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4.9. Análise comparativa dos instrumentos que regem a responsabilidade do

4.9.2. Período de responsabilidade

É verdade que as situações de perda, avaria ou atraso na entrega das mercadorias são condição essencial para a responsabilização do transportador, no entanto por si só não levam à imputação de responsabilidade.

O transportador multimodal só responderá pelas perdas, avarias ou atrasos na entrega das mercadorias quando o evento as que as originou tiver ocorrido durante o período de responsabilidade do transportador, também designado por “período de custódia”. A demarcação deste período assume grande relevância prática resultando imperativo proceder à delimitação do mesmo355. Ora vejamos.

As Regras UNCTAD/ICC de 1992 estabelecem que o período de responsabilidade do transportador multimodal “covers the period from the time the

MTO has taken de goods in his charge to the time of their delivery356.” O período de responsabilidade inicia-se, assim, quando o transportador multimodal “has taken

the goods in his charge”. A regra 2.7 esclarece o que os bens são “taken in charge”

quando tiverem sido entregues e aceites para transporte pelo transportador. Exige-

as from delay in delivery.” (n.º 1 do artigo 16.º) e de acordo com as Regras de Roterdão “is liable for loss of or damage to the goods, as well as for delay in delivery” (n.º 1 do artigo 17.º)

355 A delimitação deste período assume grande relevância. Fora do período de responsabilidade os

danos que ocorram já não serão da sua responsabilidade. JOÃO RICARDO BRANCO “A responsabilidade civil do transportador”, cit., p. 143, afirma que “o período de responsabilidade inicia-se, em termos

tendenciais, com a receção pelo transportador das coisas a transportar” o autor define a receção como

“o ato jurídico pelo qual o transportador adquire conscientemente o controlo sobre as coisas com vista

à execução do transporte. Esta asserção permite entrecruzar três elementos nucleares: elemento material, cognitivo-volitivo e elemento finalístico.” Com a receção inicia-se o período de

responsabilidade – custódia – que termina quando o transportador perde o controlo sobre as coisas transportadas, i.e., a partir do momento da entrega. O autor refere, ainda, a existência de três elementos essenciais no conceito de entrega, em bom rigor: o elemento volitivo (transportador), o elemento material e o elemento volitivo (destinatário).

356 Cf. regra 4, em sentido semelhante ao disposto no artigo 14.º da CG. A CG de 1980 segue a estrutura

adotada pelas Regras de Hamburgo. No entanto, existem diferenças práticas entre os períodos de responsabilidade (cf. arts. 14.º CG e 4.º RH). Nas Regras de Hamburgo o transporte do lugar da tomada das mercadorias está limitado ao porto de carregamento e de descarga, enquanto que no transportador multimodal o lugar da tomada das mercadorias pode ir além do porto de carregamento e descarga, por ex., na estação de carga dos contentores ou fábrica/armazém do expedidor e destinatário. Os sistemas de receção e entrega das mercadorias pelo OTM têm influência no período de responsabilidade, existindo a possibilidade da entrega de um contentor que contenha já as mercadorias (FCL – full container load) ou vazio, em que o transportador terá de ir ao armazém da (LCL – less than container load)

107 se a verificação do elemento volitivo, i.e., a vontade do transportador em transportar as mercadorias.

Neste sentido LOPEZ RUEDA357 afirma que “El porteador toma a su cargo las

mercancias, salvo cláusula en contrario, cuando acepta las mercancias para el transporte. Presupone poder ejercer su derechi de verificación y estabelecer las oportunas reservas”. Se o carregador tiver simplesmente colocado as mercadorias à

disposição do transportador e este não tenha podido examiná-las, não se poderá dizer que as tenha tomado a seu cargo ou “taken in charge”, não se tendo portanto iniciado, nestas situações, o período de responsabilidade. O autor afirma, ainda, que para determinar a receção das mercadorias dever-se-á, nestas situações, utilizar o critério do artigo 4.º das Regras de Hamburgo.

Diversamente às Regras UNCTAD/ICC, a CG de 1980 não procede à definição do termo “taken in charge”, mas no artigo 2.º descreve um conjunto de situações que quando verificadas o transportador multimodal considera-se “to be in charge of the

goods.” Em concreto, a mercadoria considera-se sob a custódia do transportador

multimodal desde o momento em que as receba, a saber, do carregador ou de outra pessoa que atue em seu nome358; de uma autoridade governamental359 ou terceira parte a quem – por lei aplicável no local de receção dos bens – os bens devam ser entregues.

As Regras de Roterdão, no n.º 1 do artigo 12.º, estabelecem que o período de responsabilidade do transportador “begins when the carrier or a performing party

receives the goods for carriage and ends when the goods are delivered360.” O n.º 2 do

357 FRANCISCO CARLOS LÓPEZ RUEDA,El régimen jurídico del transporte multimodal, cit., p. 520. 358 Esta constitui a prática mais utilizada.

359 O transportador não é responsável pela perda da mercadoria se ocorrer durante o período de

tempo em que está sob o cuidado da autoridade.

360 As Regras de Roterdão estendem o período de responsabilidade do transportador

comparativamente ao regime das anteriores convenções marítimas – que se encontravam restritas às operações marítimas. Na CB de 1924, a responsabilidade do transportador inicia-se com o carregamento da mercadoria bordo do navio e termina com o descarregamento – esta regra tem a denominação de “tackle-to-tackle”. O período de responsabilidade do transportador foi estendido nas Regras de Hamburgo, passando a abranger as situações em que as mercadorias se encontram sob custódia do transportador no porto de carga, “port to port”. Nas RR o transportador assume a responsabilidade desde a receção das mercadorias até à entrega, podendo a receção ocorrer antes da chegada da mercadoria ao porto – esta extensão da responsabilidade é denominada de “door to

door”. A aplicação da regra “tackle-to-tackle” ou “port to port” nas RR “would artificially separate the transport into covered and excluded periods, a single coherent liability regime that covers the entire period of transport without the “tackle to tacke” or “port to port” limitation is both more logical from a legal perspective and more efficient from a practical perspective.” – cf. JERNEJ SEKOLEC,The Rotterdam

108 mesmo artigo – no mesmo sentido da CG de 1980 – dispõe que se a lei do local de receção exigir que o transportador levante as mercadorias “from an authority or

other third party” ou se a lei do local de entrega exigir que as mercadorias sejam

entregues “to an authority or other third party” o período de responsabilidade só terá início ou terminará após essa receção ou entrega361.

As Regras de Roterdão conferem certa liberdade contratual às partes – o que não se verifica nas Regras UNCTAD/ICC nem na CG de 1980 – autorizando que estas estipulem a hora e o lugar de receção e entrega das mercadorias, sendo possível introduzir a regra “tackle to tackle” ou “port to port” no contrato, desde que o momento de receção (ato jurídico) seja anterior ao de carregamento (ato material) ou que o momento de entrega (ato jurídico) seja posterior ao de descarregamento (ato material). É imperativo que as operações de carregamento e descarregamento se encontrem compreendidas no período de responsabilidade362.

Relativamente ao terminus do período de responsabilidade é consensual o entendimento de que esta termina com a entrega das mercadorias – “ends when the

goods are delivered 363”.

À luz das Regras UNCTAD/ICC, a entrega das mercadorias - “delivery”364 - é efetuada assim que: i) as mercadorias são entregues ao destinatário; ii) colocadas à disposição do destinatário - de acordo com o contrato, lei ou usos do comércio aplicáveis no lugar de entrega; iii) entregues a uma autoridade ou terceiro - a quem as mercadorias tenham de ser entregues de acordo com a lei aplicável no local de

cit., p. 59. Vide ainda JASENKO MARIN,“The harmonization of liability regimes concerning loss of goods during multimodal transport”, cit., p. 4.

361 De acordo com o n.º 2 do artigo 12.º “if the law or regulation of the place of receipt or the place of

destination requires that the goods be handed over to an authority or other third party, the period of responsibility shall only begin and end with the actual custody of the carrier. Therefore, the risk during the compulsory periods in which the goods remain in the custody of those authorities lies with the cargo interests.”

362 Cf. al) a) e b) do n.º 3 do artigo 12.º. Vide JERNEJ SEKOLEC,The Rotterdam Rules, The UN Convention

on ontracts for the international carriage of goods wholly or partly by sea, cit., p. 62.

363 Cf. regra 4.1 das Regras UNCTAD/ICC, artigo 14.º da CG e artigo 12.º das RR.

364 O critério acolhido pelas Regras UNCTAD/ICC de 1992 é mais amplo do que o fixado pelas Regras

109 entrega.365 Note-se, ainda, que a obrigação de entrega se encontra condicionada pela forma em que o documento de transporte foi emitido366.

Após a entrega da mercadoria o período de responsabilidade cessa – uma vez que o transportador multimodal deixa de ter controlo sobre as mercadorias – e inicia-se o prazo para intentar ações contra o transportador multimodal367.

Em suma, para identificar o período de responsabilidade do transportador multimodal é necessário determinar o período de tempo em que o transportador se encontra – do ponto de vista operacional – com domínio real ou potencial sobre as coisas transportadas. Este período de “custódia” vai desde o momento da receção das mercadorias até à sua entrega, ou seja, até ao momento em que deixa de ter controlo/domínio sobre a mercadoria368.