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5. Análise das reportagens

5.2. Quem é o dedo duro?

5.2.2. Registro dos diálogos completos:

Outro procedimento do Novo Jornalismo utilizado por João Antônio em “Quem é o dedo duro?” é o registro dos diálogos completos. Esse procedimento confere realismo ao texto e prende a atenção do leitor. Não se trata somente de transcrever conversas longas, mas também de registrar trechos curtos que sejam importantes para

que o leitor perceba o estado de espírito de quem está falando. Em outras palavras, é a inclusão de trechos que, no jornalismo convencional, seriam suprimidos para economizar espaço, mas que ajudam o leitor a sentir-se como se estivesse dentro do acontecimento.

É o caso da cena em que, no início da reportagem, os policiais invadem o esconderijo da quadrilha de ladrões delatada por Zé Peteleco:

Um dos tiras investe, de supetão, aos gritos: - Pra dentro!

O crioulo Macalé quer ensaiar alguma coisa:

- Mas isto foi caguetagem! Alguém aqui abriu o bico. O tira interrompe aos safanões:

- Foi... foi uma droga. Pra frente, ô rapaz! Você vai é entrar no pau! Os outros policiais perdem a paciência. Um, dois, três tapas estalam. Torcem braços, exigem urgência.

- Pra dentro, cambada! (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 91).

O registro de diálogos também aparece na ocasião em que um policial convence Zé Peteleco a se tornar um dedo duro.

- Qual nada, rapaz! O meu negócio é cuidar de você. Se trabalhar direitinho, legal, eu arranjo uma colocação para você lá no Departamento. E lhe dou toda a cobertura. Você nunca mais vai tomar

estarro, não vai entrar mais em cana, nem vai ter perturbação com os

homens da lei. Tá? É papo firme, não dá no bico. Aí, Zé Peteleco se encolheu, prometendo: - Tá legal, vou ver o que posso fazer.

Mas o tira advertiu, limitando a confiança, para evitar liberdades e inconveniências. E, já mandando:

- Vê se dá uma maneirada com a bebida. Juízo. Quando o bicho bebe demais, fica zonzeira, goiaba, melado e muito louco. Acaba falando mais do que deve. Vê lá o que me apronta. (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 93, grifo do autor).

O recurso é utilizado novamente em um diálogo entre dois policiais, ouvido pelo informante:

Às vezes ele saca (percebe) um tira dizendo baixinho ao ouvido do outro:

- Olho no Peteleco.

E ele já sabe o que aquilo significa:

- Eu ando cabreiro com peteleco. Essa peça se mudou lá pro subúrbio e eu sei que naquela paróquia (praça, lugar) anda havendo um chorrilho (série) de assaltos a residências. E o Peteleco não tem apresentado muito serviço. Sabe como é que é: quem entrega de um lado, entrega do outro (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 95).

Assim também, o diálogo entre o dedo duro e o homem que o leva a ladrões acontece num salão de bilhar de um bairro de periferia:

- Ô meu compadre, onde é que eu posso arranjar um cheio?

Cheio é um pacau, quantidade suficiente para uma boa porção de cigarros.

O escurinho o olhou, desconfiado, cabreiro: - Não sei, não. Eu não trato disso.

Peteleco cortou rente, abriu uma fala de simpatia:

- Que nada, meu irmão, Será que você está me estranhando? Eu sou limpeza, sou cadeeiro (que já tomou muita cadeia). Pode botar fé – e se abriu num sorriso –, meu nome é Carioca.

O crioulinho se explicou:

- Não é por nada, não. Mas sabe como é que é: a gente não conhece e tem que andar desconfiado (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, pp. 97 e 99).

Outro trecho em que João Antônio registra um diálogo completo é quando Zé Peteleco chega ao local onde a quadrilha se reúne para fazer um primeiro contato com o bando. A estratégia de Zé Peteleco é comprar grande quantidade de maconha, para conseguir se passar por traficante e ganhar a confiança dos marginais.

Um deles falou ao escurinho:

- Chega mais pra cá, Macalé, vamos dar uma bola na coisa (bola, borrifo ou presilha significam tragadas na maconha). E o chapa, aí, é teu camarada? O crioulo Macalé confirmou. E perguntou a Zé Peteleco o quanto ia querer de maconha.

- Manda logo um pacau, que eu estou numa falta que não tem mais tamanho. (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 99)

O último trecho da reportagem em que João Antônio registra um diálogo completo é a conversa que Zé Peteleco tem com um bandido, em que é acertada a venda de mercadoria roubada que ensejaria a prisão de todo o bando:

- Vai dizendo, meu. Qual é o galho?

- O negócio é que o Macalé me disse que você está a fim de comprar uns bagulhos. Bem. Juntou a fome com a vontade de comer.

Zé Peteleco impaciente. Mas se aguenta. Fala com cabimento e até modéstia:

- Positivo. Certinho. Se não for muita grana, a gente pode chegar num entendimento. Espera aí.

Peteleco finge estudar um encontro.

- Amanhã a gente se cruza, tá? Onde posso ver os bagulhos? O outro foi rápido:

- No mesmo lugar. Lá no esquisito. Amanhã às onze e meia da noite (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 99).

É possível perceber que o recurso de registrar diálogos inteiros foi bastante utilizado por João Antônio ao longo do texto, incluindo expressões e falas inteiras que

seriam suprimidas em uma reportagem de jornalismo convencional. São gírias e vícios de linguagem que, na fala do dia-a-dia podem passar despercebidos, mas que, por escrito, ajudam o leitor a perceber melhor as características e o estado de espírito do personagem que está falando. É o caso de “sabe como é que é” e “não sei, não”. O procedimento, segundo Wolfe (2005, p. 54), “estabelece e define o personagem mais depressa do que qualquer outro recurso”. Em “Quem é o dedo duro?”, essa maneira de registrar os diálogos serve ainda para conformar o perfil de policiais, bandidos e informantes que aparecem no texto.

5.2.3. Registro de hábitos e costumes

O registro de hábitos e costumes é um mais um artifício do Novo Jornalismo que confere realismo ao texto. João Antônio utiliza esse procedimento em diversos trechos de “Quem é o dedo duro?”. O texto está repleto do jargão do universo da marginalidade, habitado pelo personagem principal. É o caso da explicação sobre a vida amorosa de Zé Peteleco, que coincide com um dos modos como ele consegue dinheiro para se manter e uma moradia:

Com o tempo, arranhou uma moleza, um mingau, uma otária (mulher da vida, fácil de dar dinheiro a seu homem, fácil de dobrar). Zé entrava com o amor e ela com o resto – cama, no próprio bordel, onde ele aparecia para dormir depois das três da manhã, terminado o trabalho das mulheres; comida, cigarros e uma notinha (um dinheirinho) todo santo dia (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 91, negritos do autor).

Descrita a forma de subsistência, João Antônio registra o dia-a-dia de Zé Peteleco, o que começa a explicar os motivos que o levaram a viver como dedo duro: “Quando em quando, se distraía, abusava dos copos do botequim e ficava bobeando. Essa bobeira (estar à toa, sem nada para fazer) em plena Boca do Lixo dá xadrez com facilidade” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 93). Sem trabalhar e convivendo com a bandidagem em locais de reputação duvidosa, Zé Peteleco seria um alvo fácil para a polícia. De fato, ele chamou a atenção de um policial interessado em ter um informante: O bom menino tinha quase todas as qualidades para se tornar um homem de dar o serviço, um boca mole: mirradinho, desses que, quando não estão bêbados, mais ouvem do que falam, covardezinho e, disfarçado, desbaratinado, capaz de passar por malandrinho, poderia ser infiltrado de campana (para espionar) em várias situações (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 93, grifos do autor).

As gírias são recorrentes ao longo do texto. Com isso, o repórter mostra ao leitor que o ambiente retratado é reservado aos iniciados, aos que compreendem o que aqueles termos significam. É possível perceber um esforço de João Antônio para fazer o leitor compreender essas palavras. Deve-se lembrar de que o público-alvo de Realidade é composto por homens e mulheres de classe média, portanto, leitores que não estão inseridos no contexto de marginalidade da região da Boca do Lixo, em São Paulo. Muitas vezes no texto, o repórter coloca ao lado do termo a explicação de seu significado. Também é frequente que sejam destacados em negrito e nesse caso podem ser ou não traduzidos para a linguagem do leitor: “É um bom cabra safado, sujeira, escama, barra suja – mau caráter.” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 95, grifos do autor) e “Então, na birosca, no boteco onde está, protegido pelo babilaque (documento) que carrega, expõe e ostenta.” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 95, grifos do autor). Ou ainda: “A topada é um mingau. A gente topa um malandro que tem muito no bolso e está carregado de pepino (culpa). Ele dá o que tem para não pegar uma cana dura. Aí, a minha cara é maior.” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 97). É o caso também do fragmento que relata a experiência adquirida por Zé Peteleco após os primeiros trabalhos como informante e o desejo antigo de se tornar um dia, ele próprio, um policial: “Mas como fosse um zé mané qualquer, sem instrução e sem padrinho, sem goma (lar, casa) e até mesmo sem endereço fixo, nunca conseguiu mandar para a frente este plano.” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 93, grifos do autor).

Outro costume retratado e que não está relacionado à marginalidade, mas à legislação brasileira vigente na época é a ausência da necessidade de prestar concurso para entrar para a polícia. Após a Constituição Federal de 1988, essa possibilidade foi eliminada. Mas em 1968, data da publicação da reportagem, era uma alternativa: “Peteleco, já um ex-marginal, conclui que a melhor maneira de chegar a policial, algum dia, é endedando, apresentando serviço, descobrindo, e se fazendo notar pelos policiais.” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 95). Antes mesmo de conseguir entrar na polícia, cada informante possuía um documento que os identificava: “Embora a Secretaria não dê nenhuma verba para os delatores, ela manda imprimir e lhes fornece umas carteirinhas de agente reservado.” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 93).

Os procedimentos de investigação da polícia também estão presentes na reportagem. João Antônio relata a dependência dos policiais em relação a informantes como Zé Peteleco: “O tira leva o nome de descobridor do serviço, mas o dedo duro é

quem levanta a pista.” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 95). A relação entre policiais e informantes tinha até regras de conduta ética: “Todo investigador é obrigado a respeitar o cagueta do outro, desde que esse dedo duro seja eficiente.”

O relacionamento com os marginais também tem seus fatores complicadores para os delatores. O destino desses homens, se descobertos pelos bandidos, é o pior possível: “Não existe perdão para a palavra cagueta. Tem que pagar com a vida. Não desconhece também que se cair numa cadeia de verdade, quente, e for desmascarado, não sairá vivo, além de ser torturado e até obrigado a bancar o pederasta passivo.” (JOÃO ANTÔNIO, 1968a, p. 95, negritos do autor).

O registro de hábitos e costumes em “Quem é o dedo duro?” transporta o leitor para o mundo dos informantes da polícia, pessoas que não são criminosos condenados, tampouco estão o tempo todo ao lado da lei. O linguajar próprio deles ajuda a criar o clima da reportagem e a conhecer a maneira de falar e de viver no limite entre a lei e a criminalidade, habitado pelos agentes, os dedos-duros.