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3. A revista Realidade – 1966-1968

3.3. Surgimento de Realidade

A demanda do público crescente era por conhecer – e compreender – a sociedade de então. E, naquele momento, a objetividade jornalística talvez não fosse o modelo mais adequado para desvendar o mundo em mutação. A revista Realidade surgiu em 1966, em um contexto de expansão da liberdade sexual, da mudança do papel da mulher na sociedade, de expansão da contracultura, como os hippies e a geração beat, Guerra no Vietnã e regimes autoritários ao redor do mundo. Houve um número zero, publicado em 1965, com o objetivo de testar o formato do produto e sua aceitação pelo público-alvo, e consequentemente angariar anunciantes. Sucesso: mais de 250 mil exemplares esgotados. Até então não havia no mercado brasileiro uma revista com periodicidade mensal voltada para reportagens. “Realidade não se prende ao fato do dia-a-dia, propõe sair da ocorrência para a permanência. Seus temas não são os fatos isolados, mas sim a situação, o contexto em que esses fatos se dão”, interpretou Lima (2004, p. 226). Essa escolha de assuntos não se deu casualmente. Antes que o primeiro número da revista fosse às bancas, a editora Abril encomendara um estudo ao Instituto de Estudos Sociais e Econômicos (INESE), baseado nos efeitos do número experimental. O retrato do público potencial da revista era o

seguinte: “85% de leitores entre 18 e 44 anos; 73% de leitores com escolaridade equivalente ou acima do 2º grau; 59% dos leitores situados entre as classes B e A” (FARO, 1999, p. 95). Essas pessoas, ainda de acordo com o estudo citado por Faro10, estavam interessadas em ler sobre ciência e progresso, grandes problemas brasileiros e assuntos relacionados a sexo e educação sexual. Ou seja, “Realidade vinha preencher um vazio na área de revistas de informação não especializada” (FARO, 1999, p. 95). A redação de Realidade tinha autonomia relativa para definir o conteúdo de cada edição. Essa liberdade de escolha de temas foi determinante para o sucesso da revista, na medida em que estava aliada ao enfoque dado por aqueles profissionais a cada assunto. “A visão que os jornalistas da revista tinham sobre eles – parece indicar que essa identidade não era formal. Ela dizia respeito ao sentido da época” (FARO, 1999, p. 110).

No momento de fundação da revista Realidade, a equipe era formada por jornalistas que haviam trabalhado em Quatro Rodas, do mesmo grupo editorial. Paulo Patarra (falecido em 2008) era o redator-chefe. Sérgio de Souza (que, anos mais tarde, fundaria a revista Caros Amigos) era o responsável por uma nova função, criada especificamente para a revista: o cargo de editor de texto. Entre os repórteres, Roberto Freire, Luiz Fernando Mercadante (que seria depois editor do Jornal da Tarde e da TV Globo), José Hamilton Ribeiro (atualmente na TV Globo), Narciso Kalili e outros nomes.

A primeira edição da revista chegou às bancas em abril de 1966, com Pelé na capa usando o busby, chapéu dos guardas da rainha da Inglaterra. Naquele ano, a Copa do Mundo de Futebol aconteceria na Inglaterra e a matéria de capa era uma espécie de reportagem prévia sobre o tricampeonato esperado pelo Brasil. Ainda que a ideia fosse original e a edição tenha se esgotado em apenas três dias, a reportagem comprova que o jornalismo não é afeito a exercícios de futurologia: o time foi eliminado na primeira fase, e o tricampeonato só viria em 1970. A capa ficou na história.

10 De acordo com José Salvador Faro (1999, p. 95, nota de rodapé), a Pesquisa Editorial sobre a

Revista Realidade foi elaborada em janeiro de 1966. Pessoas de seis cidades foram entrevistadas para elaboração do documento: São Paulo, Juiz de Fora, Guanabara (como era chamado na época o Rio de Janeiro), São José do Rio Preto e Londrina. Ainda segundo Faro, essas cidades foram escolhidas pelo Departamento de Distribuição da Editora Abril.

O projeto gráfico de Realidade, baseado em tipos condensados, valorização da fotografia e diagrama seco com texto em blocos, de acordo com Paniago (2008), vem da revista alemã Twen. A periodicidade mensal permitia reportagens de fôlego – havia mais tempo para a apuração e para a redação e edição do texto de cada reportagem. Publicada de abril de 1966 a março de 1976, Realidade teve 120 edições. Media 23,5 x 30,5 cm (depois sofreu reduções de tamanho, em 1968 e 1973). Em geral, era editada em três colunas, com número de páginas variável. As edições menores tiveram 108 páginas, e a maior, 328 páginas: um especial sobre a Amazônia, em outubro de 1971.

A revista trazia um roteiro cultural nas páginas de abertura (Panorama), mas essa retranca só foi mantida até a edição nº 5, quando a seção ficou sem título, e passaria a se chamar ‘Roteiro – artes, espetáculos e indicações’, a partir do número 15. Na sexta edição, as cartas de leitores abriam a revista, nas primeiras páginas. Depois do Roteiro, vinham em geral 12 textos em profundidade sobre assuntos variados. Na última página, com a retranca ‘Brasil Pergunta’, era estabelecida uma polêmica e dois convidados debatiam, um a favor e outro contra, o assunto em questão. Segundo Lima (2004: 225), Realidade abria-se para o mundo e para o Brasil com uma proposta de cobertura ambiciosa. A cada mês, oferecia “a construção somativa de um novo mapa da realidade contemporânea”.

Logo de início, viu-se que para adequar forma e conteúdo, “seria preciso que o caráter empobrecedor da objetividade fosse rompido duplamente” (FARO, 1999: 66). O repórter passava a agir como pesquisador, orientando a narrativa. A reportagem, por meio de técnicas de apuração e do texto cuidadosamente escrito, pretendia apreender a totalidade do real. A revista rompia com a narrativa convencional e explorava novos terrenos: “Era também um jornalismo com ambições estéticas, inspirado no New Journalism norte- americano, numa técnica narrativa baseada na vivência direta do jornalista com a realidade que se propunha a retratar”, afirmava Kucinski (1991, apud FARO, 1999, p. 81).

Há espaço para algumas críticas à revista no meio acadêmico. Para Edvaldo Pereira Lima, não necessariamente havia um forte embasamento documental nas reportagens. Segundo ele, muitas das matérias “não apresentavam uma visão multiangular de um problema, apenas exibiam a questão sob uma única perspectiva” (LIMA, 2004, p. 227). Além disso, nem todos os textos apresentariam uma leitura crítica do assunto abordado. Ainda assim, há que se destacarem os méritos da publicação em abordar assuntos

científicos, traduzindo, em linguagem acessível ao público, temas como medicina e energia nuclear.

As escolhas temáticas que refletiam a urbanização do Brasil, as transformações dos anos 1960, estavam aliadas à ênfase na qualidade do texto, minuciosamente discutido e revisado. João Antônio sintetizou as características de Realidade em carta enviada ao amigo e companheiro de redação, Mylton Severiano: “Fotografias de antologia. Diagramação mestra. E o peso do conteúdo, misto de seriedade e leveza, tudo em alta sensibilidade” (SILVA, 2005, p. 206).

Ainda que os assuntos abordados pela revista fossem diretamente ligados ao contexto de rebeldia que marcou a década de 1960, não se tratava de uma representante da contracultura. Neste sentido, podem-se apontar outros veículos, como O Pasquim e Opinião. A ousadia dos repórteres de Realidade seguia em outra direção: abordava o comportamento e a cultura da época: anticoncepcional, aborto, drogas, rebeldia, juventude, liberação da mulher. “E nisto ela foi importante, como porta-voz do espírito do tempo” (MOREIRA, 2002, p. 422). Por conta disso, a revista conseguiu uma imagem de publicação progressista, sem se colocar no papel de oposição direta à ditadura.