• Nenhum resultado encontrado

3. A revista Realidade – 1966-1968

3.2. Realidade e a vida brasileira

A importância do surgimento de uma revista baseada na reportagem em profundidade, num mercado em que este era um produto editorial em falta, ganhou força diante dos acontecimentos da época. Os anos 1960 foram uma época de crescimento na demanda por informação, com o surgimento de um novo público consumidor: a classe média brasileira. O contexto econômico era de crescimento, após os “50 anos em 5” de Juscelino Kubitschek, com a urbanização cada vez mais acirrada. O Brasil de então contava com uma indústria automobilística recém-implantada e em expansão, a região Centro-Oeste se desenvolvia.

Além do desenvolvimento econômico para as classes mais favorecidas da população e da presença do capital estrangeiro, havia espaço para camadas populares. “Com o progressivo esgotamento do modelo populista, os trabalhadores reivindicavam maior participação nos resultados do esforço econômico, buscando meios de uma efetiva presença

na vida política” (MOREIRA, 2002, p. 416). A sociedade civil se organizava em associações e sindicatos, e esse clima de democratização que teria começado a se formar após a Era Vargas, em 1945, se acentuaria durante o governo de JK.

O encadeamento desses fatos sofreu uma ruptura com o golpe de 1964. Tratava-se de uma quebra da ordem constitucional, com a intervenção militar que derrubou um governo legalmente constituído. A política internacional tinha a Guerra Fria como contexto, e o desenvolvimentismo estava diretamente ligado à causa capitalista. A América Latina, portanto, era um território que, para os norte-americanos, deveria ser protegido dos comunistas, principalmente após 1959, quando ocorreu a Revolução Cubana. A expansão capitalista precisava implantar unidades de produção em países periféricos, pois neles havia mão-de-obra farta e barata, abundância de matérias primas e um desejo de desenvolvimento. Esse desejo da população, então organizada, começava a pressionar o governo por reformas no campo e na cidade, na participação do próprio capital estrangeiro, nas finanças do país e no salário dos trabalhadores, na política tributária e na política externa. A inflação crescia e o crescimento apresentava queda. “O rompimento da ordem constitucional foi o recurso das classes dominantes para barrar as pressões que ameaçavam sobrepor o discurso ‘popular’ ao discurso ‘nacional’” (MOREIRA, 2002, p. 418).

No momento do golpe, os militares ensaiavam uma volta rápida ao estado de direito, com a promessa de eleições em 1965. De fato, boa parte da imprensa, entre março e abril de 1964, era a favor da deposição do então presidente da República, João Goulart. Na manhã daquele dia, um editorial do Correio da Manhã intitulado “Fora” pedia a saída de Jango. A TV Rio filmou uma das cenas que ilustrariam a tomada de poder pelos militares em 1º de abril de 1964: a invasão de um grupo de oficiais à paisana no Quartel-General de Artilharia de Costa, vizinho ao Forte de Copacabana. “A guarita do QG ficava debaixo das janelas da maior emissora de televisão do país – a TV Rio – e parte do episódio fora filmado. Pouco depois, estava no ar, com muito sucesso” (GASPARI, 2002, p. 104). A mesma emissora transmitiria, mais tarde naquele dia 1º, o governador Carlos Lacerda, por telefone, agradecendo a Deus pelo sucesso do golpe. Adhemar de Barros, o governador de São Paulo, atribuíra a intervenção a um milagre de Nossa Senhora Aparecida, de quem era devoto (GASPARI, 2002, p. 109).

Mais exemplos de apoio ao golpe estavam estampados na página de editoriais da edição do dia 1º de abril de 1964 da Folha de S. Paulo, na sessão “Política na opinião alheia”. O Estado de S. Paulo: “A Presidência da República perdeu inteiramente a confiança que nela poderia depositar a nação e o respeito sequer da minoria agitadora que pretende apoiá-la”. Jornal do Brasil: “Agora, temos o espetáculo do timoneiro perdido na tormenta, cavando o túmulo da democracia e o seu próprio”. (POLÍTICA, 1º abr. 1964). O editorial da Folha no dia 2 de abril daquele ano, o dia seguinte ao golpe, falava em defesa da lei, e atacava duramente o presidente deposto João Goulart, apontando a intervenção militar na política como fator de restabelecimento da ordem: “Não houve rebelião contra a lei, mas uma tomada de posição em favor da lei”, e mais adiante, ratificava sua posição de apoio, afirmando que o episódio da crise no governo Jango “termina com a vitória do espírito da legalidade, restabelecido o primado da Constituição e do Direito” (POLÍTICA, 2 abr. 1964). A tomada de posição das empresas jornalísticas iria além das palavras de incentivo publicadas nas páginas dos jornais. O proprietário do Estado de São Paulo, Júlio de Mesquita Filho, chegara a propor uma alternativa de documento para demolir a Constituição de 1946: “Redigida com a colaboração do advogado Vicente Ráo, catedrático de Direito Civil da Universidade de São Paulo e ministro da Justiça no Estado Novo, foi a primeira a chamar-se Ato Institucional” (GASPARI, 2002, p. 122).

No dia 11 de abril de 1964, o general Humberto de Alencar Castello Branco assumiu o poder, eleito pelo Congresso Nacional, prometendo realizar eleições diretas em 1965, para um governo democrático que começaria em 1966. Em vez de uma intervenção política de curta duração por parte dos militares, o que aconteceu de fato foi a instalação de um regime autoritário duradouro, com “interesses econômicos multinacionais e locais, associados a uma competente elite militar e tecnoburocrática” (MOREIRA, 2002, p. 419). Nas primeiras semanas do governo de Castello Branco, cerca de cinco mil pessoas foram presas, várias outras deixaram o país exiladas, até 1966 cerca de dois mil funcionários públicos foram demitidos ou aposentados compulsoriamente, centenas de oficiais das Forças Armadas foram punidos, 70% das confederações de trabalhadores e sindicatos tiveram suas diretorias depostas.

Se tudo desse certo, o Ato Institucional de abril de 1964 seria o único. Não foi. Se tudo desse certo, o marechal Costa e Silva governaria com a

Constituição de 1967. Não governou. Se pelo menos algumas coisas dessem certo, o AI-5 duraria menos de um ano. Durou dez. (GASPARI, 2002, p. 141).

No lugar das eleições democráticas prometidas para 1965, Castello Branco deixou a presidência em 1967, para dar lugar ao marechal Costa e Silva, eleito por 295 pessoas. Como reação ao aumento da repressão e a consolidação de um regime antidemocrático cada vez mais evidente, surgiram instâncias de oposição e contestação a esse regime. Eram manifestações que, ainda que difusas, revelavam que o povo brasileiro não estava inteiramente disposto a se render à nova ordem imposta pelos militares. Esse quadro político tornou mais relevante o papel da imprensa. Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e Última Hora, ainda que alguns destes tenham sido apoiadores da deposição de Jango, perceberam que o cenário mudara durante o governo de Castello Branco e começaram a denunciar os desmandos do governo, sobretudo no que dizia respeito à prática de tortura. “Foi na área da intelectualidade (que abrange a imprensa) que o governo Castello Branco encontrou a resistência orgânica mais significativa” (FARO, 1999, p. 52). Com uma nova Lei de Imprensa, dispositivos de segurança nacional, uma Constituição e um presidente militar, o cerco do poder se fechava em relação aos jornalistas, criando um clima difícil. Isso resultou em uma mudança de atitude: com a censura incidindo sobre as redações, os jornalistas passaram do conhecimento das regras para divulgar notícias, imposto autoritariamente, a um estado em que sabiam o que não deveria ser noticiado. Era a censura interna, ou autocensura, em alguns casos, pior que a tarja preta.

Na área de produção de cultura, foi a época da Bossa Nova, do Cinema Novo, do Tropicalismo e da Jovem Guarda. A televisão ainda não concorria com o cinema, os livros e o rádio. No restante do mundo, a Guerra Fria com sua ameaça atômica, a guerra do Vietnã, os hippies e o amor livre eram sinais dos novos tempos. Ganhavam força os movimentos de emancipação feminina e de defesa das minorias étnicas. Aumentava a recusa da civilização ocidental e a denúncia do apodrecimento do sistema capitalista, visto como uma série de mecanismos de exclusão social. Todos esses eram “temas que alimentaram o espírito da contracultura que dominou boa parte do período, numa

generalizada negação da sociedade contemporânea, principalmente pelos seus aspectos repressivos e irracionais” (MOREIRA, 2002, p. 421).

O ambiente de repressão política – que até a edição do AI-5 ainda não chegara ao nível do que aconteceria depois de 1968 – contrastava com um mundo em mutação, e com a característica questionadora típica da juventude. A invenção da pílula anticoncepcional ensejou uma nova conduta por parte das mulheres, não apenas no que diz respeito à liberação sexual, mas à intelectualização e profissionalização, como reflexos comportamentais de uma nova geração de mulheres que poderia escolher como, com quem e se ter filhos – ou não. Era, finalmente, a opção entre ser mãe-e-esposa ou se tornar qualquer outra coisa que desejassem. “No meio dessa complexidade cultural é que surgia uma geração de jovens intelectualizados reagindo contra o tradicionalismo sexual e criando antitabus.” (VENTURA, 2008, p. 34). A liberação sexual é apenas um exemplo dos acontecimentos da década de 1960 que fizeram com que os jovens de então quisessem dominar o presente e escrever uma história diferente para o futuro.