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2 O CAMPO DA PESQUISA EM POLITICAS PÚBLICAS PARA EDUCAÇÃO:

2.1 Políticas públicas: uma definição necessária

Por ser considerada complexa essa temática há a necessidade de explicitar o sentido do termo políticas públicas que será adotado nesse trabalho, tendo em vista a existência de distintas formulações conceituais em seu entorno. Antecede esta definição o reconhecimento de que qualquer conceito de política pública apresentado isoladamente não atenderá aos propósitos dessa tese. Sendo assim, reconhecemos ser intrínseca a relação entre Estado, sociedade civil e políticas públicas, relação esta que permeia o desenvolvimento desta abordagem. Lembramos que se trata de uma análise que objetiva discutir as intencionalidades relacionadas ao processo de concepção e implementação da política de expansão da rede federal de educação profissional, com especial enfoque nos efeitos para os processos de gestão, articulando esta análise com os condicionantes nacionais e internacionais envolvidos no percurso da constituição dessa política.

O termo política pública, em sua evolução histórica esteve vinculado à noção de progresso, conforme apresentou Heidemann (2010). A ideia de progresso remonta ao período da Renascença, no século XVII e motivou os ocidentais por séculos ao expressar a busca por aperfeiçoamento em escala crescente, atribuindo às novas gerações e épocas o status de mais avançadas por conta do acúmulo de conhecimentos e experiências. Essa concepção vigorou até o século XIX, data que coincide com ascensão do liberalismo clássico. Nessa época a intervenção do Estado na economia era irrelevante e sua atuação restrita às questões jurídicas, diplomáticas e educativas. Contudo, a regulação da economia pelo mercado deu origem a problemas sociais que só poderiam ser administrados na esfera pública.

(...) a liberdade quase absoluta dos indivíduos trouxe problemas, por desconsiderar as dimensões comunais da vida humana, com seus problemas e soluções pela via política. Por isso, no contrato social que prevaleceu no século 20, a liberdade individual foi reduzida na proporção do poder exercido pela comunidade política para estabelecer leis e impor limites às atividades individuais, sobretudo no campo econômico. Cresceu então o papel do Estado e diminuiu a importância do mercado auto-regulado na regra do jogo da vida humana associada (HEIDEMANN, 2010, p. 25).

No século XX, passa-se a conceber com desconfiança as teses que sustentaram por três séculos as crenças no progresso, mormente pelo advento das duas guerras mundiais e a crise de valores instaurada. Soma-se a isso a incapacidade do liberalismo econômico de assegurar condições de manutenção de espaços coletivos, bem como de garantir o respeito aos limites do contrato social que vigorou até este século, tendo em vista os crescentes interesses privados. Essa situação fez emergir um novo papel para o Estado, agora com interferência

direta nas relações econômicas e expressa de duas maneiras distintas: no estabelecimento de leis com caráter regulador e na criação e administração das empresas estatais, surgindo assim as políticas governamentais (HEIDEMANN, 2010).

Não se pode desconsiderar que a abordagem apresentada por Heidemann (2010) tende a uma percepção de Estado na lógica do capitalismo, o qual hegemonicamente tem prevalecido em diversos países do globo desde a sua constituição. Além disso, a contextualização histórica é de grande relevância, contudo, não é suficiente para a compreensão do significado do termo política pública, por vezes denominada de forma indistinta de política social. Antes, faz-se necessário reconhecer a variedade de perspectivas e referenciais teóricos que tornam característicos tais conceitos.

De acordo com a proposição de Heidemann (2010), as políticas públicas estão vinculadas a uma nova concepção de Estado, designando sua forma de atuação. Mas, Viana (2006) adverte que os termos “público” e “social” são vagos e imprecisos, sugerindo que a atenção deve voltar-se para uma vertente mais ampliada, que extrapole a simples terminologia. Nessa discussão, três questões são fundamentais: a origem das políticas, como são estabelecidas e a quem beneficia. Esse ponto de vista é complementar à definição de Laswell, um dos fundadores da área de políticas públicas, e suas famosas indagações imbricadas a esse conceito: quem ganha o que, por quê e que diferença faz (SOUZA, 2006).

Esta discussão sobre política pública perpassa também por questões relacionadas à concepção de Estado presente em cada país. Nos termos propostos por Offe, considerando o nosso modelo de Estado de classe,

a política social não é mera ‘reação’ do Estado aos ‘problemas’ da classe operária, mas contribui de forma indispensável para a constituição dessa classe. A função mais importante da política social consiste em regulamentar o processo de proletarização. Não podemos conceber, em outras palavras, o processo de proletarização como um processo de massas, contínuo e relativamente sem regressões, sem pensar ao mesmo tempo a função constitutiva da política social do Estado (OFFE, 1994, p. 22).

Todavia, na contramão desse processo, ainda que de forma fragmentada e dispersa, as pressões sociais dessas classes são um relevante aspecto para atribuir distintos contornos a estas políticas, contribuindo para que o Estado reaja se especializando em estratégias de manutenção dessa conjuntura. Nessa arena de disputas, é nítido o jogo de poder entre interesses antagônicos, o que torna dinâmico o processo de construção e desenvolvimento de uma política pública e fragiliza a crença em um determinismo que confira ao Estado o papel de único agente na proposição de políticas. Contudo, a história tem demonstrado que as

vitórias esporádicas dos movimentos sociais não têm sido suficientes para promover transformações sociais profundas, antes as estratégias da classe dominante com a preciosa parceria do Estado tem buscado um consenso para alguns conflitos sociais históricos. Este consenso é construído a partir de algumas concessões, interpretadas, por vezes, como vantajosas para os participantes desses movimentos. Dessa maneira, são mantidas as condições de permanência do sistema capitalista.

Apesar dessas observações, adotamos aqui o conceito de Estado desenvolvido por Claus Offe, teórico adepto à concepção marxista que amplia as teorias tradicionais, trazendo novos elementos para discutir a relação entre Estado e mudanças sociais, levando em consideração a dimensão política. Conforme sinaliza Höfling (2001, p.4), na concepção de Offe (1984), “o Estado atua como regulador das relações sociais a serviço da manutenção das relações capitalistas em seu conjunto, e não especificamente a serviço dos interesses do capital – a despeito de reconhecer a dominação deste nas relações de classe”.

Na visão de Offe (1984), o Estado defende os interesses comuns daqueles que compõem a sociedade capitalista de classe, essa compreensão faz com que a análise sobre a ação do Estado não se concentre em uma determinada classe, mas nas relações estabelecidas para a permanência dessa divisão. Assim, o Estado burguês sede espaço para o Estado classista que age em favor das condições de inserção no mercado, por meio da produção e distribuição de bens e serviços ou da força de trabalho:

[...] seu objetivo é criar e preservar as condições sob as quais possa perpetuar-se o processo de troca através do qual todos os valores da sociedade capitalista são reproduzidos. O fato de que certos grupos capitalistas (ou categorias da força de trabalho) sejam mais favorecidos que outros, não é o objetivo, mas o sub-produto necessário de uma política que está voltada, de forma abstrata, para a conservação e a universalização da forma mercadoria (OFFE; RONGE, 1984, p. 129).

Offe e Lenhardt (1984, p.17) apresentaram a tese de que a ação estatal é fundamental para a transformação da condição de proletarização passiva para a de proletarização ativa, promovendo a mudança de condição da “força de trabalho despossuída em trabalho assalariado”. No entendimento desses autores há alguns fundamentos para que “as formas de existência externas ao mercado de trabalho, sejam organizadas e sancionadas pelo Estado”. Destacam-se nesse processo as regulamentações políticas formalizadas e a capacidade do Estado em manter o controle sobre as condições de vida e das pessoas sujeitas ao processo de proletarização, tornando-os disponíveis a oferecer a sua força de trabalho como mercadoria e aceitando de forma pacífica as condições degradantes desse processo. Nessa atuação, o Estado

definiria, por meio da regulamentação política, “quem pode e quem não pode tornar-se trabalhador assalariado”. Nesse sentido, a política social por meio do aparato estatal se ocuparia de prover as condições para a formação desse tipo de trabalhador.

Rodrigues (2010) faz a distinção entre políticas públicas – ações do Estado em perspectiva ampla – e políticas sociais, relativa às políticas setoriais específicas (saúde, educação, saneamento, segurança etc.), definindo esta última como subconjunto da primeira. A autora apresenta uma definição razoável de política ao classificá-la como “um conjunto de procedimentos que expressam relações de poder e que se orienta à resolução de conflitos no que se refere aos bens públicos” (RODRIGUES, 2010, p.13). Contudo, esse conceito se apresenta de maneira pragmática, pois se pensarmos na perspectiva da arena de disputa presente desde a prospecção à avaliação de uma política, nem sempre o conflito deixará de existir. É relevante destacar que nesses espaços há um movimento constante que envolve disputas, contradições, relações de poder e subjetividades inerentes às distintas concepções dos grupos envolvidos.

O termo política pública, nos moldes concebidos na atualidade, tem sido amplamente utilizado a partir da década de 70, quando o capitalismo experimentou mais uma de suas crises cíclicas. Contudo, este termo tem admitido uma variedade de sentidos e significados que o torna tanto uma alternativa para a atuação do Estado frente aos desafios contemporâneos, como alvo de diversos questionamentos por não ter um fim em si mesmo, estando sempre vinculado a uma concepção específica de Estado e de sociedade. Portanto, em toda abordagem deve ser considerado o monopólio que o Estado exerce sobre as políticas, conforme o alerta feito por Azevedo (2004, p. 5) “(...) em um plano mais concreto, o conceito de políticas públicas implica considerar os recursos de poder que operam na sua definição e que têm nas instituições do Estado, sobretudo na máquina governamental, o seu principal referente”.

Ainda em termos conceituais, Frey (2000, p.6) adverte que na ciência política três conceitos em inglês são bastante recorrentes quando o assunto é política pública: polity – para denominar as instituições políticas e sua sistemática jurídica, institucional e político- administrativa; politics – para os processos políticos e os conflitos deles decorrentes; e policy – para os conteúdos da política expresso em forma de programas e projetos e a materialização das decisões. O autor argumenta sobre a interrelação entre esses conceitos e destaca que não podem ser apreendidos separadamente, sob pena de um esvaziamento do seu sentido. Sendo

assim, a ordem política concreta forma o quadro, dentro do qual se efetiva a política material por meio de estratégias políticas de conflito e de consenso (SCHUBERT, 1991, p. 26).

Na obra de Azevedo (2004) encontramos alguns fundamentos para a constituição da educação como uma política pública. A autora faz um alerta para as diferentes concepções de Estado presentes em três abordagens específicas: a neoliberal, a teoria liberal moderna da cidadania e abordagem marxista. A opção por uma das abordagens propostas conduz a um modelo de análise limitado às respectivas concepções subjacentes a cada abordagem, condicionando assim não só o entendimento, mas os próprios objetivos de uma determinada política. Além disso, autora ressaltou a relação entre política pública e o universo simbólico e cultural inerente à realidade social.

Em se tratando da educação profissional, Offe e Lenhardt (1984, p.21) registraram um fenômeno já em ascensão na década de 1980, com indicação de mudanças na ação do Estado com relação a suas instituições de formação, com vista ao atendimento ao novo cenário imposto pela dinâmica do mercado de trabalho.

Na medida em que as qualificações profissionais não mais podem ser adquiridas e constantemente renovadas pela experiência, e em que as qualificações culturais genéricas não bastam para preservar o emprego, as oportunidades para uma participação permanente no mercado de trabalho se deterioram.

Não se pode desconsiderar também que a definição de política pública por vezes extrapola o âmbito local e apresenta interfaces com interesses de uma elite global – com atuação em diferentes e importantes espaços de decisão coletiva – e agências de fomento (Fundo Monetário Internacional – FMI, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio – OMC, etc.), que agem conforme os ditames de uma economia de mercado.

Um conceito bastante difundido de política pública com relação direta com o que pode ser observado na prática foi desenvolvido pelo cientista político Thomas Dye (2005) e parte da caracterização da ação ou inércia do governo em relação às questões sociais. Para além da ideia de política governamental, as discussões recentes conduzem para a necessidade de criação de políticas que ultrapassem os governos e assumam um caráter de permanência, se configurando como política de Estado. Nessa perspectiva, a continuidade das ações e a possibilidade de intensificar os resultados delas decorrentes justificariam a criação de políticas de longo alcance.

Diante do exposto, concebemos a impossibilidade de definições pragmáticas e simplistas para nominar um fenômeno tão complexo. Desse modo, entendemos política

pública como uma construção oriunda de um contexto histórico no qual está em jogo uma diversidade de valores e concepções fragmentadas de sociedade, mas que vão ganhando forma e contornos nítidos em uma arena de disputa de interesses que envolvem diferentes organizações e atores, sendo o Estado o responsável por dar unidade a estas propostas por meio de regulamentações e regulações específicas, desenvolvendo por vezes o papel de indutor da política, contudo, este nem sempre detém o controle dos processos de materialização das mesmas, tendo em vista que os sujeitos envolvidos e as instituições interferem na implementação, o que redimensiona a própria concepção de Estado.

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