sem vigilância exterior.

O sentimento de honra e de vergonha são, efectivamente, meios poderosos de afirmar o controlo social, estando eventualmente relacionados com a influência do policiamento religioso que se vivia na época. São, por isso, marcas de uma sociedade

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determinada a reduzir o âmbito da vida interior privada. Neste sentido, salienta Stephen Greenblatt: “ao dar-se ênfase à vergonha em vez da culpa como uma força social, a Utopia diminuiria a possibilidade dessa experiência psicológica reduzindo a vida interior e fortalecendo a consciência colectiva”150

Se a construção de uma sociedade utópica radica num sentido optimista da condição humana, a existência de um vasto conjunto de normas educativas e legislativas reguladoras da existência humana também significa que a Utopia de More, bem como as subsequentes utopias renascentistas, são construídas com base numa visão pessimista do homem, derivada da visão judaico-cristã do problema do mal original.

De facto, era o Estado que tinha a seu cargo a educação de todos os cidadãos utopianos, segundo um princípio de condicionamento e prevenção de comportamentos. Isso acontecia, nomeadamente, através da inexistência de casas de jogo ou prostituição, ou por meio do menosprezo pelos metais preciosos e seu uso em funções lúdicas ou funções menores, através de jogos com funções pedagógico-didácticas que ensinassem, por exemplo, o valor da virtude sobreposto ao vício.

A legislação, fortemente supervisionadora e coerciva também limitava ou obstava à existência de vícios na sociedade utopiana.

No que diz respeito à “Vtopia Nova” relatada por Miguel Hytlodeu, o sistema judicial continua a ser simplificado através da existência de um número restrito e claro de leis (embora ainda por vezes passíveis de várias interpretações) e representado por magistrados competentes, e profissionalmente preparados para a função que desempenham. Verifica-se, porém, que a liberdade continua também a ser limitada, sendo disso exemplo o facto de nenhum cidadão poder sair sem definir a data do seu regresso, uma prova de que todas as actividades se encontram estritamente reguladas e os infractores sujeitos a severas medidas de punição.

A reforma das leis penais da “Vtopia” remontaria a 1746. Por essa reforma determina-se que a pena de morte já não se aplicaria e que a pena máxima de reclusão passaria a ser de 33 anos, podendo, contudo, uma boa conduta reduzir a aplicação da mesma. Da punição, implicando a aplicação da escravatura ou da pena de morte, evoluiu-se para medidas de coerção prisionais associadas a um período de reeducação do indivíduo, e prevendo mesmo que os trabalhos mais pesados passassem a ser

150 “in emphasising shame rather than guilt as a social force, Utopia would diminish the

possibility of that psychological experience by reducing the inner life and strengthening communal consciousness.” GREENBLATT, Stephen, Op. Cit., p.53.

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remunerados. Assim, um período de reclusão passou a ter um carácter exemplar, devendo constituir igualmente um “meio de reeducação com vista à recuperação moral de um homem”151

. É, todavia, de realçar que Miguel Hytlodeu se insurge contra a aplicação da prisão preventiva por a considerar pouco eficaz e sujeita a níveis elevados de arbitrariedade.

Em suma, o sistema judicial na contemporânea “Utopia”, ao contrário do mundo não utopiano onde a polícia é brandamente “compreensiva”, segundo palavras do próprio M. Hytlodeu, pugna pelo cumprimento rigoroso da lei e das sanções previstas pela sua violação. No entanto, e de forma crítica, o mesmo M. Hytlodeu refere que mesmo “na Vtopia Nova […] nem tudo é perfeito, mas o regime prisional é, em [seu] entender, o menos mau que existe neste mundo corrupto e poluído, porque também entre [eles…] existe alguma corrupção ou poluição”152

. Esta nota de reconhecimento sobre as fraquezas gerais humanas é, no entanto, acompanhada da confiante certeza de que os utopianos tentam manter-se afastados de tudo que os possa corromper e da consciência de que a justiça é um problema árduo de resolver no mundo não utopiano.

As interdições incidem sobre comportamentos considerados não naturais. A par da poluição da natureza e da poluição verbal retórica, a prostituição é considerada “um atentado contra a Divindade”153

, estando, por esse facto, interdita de ser praticada. Na sua justificação filosófica e moral da aplicação da lei penal, Hytlodeu diz que “os indivíduos malbaratam os tesouros do divino que a Natureza e a razão confiaram à guarda da humanitas”154, e menciona o que considera serem outras formas de poluição, violência, violação, homicídio e pedofilia, todas elas, aliás, punidas com 33 anos de reclusão, apenas atenuadas por bom comportamento prisional. Basicamente, são puníveis todos os actos profanadores da moral e do “instinto genésico”, incluindo todos os comportamentos desviantes que, em finais de séc. XX, parecem ser comuns nas sociedades europeias ocidentais, muito particularmente nos seus meios citadinos.

É de realçar, portanto, que a existência de todo este conjunto de leis e regulamentações que definem o ordenamento jurídico da utopia coeva deve, uma vez mais, ser entendido à luz da estabilidade das instituições utopiana e da própria consciência moral utopiana. Se é verdade que as leis podem, por vezes, ser castradoras da individualidade e da liberdade moral dos utopianos, também é verdade que elas têm

151 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Op. Cit, p 487. 152 HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p. 491. 153

HYTLODEU, Migvel Mark; MARTINS, José de Pina, Ibid., p. 470.

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em vista o bem comum, dando ao homem utopiano um sentido de moral e de certeza indispensável para o seu bem-estar.

Como refere ainda Fátima Vieira,

“a visão da natureza humana que informa a organização do novo mundo utopiano é […] pessimista. Miguel Mark Hytlodeu faz questão de a definir por oposição ao optimismo de Rousseau: “(…) o homem não é naturalmente bom como pretendeu um filósofo pré-romântico. O homem tem dentro de si as duas sementes do bem e do mal. A erva daninha tem de ser cortada para que a boa possa crescer, florescer e frutificar» (p.515). Não é decerto inocente o facto de a fórmula utilizada por Miguel Mark Hytlodeu para descrever os princípios da organização social utopiana ecoar, nas palavras e na ideia, a receita avançada por Harrington no século XVII: «Leis justas, homens justos».”155

Assim, para esta estudiosa, a necessidade de se aplicar no mundo novo utopiano regulamentações a nível educativo e legislativo visando a manutenção de uma sociedade ordeira e um comportamento cívico exemplar baseados no medo das sanções e na coerção psicológica, significa que Pina Martins, à semelhança de Thomas More, continua a não acreditar na bondade natural dos homens, nem mesmo na dos novos utopianos. Quanto à tese de More como a de P. Martins parece ser que a natureza humana não é perfeita, mas é passível de aperfeiçoamento.