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5. Análise das reportagens

5.2. Quem é o dedo duro?

5.2.4. Ponto de vista da terceira pessoa

O ponto de vista da terceira pessoa é o quarto procedimento do Novo Jornalismo utilizado por João Antônio em “Quem é o dedo duro?”. O personagem por meio do qual o leitor conhece as sensações da reportagem analisada é Zé Peteleco. Em diversos trechos, ainda que a voz do narrador permaneça na pessoa do repórter – Zé Peteleco é sempre considerado na terceira pessoa, e nunca narra sua história em primeira pessoa –, muitos trechos relatam situações não observadas por João Antônio, mas vividas pelo personagem e relatadas ao repórter.

O foco narrativo permanece no agente dedo-duro na maior parte da reportagem, a começar pelos acontecimentos que o levaram a abandonar Carapicuíba, onde nascera, e chegar à Boca do Lixo: “Caiu na Capital. Pegou, como quem começa, maus pedaços. Engraxou e esmolou, coisa que não gosta de lembrar.” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 91). “Era novo, mirrado e, como estivesse com um pé na boca do crime, foi ali mesmo que conheceu todos os tipos de malas (malandros)” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 91).

Outro exemplo do uso do ponto de vista da terceira pessoa na reportagem aparece quando João Antônio dá a conhecer a primeira impressão de Zé Peteleco sobre o encontro com o policial de quem viraria informante: “Foi assim que Zé pensou estar fazendo amizade com um rato legal, um boa gente da polícia” (JOÃO ANTÔNIO,

1968a, p. 93, grifos do autor). Depois de conhecer o policial, o dedo duro começou a trabalhar para ele, aprendeu rapidamente, e três dias depois trazia resultados para o policial: “Deu seu primeiro serviço. Chegou-se para o tira e endedou Tição. Encheu as bochechas e falou: - O negócio é com Tição mesmo. Ele está gordo e ainda não queimou nem metade da grana afanada” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 93, negrito do autor).

Zé Peteleco começa a tomar gosto pelo trabalho como dedo duro, e a partir disso, deseja se tornar policial: “Peteleco já tem vontade de ser policial. Ainda que tipos ajuizados lhe advirtam que, na continuação, aquela vida não compensa” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 95). Ele passa a agir de maneira diferente quando está com os policiais: “Quando sai na perua com os tiras, vai ansioso, interessado e contente, porque está a campo para dar cana.”

Fingir ser valente quando está em grupo lhe rende uma deficiência na perna: Eram todos dedos moles – gente que pega num revólver e aperta mesmo, põe o indicador no gatilho. Peteleco chegou junto com o pessoal da dona maria (polícia) e teve de desempenhar papel de macho. Os ladrões resistiram e foi uma maquinada (tiroteio, bala por todos os lados). Peteleco, de natural medroso, apavorado, não podia demonstrar sua frouxidão aos policiais. E partiu para a linha de frente,

marcou bobeira (se expôs exageradamente), quase foi apagado.

Levou dois tecos na perna esquerda. É por isso que ele puxa a perna (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 97, grifos do autor).

O leitor conhece “Quem é o dedo duro?” pelas experiências de Zé Peteleco: “Lá fora uma viatura policial já parou e os investigadores entram no salão. Peteleco procura se encostar a um mulato, fica plantado ali, disfarçado. Eis o código: se encostar ao mulato. O beijo de Judas. Os homens da lei agem com rapidez” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 97).

Nos trechos em que João Antônio utiliza a narração cena-a-cena, ou seja, a sequência em que Zé ajuda a prender a quadrilha de ladrões, o ponto de vista também é o do dedo duro, como na ocasião em que ele fuma maconha com os bandidos e, na tentativa de ganhar a confiança deles, mente que saiu do Rio de Janeiro fugido da polícia.

Falou e correu os olhos pela roda, furtivamente. Conferiu o efeito, viu que convencia. (Se conseguisse um daqueles homens, apenas um, seria um grande ponto a seu favor na polícia, um sucesso. Porque aquele traria o outro. O segundo traria o terceiro, e assim viria a quadrilha toda. Seria a chamada carambola, todos acabariam

apanhados, inclusive os receptadores). (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 99).

Além de centrar a narrativa em Zé Peteleco, o repórter revela o raciocínio do dedo duro no momento em que os fatos se desenrolavam. Numa reportagem convencional, o raciocínio provavelmente estaria em um discurso indireto, e o texto seria algo como “Zé Peteleco afirmou que, no momento em que conversava, pensou...”. A estratégia do Novo Jornalismo de colocar o leitor “dentro” da cabeça do personagem torna a narrativa mais dinâmica.

Toda a reportagem de João Antônio destina-se a responder a pergunta-título: “Quem é o dedo duro?”. Zé Peteleco é o personagem escolhido pelo repórter para apresentar a vida desses homens que vivem sobre a linha tênue entre a lei e o crime. Para isso, João Antônio utilizou todos os quatro procedimentos do Novo Jornalismo descritos por Tom Wolfe. Esses recursos conferiram ao texto vivacidade, combinando o Novo Jornalismo ao estilo de João Antônio. O tema, a marginalidade, é recorrente nas reportagens dele, como já observado, e isso pode explicar o intenso uso de gírias ao longo do texto. Os quatro procedimentos aparecem misturados entre si e com o tema marginal. Nos fragmentos em que se nota a narração cena-a-cena, também é possível perceber o registro de hábitos e costumes, o uso de diálogos inteiros e do ponto de vista da terceira pessoa, que no caso em análise não se desloca de um personagem para o outro, mas se fixa em Zé Peteleco, incluindo até o raciocínio do protagonista. João Antônio usa os procedimentos do Novo Jornalismo para inserir o leitor em uma realidade que não faz parte do dia-a-dia do público alvo da revista, mas que era bem conhecida por ele próprio. O dedo duro anda, conforme a reportagem, no universo mais frequentemente retratado por João Antônio: ele é mais um personagem que transita por botecos, favelas, ruas e prostíbulos, acompanhado de malandros, bandidos e prostitutas, bebendo, jogando sinuca e ganhando a vida de maneira pouco ortodoxa.