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A Política de Saúde Mental e o cuidado com usuários de álcool e outras drogas a

CAPÍTULO 2: POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE MENTAL

2.2. A Política de Saúde Mental e o cuidado com usuários de álcool e outras drogas a

Inicialmente se faz importante apontar, juntamente com Silva (2015), que a presença de usuários de drogas, especialmente de álcool, não é novidade no território da saúde mental e é observada desde o interior dos hospitais psiquiátricos. Em texto no qual refletem sobre o início da organização dessa política, Alves et al (1994, p. 198) apontam que “em 1992, 35,6% dos pacientes internados em hospitais psiquiátricos tinham diagnóstico associado ao alcoolismo”.

Silva (2015) ainda afirma que a expressiva presença de usuários de drogas foi posta de lado e não se destacou ao ponto de receber da reforma psiquiátrica, naquele momento, uma inscrição própria.

Em 2003, o Ministério da Saúde lançou o documento intitulado “A política integral do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas” e reconheceu a lacuna na inserção retardada dos usuários de álcool e outras drogas na política de saúde mental; tal cenário, segundo Silva (2015), pode ser compreendido como reflexo da falta de prioridade dessa questão pela saúde.

Silva (2015) também aponta pesquisas que revelam uma tendência de inversão nas morbidades mais frequentes nos hospitais psiquiátricos: os transtornos ligados ao

abuso e dependência de substâncias ultrapassou o número de atendimentos por transtornos psicóticos no ano de 2011.

Queremos aqui apontar que a perspectiva que orienta nossa análise sobre o cuidado de adolescentes com uso abusivo de drogas está pautada, como vimos indicando, na perspectiva das políticas que garantem direitos humanos e sociais; especificamente, no caso, nos princípios do SUS, Reforma Psiquiátrica, juntamente com a referência de base do ECA, em função do segmento da população de que tratamos. Nessa direção, é importante termos presente esse processo de inclusão da questão das drogas no contexto das políticas de saúde e saúde mental, como se deu, porque isso evidencia também a disputa a que nos referimos. Ou seja, a disputa, em última instância, entre uma perspectiva promotora dos sujeitos e seus direitos ou a perspectiva da repressão, que vê a questão das drogas unicamente como questão de segurança. Entretanto, questão de segurança atribuída a desvios de indivíduos, ficando, muitas vezes, em segundo plano, o combate às organizações responsáveis pelo tráfico e comercialização das drogas.

Da mesma forma, os dispositivos utilizados, na saúde mental, para o cuidado com usuários de drogas, revelam concepções diferentes que, em alguma medida, expressam as perspectivas gerais sobre os usuários de drogas em disputa na sociedade. A contraposição entre a perspectiva da Abstinência e a perspectiva da Redução de Danos, que apresentaremos a seguir, sintetizam essa questão.

É importante destacar que o modelo de cuidado central nas internações psiquiátricas para os transtornos ligados ao abuso de dependência de substâncias é o da Abstinência. Este modelo surgiu influenciado por doutrinas religiosas, nos Estados Unidos, por volta de 1820, através de um movimento protestante chamado de Movimento Temperança e que mais tarde influenciou a aprovação da Lei Seca (SILVA, 2015). Segundo Carneiro (2008), este movimento pregava a privação, o não consumo do álcool. É deste movimento a autoria da metodologia dos 12 passos, utilizada até hoje pelos grupos “Alcoólicos Anônimos”.

Mais recentemente, após a implantação da Lei 10.016/2001, com o fechamento de leitos em hospitais psiquiátricos e a implantação progressiva de serviços alternativos, ganhou espaço outra modalidade de internação, específica para casos de uso abusivo e dependência de drogas, que são as Comunidades Terapêuticas. Tal modalidade representa a perspectiva manicomial adaptada ao contexto da Reforma Psiquiátrica.

O modelo da abstinência é uma das estratégias presentes nas ações no Governo do Estado de São Paulo, e, agora em uma ação especifica do município de São Paulo,

denominadas respectivamente por Programa Recomeço e Programa Redenção7. Esta estratégia entende que o cuidado do indivíduo com o uso abusivo de drogas é fortemente influenciado pelos aspectos biológicos da dependência química, e, para este cuidado, investem consideravelmente nas internações, sejam elas em leitos psiquiátricos, nos hospitais, como também em parceria com instituições como as clínicas de recuperação e comunidades terapêuticas, sendo a internação voluntária, involuntária ou compulsória.

Para este grupo é entendido que não se deve apenas limitar o tratamento aos sintomas que são provocados pelo uso de substâncias. Para reduzir o custo social e a criminalidade é preciso reduzir a demanda por drogas. Nesse sentido, deve haver iniciativas que estimulem as pessoas a não fazer o uso de substâncias e que auxiliem aquelas que começaram a usá-las a parar. (LARANJEIRAS & ZALESKI, 2012, pág. 634).

Paralelamente, há também a estratégia da redução de danos, que teve suas primeiras experiências na Inglaterra, por volta de 1926, em que o governo autorizava o cuidado de pessoas em uso abusivo de drogas por intermédio de prescrição de “drogas aditivas” aos usuários (STIMSON, 1998). Ribeiro (2013, p. 48) aponta que a política pautava-se nas necessidades dos usuários e na normalização de suas vidas, o que implicava a “administração da droga e seu monitoramento, por um médico, a esses indivíduos”.

No Brasil, as primeiras iniciativas da estratégia de redução de danos ocorreram no município de Santos, na década de 1970, como forma de reduzir o número de infectados por AIDS, que concentravam no município mais de 50% dos casos do território nacional. Importante destacar que Santos alcançou relevantes resultados na prevenção e assistência aos usuários portadores do vírus do HIV e acometidos pela AIDS, mas restava, sem solução, a situação dos usuários de drogas injetáveis (SILVA, 2015).

Posteriormente, na mesma cidade, houve uma mobilização dos gestores municipais para a adoção da redução de danos para os usuários de drogas injetáveis; entretanto, houve uma ação do Ministério Público que impediu tal política, sob o argumento que a estratégia fazia apologia e incentivo ao uso de drogas (RIBEIRO, 2013).

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O Programa Recomeço, criado em 2013 pelo Governo do Estado de São Paulo, para o atendimento de dependentes químicos, principalmente os usuários de crack, oferecendo tratamento e acompanhamento multiprofissional ao pacientes e aos seus familiares. Fonte: http://programarecomeco.sp.gov.br/sobre-o-programa/ .

O Programa Redenção foi criado pela Prefeitura de São Paulo sob a gestão Dória no ano de 2017. A iniciativa é aplicada a usuá rios de drogas, especialmente na região da Luz acrescida com uma proposta de reurbanização do centro da capital. http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/saude/programas/index.php?p=239138

A partir deste cenário, a inserção da redução de danos no Brasil para o cuidado de usuários de droga deixa de ser uma política do Estado para se tornar uma ação da sociedade, apoiada pelo poder público e com um novo formato: não mais troca de seringas, mas distribuição de hipoclorito para desinfecção de seringas e agulhas (RIBEIRO, 2013).

A prática da redução de danos acarretou em uma diminuição do número de pessoas contaminadas pelo HIV, e, esta estratégia “passa [m] a incluir também prevenção aos outros tipos de administração de drogas, bem como as doenças sexualmente transmissíveis, hepatites virais e tuberculose” (RUI, 2014).

Após a iniciativa de Santos, ocorreram outras experiências nos municípios de Salvador e Porto Alegre, com participações de universidades, até chegarem ao âmbito do Estado, nas ações legislativas e de políticas públicas que garantissem a adoção desta estratégia (SILVA, 2015).

Atualmente, a estratégia de cuidado por intermédio da redução de danos é o posicionamento adotado pela Organização Mundial da Saúde e do Governo Federal, que apontam esse procedimento como atuação preventiva às “consequências negativas adversas do consumo, sem objetivar primariamente a redução desse consumo”. (BOITEUX et al, 2009,p. 45).

A perspectiva da redução de danos encontrou, a partir das produções da reforma psiquiátrica brasileira, um novo espaço institucional. Da mesma forma, a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial identificam-se com os pressupostos da redução de danos, na busca de um cuidado ao usuário que ultrapassasse as barreiras da discriminação, criminalização e exclusão do indivíduo (SILVA, 2015).

Tal direção é possível considerando-se que a redução de danos é uma política de saúde que se propõe a reduzir os prejuízos de natureza biológica, social e econômica do uso de drogas, pautada no respeito ao indivíduo e no seu direito de consumir drogas (ANDRADE et al, 2001).

Com essa orientação, o Ministério da Saúde assume de modo integral e articulado o desafio de prevenir, tratar, reabilitar os usuários de álcool e outras drogas e, para isto, fortalece como estratégia de cuidados a Política de Redução de Danos (RD). Esta estratégia também surge em consonância com os princípios da Reforma Sanitária, do Movimento da Luta Antimanicomial e da Lei da Reforma Psiquiátrica, que entendem a saúde para além da questão moral.

Ao centrar a atenção não no consumo das drogas, mas nas histórias individuais, nas singularidades, centrando-se no desejo, na demanda e na necessidade do usuário do

sistema, a redução de danos oferta a perspectiva de não exclusão social do usuário e a construção de estratégias em defesa da vida. Entende-se assim que o lócus da ação pode ser em diferentes equipamentos de saúde, mas também pode se dar em conjunto com os serviços de educação, de trabalho, de assistência social, entre outros dispositivos que passam a compor a rede desse usuário (BRASIL, 2003).

Esta estratégia entende que as alternativas de cuidado não são impostas de forma autoritária, levando em consideração somente o saber do profissional da saúde, mas são desenvolvidas com a participação ativa do usuário nos atendimentos, levando em consideração as necessidades do indivíduo como um todo.

Pensando especificamente a RD voltada a crianças e adolescentes, o documento ABC da Redução de Danos, da Secretaria de Saúde de Santa Catarina aponta que se faz necessário levar em consideração “valores, crenças, costumes e práticas individuais e grupais, sua linguagem e simbologia, questões de sexualidade e gênero, de sociabilidade e grupos, além dos aspectos psicofarmacológicos das drogas, do contexto sociocultural de vida, das características biológicas e psicológicas desses jovens” (GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 2003, pág. 10).

O mesmo documento destaca que o fenômeno da exclusão social atravessa a infância e a adolescência tornando-as mais suscetíveis a vulnerabilidades sociais e que a redução de danos deve construir parcerias em rede, dos diversos setores governamentais, além das instituições da sociedade civil, visando à criação de espaços de acolhimento, estruturados por meio de vínculos de confiança entre técnicos e usuários, nos quais o foco da intervenção não é o consumo de drogas, mas sim a promoção de alternativas de lazer, de atividades esportivas e culturais, de resgate da cidadania, por meio da inserção numa rede sociofamiliar que, contando ou não com a família biológica, possa promover saúde e cidadania (GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, 2003, pág. 10).

Atualmente observam-se ainda muitos desafios para a adesão à prática de redução de danos na saúde pública, principalmente quando esta deve ser aplicada para crianças e adolescentes. Um dos desafios passa, exatamente, pela superação de uma compreensão incorreta da relação que o adolescente estabelece com a droga, com análise individualizante, moralizante e criminalizante de que a questão central seja somente o indivíduo e suas características individuais. Isso dificulta a compreensão da redução de danos como uma perspectiva de leitura que vai além, considerando as relações do indivíduo com a droga, o contexto em que se dá e também o cuidado ofertado.

Loureiro (2011) aponta que a sociedade, ao se deparar com a questão do uso de drogas entre crianças e adolescentes, constrói uma expectativa heroica de que esta situação seja superada, “curada”, com algum remédio e em espaços de internação à força. Entretanto para o mesmo autor este olhar moral e messiânico, ao ser revivido por políticas públicas, serviços e trabalhadores da rede, impede uma aproximação real do sujeito para o qual pretendemos olhar. Nesta postura, convocamos para que a nossa expectativa esteja em primeiro plano, ao invés do usuário, caindo no risco de produzir pensamentos e atitudes como “você não pode fazer isto por mim” e “você vai me deixar triste”, impondo, dessa maneira o olhar do profissional ao sujeito atendido.

No município de São Paulo observamos a prática da Redução de Danos nos CAPS AD e CAPS IJ, além dos demais equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial que, dentro da sua especificidade de atuação, podem produzir práticas condizentes com essa referência.

Reali (2004) sintetizou em um quadro comparativo, apresentado abaixo, o contraste entre as duas propostas: redução de danos e o modelo proibicionista.

Tabela 03. Quadro comparativo Modelo Proibicionista x Redução de Danos

MODELOS PROIBICIONISTAS/ABSTINÊNCIA REDUÇÃO DE DANOS

Problema enfocado Uso de drogas em si Danos / uso de drogas Política de Drogas Guerra às Drogas Tolerante / pragmática Prioridade Repressão ao uso de drogas ilícitas e

tráfico.

Redução de Danos à saúde individual e coletiva

Postura em relação à droga

Moralismo: estigmatização UD Realística / pragmática Papel / posição do

Estado

Controle abusivo do cidadão - Provê serviços para UDs - Apoia organizações UD. - Prega Direito dos UDs. Prevenção de drogas “sociedade livre de drogas” Dano / risco associado ao abuso Sistema de Atenção à

Saúde (Serviços)

Atendimento médico individual “alta exigência”

objetivo: abstinência

Vários tipos de serviços “baixa exigência8

“busca ativa9

Prevenção da AIDS entre UDS / UDIs

Dificultada por restrições legais Articulada como prioridade da saúde pública

Em entrevista dirigida à Revista Rede Brasil Atual em 13/02/2017, o professor da Universidade Federal do Estado de São Paulo, Dartiu Xavier da Silveira, enfatiza que a polarização entre os defensores do modelo de redução de danos e o da internação só existe por aqui. “Fora do Brasil não há polaridade. Um bom exemplo é o Canadá, onde o

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“Alta ou baixa exigência” refere-se a critérios de inclusão no tratamento com graus distintos de exigência ampliando a aceitação para pacientes interessados em cuidar de algum aspecto da saúde sem necessariamente tratar-se da dependência de drogas em si.

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modelo é estatizado e ninguém lucra com ele. Então lá não há discussão, pois a internação é muito cara e sabidamente ineficiente.”

Nesta mesma entrevista, Dartiu Xavier é enfático ao destacar que a política das internações é sustentada por interesses econômicos e não científicos ou de saúde, considerando as evidências de pouca ou nenhuma eficácia desse modelo. Segundo o professor, tais interesses econômicos estão presentes inclusive no meio acadêmico, com nítido conflito ético em torno de pesquisadores e especialistas que são também donos de clínicas.

“Há um brutal interesse econômico que sustenta esses programas”, diz, referindo-se aos recursos públicos dirigidos às comunidades terapêuticas, como acontece no programa Recomeço do Governo do Estado, que está previsto de se repetir, atualmente, no Programa Redenção, do prefeito João Doria. O professor da Unifesp pondera que os defensores das comunidades terapêuticas alegam que, sem elas, o Estado não teria condições de tratar os dependentes químicos, um argumento que, para ele, não é justificativa. 10

Neste contexto, levaremos em consideração a prática da redução de danos como uma política de cuidado, entendendo que esta perspectiva oferta condições no manejo do atendimento de crianças e adolescentes em uso e abuso de drogas, por intermédio de ações intersetoriais e, também, especificamente como uma estratégia de cuidado a ser adotada pelo CAPS, respeitando as especificidades e singularidade de cada equipamento e do usuário.