• Nenhum resultado encontrado

2. O Novo Jornalismo – aspectos históricos e teóricos

2.6. Os quatro procedimentos básicos

De acordo com Tom Wolfe, na produção de reportagens deste estilo, podem ser destacados quatro procedimentos, emprestados das técnicas de escrita literária do realismo social de Dickens, Balzac, Fielding e Gógol.

2.6.1 – Construção cena a cena

É feita de maneira a recorrer o mínimo possível à reconstituição histórica dos acontecimentos. Um exemplo é o que Truman Capote fez em A Sangue Frio. Ele estruturou o romance de não ficção – como ele próprio classificou a obra – cena por

cena, reconstruindo a vida da família Clutter e seu encontro trágico com Perry Smith e Dick Hicock, os dois jovens que iriam assassiná-los. Desde o primeiro capítulo, Capote baseou a narrativa na alternância de cenas da vida da família Clutter com cenas dos assassinos, conforme o trecho a seguir. O autor cortou a cena em que a filha do casal, Nancy, conversa com a melhor amiga, Susan, ao telefone, para a cena seguinte em que Dick chega para apanhar Perry, que o estava esperando há algum tempo:

Nancy cortou a conversa: “Desculpe, Susie. Preciso ir. A senhora Katz acabou de chegar”.

Dick estava ao volante de um Chevrolet quatro portas 1949. Quando Perry entrou no carro, olhou para o banco de trás para conferir se seu violão estava a salvo; na noite anterior, depois de tocar para um grupo de amigos de Dick, tinha esquecido o violão no carro. (CAPOTE, 2009, p. 44-45).

Para obter sucesso nessa estratégia, é preciso observar os três procedimentos seguintes.

2.6.2– Registro dos diálogos completos

Escritores de revista perceberam que, assim como na literatura de ficção, o diálogo realista é a forma mais eficaz de prender a atenção do leitor. Os diálogos completos não são somente conversas longas, em que o jornalista registra até as pausas para respiração. São também trechos curtos, em que interjeições e até suspiros são importantes para que o leitor compreenda o estado de espírito de quem está falando. Quer dizer, é dar importância a trechos que no jornalismo convencional seriam cortados para economizar palavras e espaço, por não serem considerados relevantes, mas que ajudam a colocar o leitor dentro do acontecimento.

Em Radical Chique, reportagem publicada em 1970 que mostra as relações entre as socialites e os Panteras Negras, partido fundado em 1966 cuja bandeira eram os direitos civis dos negros. Na época, os novos endinheirados eram simpáticos a essas causas: com o movimento hippie, a contracultura, estava na moda ter ideias radicais. A seguir, um trecho em que é descrito o “leilão” de contribuições para o

partido durante uma festa, em que fala Leon Quat, um advogado empenhado em levantar fundos para os Black Panthers:

“Sei que alguns de vocês foram pegos com seu índice Dow- Jones baixo”, diz Quat, “mas vamos lá...”

Quat diz: “Temos uma contribuição de trezentos dólares de Harry Belafonte!”

“Não, não”, diz Julie Belafonte.

“Desculpe”, diz Quat, “é dinheiro particular de Julie! Peço desculpas. Afinal, existe um movimento de liberação feminina varrendo o país, e quero isso registrado como doação de Mrs. Belafonte!” E completa: “Sei que querem passar as perguntas, mas sei também que tem mais ouro nesta mina. Acho que chegamos ao ponto em que podemos receber os cheques em branco”.

Mais contribuições... cem dólares de Mrs. August Heckscher...

“Nós aceitamos qualquer coisa!”, diz Quat. “Aceitamos tudo!” Ele está bêbado com o som da própria voz de levantador de fundos... “Vocês vão sair daqui sem nada!” (WOLFE, 2005, p. 175). Outro exemplo é o perfil do boxeador Joe Louis, publicado por Gay Talese na revista Esquire em 1962. Intitulado Joe Louis: o rei da meia-idade, o texto era todo apoiado em diálogos, em especial algumas conversas do lutador com a esposa. Com essa técnica, Talese construiu um perfil inovador não só do ponto de vista formal, mas também ofereceu uma visão diferente do personagem, até então visto apenas nos ringues, como homem forte e inatingível. Abaixo, um pedaço do in ício da reportagem:

“Oi, meu bem!”, Joe Louis disse a sua mulher, ao vê-la esperando por ele no aeroporto de Los Angeles.

Ela sorriu, foi até ele, e estava quase se pondo na ponta dos pés para beijá-lo quando, de repente, parou.

“Joe”, disse ela, “cadê sua gravata?”

“Ah, benzinho”, ele disse, dando de ombros. “Fiquei acordado a noite inteira em Nova York e não tive tempo de...”

“A noite inteira!”, ela cortou. “Quando está aqui, você só quer saber de dormir, dormir e dormir.”

“Benzinho”, disse Joe Louis com um sorriso cansado, “eu estou velho”.

“É”, concordou ela, “mas, quando vai para Nova York, você tenta ficar moço de novo.” (WOLFE, 2005, p. 20-21).

No ano seguinte, Jimmy Breslin perseguiria o mesmo estilo no Herald Tribune. Tom Wolfe publicaria também na revista Esquire e no suplemento de

domingo do Herald Tribune, chamado “New York”. A eles seguir-se-iam outros nomes como os de Brock Brower, Terry Southern, Robert Benton e Tom Gallagher. (BULHÕES, 2007, p. 147).

2.6.3 – Ponto de vista da terceira pessoa

O recurso consiste em apresentar cada cena por meio da perspectiva de um personagem particular. O leitor é colocado “na pele” de cada um dos personagens, dando-lhe a impressão de viver a cena descrita.

Em Os honrados mafiosos, Gay Talese conta a história da vida da família Bonanno, mafiosos nos Estados Unidos. Conforme o próprio Talese relata no início do livro, ele conheceu Bill Bonanno em 1965, no tribunal federal em Manhattan. Nessa época, o jornalista trabalhava em The New York Times, e tinha mais ou menos a mesma idade do mafioso. Bill Bonanno havia sido preso pelo FBI depois de uma longa perseguição no Arizona, e estava sendo interrogado a respeito do desaparecimento do mafioso Joseph Bonanno. Em vez de pedir uma declaração sobre o motivo que o levava ao tribunal, Talese aproximou-se dele e se disse interessado em escrever um livro sobre a juventude de Bill. Depois de alguma insistência de Talese em entrar em contato com Bonanno, eles acabaram se tornando amigos. Ao longo de quase sete anos – o livro foi publicado em 1971 – Talese empreendeu a pesquisa que ensejaria o livro de mais de 500 páginas sobre o “lado de dentro” da máfia. Com a contribuição da esposa e da irmã de Bill, Talese escreveu um retrato fiel da família, que não é centrado nas atividades ilegais dos Bonanno, ainda que, é claro, essas atividades apareçam na maior parte do livro. O que interessava a Talese era a família, e não a Família – como são designadas as facções mafiosas. Para contar a história, o repórter utilizou a alternância d e narradores de uma maneira particular. Apesar de o livro ser todo narrado em terceira pessoa, há uma nítida alternância de pontos de vista: a cada momento, a história é contada por um personagem diferente. Ora a história é narrada do ponto de vista de Bil l:

Bill Bonanno ficou atônito. Labruzzo veio correndo para ouvir. Bonanno começou a praguejar em voz baixa. Maloney não só convocara uma entrevista coletiva com a imprensa como ainda o identificara como fonte de informação. Bonanno enterrou a cabeça

nas mãos. Sentia o calor do ódio percorrer-lhe o corpo, o suor escorrer sob a camisa. Sabia que cometera um erro tenebroso ao falar com Maloney e não fazê-lo jurar guardar segredo. Agora não sabia que destino reservava para seu pai. Lembrava-se das palavras do homem ao telefone, dizendo não faça confusão... não faça nada. (TALESE, 1972, p. 83-84).

Alguns capítulos depois, o narrador foca em Rosalie. Ela descreve o sogro, Joseph, durante uma estadia dele em sua casa, após o reaparecimento dele depois de um longo tempo escondido.

Embora fizesse dez anos que ela estava casada com Bill, ainda via o sogro quase como um estranho, uma pessoa a quem ela só se referia como Mister B. Tendo acreditado até pouco tempo atrás que ele estivesse morto e tendo rezado pela salvação de sua alma, era impossível a Rosalie aceitar com naturalidade sua presença na casa. Ele não a perturbava, falava baixo, mostrava-se sempre bem- vestido, imaculado até. Rosalie nunca o vira perder as estribeiras ou proferir uma palavra menos digna (TALESE, 1972, p. 237).

Wolfe alerta para os problemas de se usar a terceira pessoa como os jornalistas faziam antes – “eu estava lá” -, afirmando que isso traz uma limitação, “uma vez que ele só pode levar o leitor para dentro da cabeça de um personagem – ele próprio -, um ponto de vista que, muitas vezes, é irrelevante para a história e irritante para o leitor.” (WOLFE, 2005, pp. 55-56). Norman Mailer, em Os exércitos da noite, colocou o narrador como personagem principal da história. O narrador era o próprio Mailer, que em vez de narrar em primeira pessoa, assumia a terceira pessoa e se referia a si próprio. O livro é uma grande reportagem sobre a marcha pacifista ao Pentágono à qual, em 1967, Mailer compareceu não só como jornalista, mas também como militante. Um trecho da conversa entre ele e Robert Lowell, um dos militantes e incentivadores da passeata:

- Creio que se formos presos bem cedo, - disse Mailer – talvez possamos ser os primeiros a obter mandado de soltura.

- Antes das seis?

- Não, Cal – respondeu Mailer, a alma honesta. – Se formos encanados, o melhor é você não contar com o jantar antes das nove. - Bem, você acha que nos prenderão? Acha que merecemos isso? Falaram no assunto por alguns momentos. A firme conclusão de Mailer foi que, provavelmente, seria essa a melhor maneira de eles servirem ao movimento de protesto.

- Se nós três formos presos, - disse ele – os jornais não poderão vir com a velha conversa de que os únicos responsáveis eram os hippies e os baderneiros (MAILER, 1968, p. 124).

Wolfe faz uma ressalva nesse caso: a técnica empregada só funciona se esse narrador em terceira pessoa for, efetivamente, um participante importante da história.

2.6.4 – Registro de hábitos e costumes

O retrato dos personagens inclui o da sociedade em que vivem. Desde gestos até a mobília, passando pelo comportamento dos filhos e a manutenção da casa, são detalhes que conferem realidade ao texto, pois expressam, sobre cada personagem, “sua posição no mundo ou o que ela pensa que é seu padrão ou o que gostaria que fosse” (WOLFE, 2005, p. 55).

Uma reportagem do próprio Wolfe serve de exemplo para esse registro de hábitos e costumes, em O último herói americano, texto sobre o corredor de automóvel Junior Johnson, campeão da stock-car. A reportagem se passa na Carolina do Norte e, numa sequência em que narra o que ouvia no rádio naquele domingo, enquanto se dirigia para a corrida, o repórter consegue descrever algumas características marcantes do Sul dos Estados Unidos:

Qualquer um de nós pode ligar o rádio do carro e sintonizar o que quiser:

“São cães famintos. Yeah! Andam por aí guiando um carrão. Ahn-han! E correm atrás de mulheres. Yeah! E tomam bebida alcoólica. Ahn-han! E fumam charuto. Oh, Yes! E são cães famintos. Yeah! Ahn-han! Oh, yes! Amém!

No rádio, há também comerciais da farinha de aveia Aunt Jemima, que custa dez centavos o quilo. Há também umas coraletes de Gospel cantando: “If you dig a ditch, you better dig two...” [se cavar um fosso, melhor cavar dois]. (WOLFE, 2005, p. 87-88).