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População nas políticas públicas: raça

No documento RelatorioUNFPAPopePolPub (páginas 41-46)

do IPEA”. Apesar de eu não estar mais no IPEA, sempre vou considerá-lo a minha casa. Será sempre com muito prazer que estarei aqui.

Hoje, vou falar sobre questão racial e mercado de trabalho no Brasil. De fato, há algum tempo tenho trabalhado com mercado de trabalho e informalidade no Brasil. E cada vez mais me aproximo da questão racial. Cada vez que olho os dados de informalidade, mais vejo os negros nela. A questão das piores condições de trabalho está sempre associada à questão racial. Os números e os dados estão aí, vemos isso nas ruas. Não fiz força alguma para me aproximar da questão racial. Ela veio na medida em que começamos a estudar a informalidade, sua história e nascimento. Cada vez mais a questão racial está presente. Questão racial e mercado de trabalho, no Brasil, seriam temas muito próximos, se formos ver mercado de trabalho do ponto de vista da informalidade, como veremos aqui.

Começamos pelas notícias ruins. O nosso mercado de trabalho está numa situação ruim há muitos anos. Temos uma População Economicamente Ativa, PEA, de mais de oitenta milhões de trabalhadores, o que é uma cifra muito grande, uma das maiores do mundo, comparável à população da Alemanha, o maior país europeu. Deste montante, temos pelo menos 10% desempregado. O Censo falou em 15, damos uma compensada. Alguns acham que houve problemas metodológicos, mas trabalhamos com 10%, um número bom que dá mais ou menos oito e meio milhões de trabalhadores desempregados. A cada ano, há mais ou menos dois milhões de entrantes. Este é o nosso grande problema: um mercado de trabalho, um grande número de desempregados e, além disso, gente entrando. São três grandes tendências no mercado de trabalho a partir dos anos de 1980, apesar de alguns arrefecimentos recentes. Primeiro, os rendimentos do trabalho são, em geral, muito baixos. Segundo, o desemprego continua crescendo, era na faixa dos 3 a 5% nos anos de 1970 e hoje é na faixa dos 10% ou mais. E, finalmente, a informalidade, que é a parcela de pessoas ocupadas fora do setor formal. São empregados sem carteira ou autônomos. É deste grupo que queria falar.

Setor informal

Quando falamos em questão racial, falamos em informalidade, são questões que têm tudo a ver. A importância do informal no mercado de trabalho no Brasil é tal, que 80% dos postos de trabalho criados nos anos de 1990 foram na informalidade. Esse número melhorou um pouquinho, mas não está muito diferente. Ainda estamos criando muitos postos de trabalho na informalidade. Vai depender muito das metodologias utilizadas, mas o mercado informal absorve mais da metade da força de trabalho ocupada. Chegam a falar em 60%, outros falam até em mais. Mas, na população urbana, com certeza 60% não é um número absurdo. Estamos falando de um contingente que beira os quarenta ou quarenta e poucos milhões de pessoas na informalidade.

Há três requisitos básicos para que exista o informal. Primeiro, o nível de desigualdade muito grande no país, ou seja, um país que tem índices como os do Brasil tem muitas chances de ter informais. Um país onde se está num bar, se estica uma nota de 2 reais e alguém chega para engraxar os sapatos; um país que tem muita gente precisando prestar serviços a qualquer custo.

Além disso, tem o segundo requisito, que é a ausência de um marco regulatório global, isto é, a ausência de leis inclusivas e que regulem o trabalho. No Brasil,

pagar ou não os encargos trabalhistas parece opção econômica do empresário. O que vale mais a pena: pagar ou não pagar? A lei diz para pagar. Com um Estado presente, do ponto de vista econômico não existe essa dúvida. No Brasil, essa dúvida é colocada: ”Será que vale a pena pagar?” O segundo ponto é, portanto, a ausência do Estado.

O terceiro ponto ou requisito, é a capacidade das atividades informais se articularem e se ajustarem no mercado de trabalho e no sistema de emprego. Percebemos que, dos anos de 1980 para cá, surgiu o transporte informal com uma força muito grande e que consegue se articular, perceber os buracos no mercado. Hoje, o transporte por vans e outros tipos de atividades informais existem, coisa que não existia há quinze anos atrás. O mesmo ocorre com o comércio de rua. Existiam poucos camelôs. Naquela época, a “rapa” vinha, os camelôs corriam. Hoje, a “rapa” corre dos camelôs, porque há muitos na rua. É impressionante a capacidade de proliferação dessas atividades. Então, juntando esses três elementos – uma extrema desigualdade, a ausência de Estado e a capacidade de articulação das atividades informais – temos o caldo de cultura para a existência de um mercado informal muito grande. É o caso do Brasil que tem, de fato, um informal muito grande, a meu ver, exatamente por conta da conjunção dos três itens. Falarei um pouco de cada um deles.

Desigualdade no Brasil

Primeiro, sobre a desigualdade extrema que, no caso brasileiro, tem raízes históricas em duas “ não-respostas” que aconteceram no século XIX. O Estado não respondeu inclusivamente a dois pontos cruciais: um, relativo ao trabalho, e outro relativo à terra, que no final das contas tem a ver também com trabalho, só que na área rural. Em relação ao trabalho, a Abolição foi excludente. Quando se aboliu o trabalho escravo no Brasil, ao mesmo tempo se implementou uma política de imigração que fez com que os postos de trabalho fossem ocupados por outros trabalhadores que não os ex-escravos. A abolição nas antigas colônias inglesas foi assim: baixou-se um decreto dizendo que aqueles que antes eram escravos continuariam trabalhando, mas agora como assalariados. Então, não houve mudança nos postos de trabalho. No caso brasileiro, essa abolição veio junto com uma política clara de branqueamento e de estímulo à imigração. Isso fez com que se dobrasse ou triplicasse a oferta de mão-de-obra para as ocupações existentes. Os negros foram para o desemprego e o subemprego. A exclusão veio, no mercado de trabalho urbano, por essa política de abolição que chamo de excludente.

A segunda “não-resposta” veio com a entrada em vigor da Lei de Terras de 1850, que garantiu a propriedade aos antigos sesmeiros, antigos senhores de terra que nem trabalharam nessa terra. Terras que estavam ocupadas por livres ou libertos, que não tiveram a propriedade da terra assegurada. A Lei de 1850 não garantiu a esses trabalhadores, portanto, a posse de suas terras. Criamos, então, dois grandes problemas na segunda metade do século XIX: a informalidade urbana, de um lado, e a negação de acesso à terra na área rural, problemas estes que permanecem até hoje no Brasil como duas grandes questões, que são as raízes históricas da desigualdade. A “não-resposta”, uma resposta parcial, ou uma resposta muito ruim do Estado, suscitou, então, essa imensa desigualdade que se tem até hoje. A informalidade é,

portanto, uma das correias de transmissão da desigualdade. Via trabalho informal, as pessoas entram, sem estudar, no mercado de trabalho. Continuam nele em ocupações bastante rudimentares, não estudam, não farão parte da previdência e permanecerão trabalhando até o fim da vida, num ciclo muito perverso.

Em relação ao segundo ponto - a ausência de marco regulatório do Estado - fizemos uma pesquisa no Distrito Federal sobre o informal enfocando três grandes categorias: empregadas domésticas, trabalhadores autônomos e comércio de rua. Chegamos a uma conclusão interessante em relação à ação do Estado para o informal. O Estado apóia residualmente o informal por meio de programas como, por exemplo, de apoio à costureira. O apoio ao informal é sempre residual e pontual, desde os anos de 1980. Quando vamos para a questão da regulação, falamos que é uma regulação sempre parcial e vemos isso muito claramente no caso das empregadas domésticas. A legislação que garante o trabalho doméstico é uma legislação completamente destituída dos dois lados da questão, porque só vige dentro da casa da patroa. Quer dizer, todos os pontos que são regulamentados, são para regular a relação patroa e empregada, mas não existe, por exemplo, uma garantia de creche para a empregada doméstica, não existe qualquer tipo de relação de direitos garantidos lá atrás. É, então, capenga, parcial e, ao mesmo tempo, muito mais para a patroa do que para a empregada.

Finalmente, a terceira ação do Estado, que apóia residualmente e regula parcialmente, é a repressão. O Estado reprime o informal de uma forma violenta, perene e diária. É a grande ação do Estado brasileiro em relação ao informal. A repressão do comércio de rua, a repressão ao transporte, enfim, de todas essas atividades que proliferam. O Estado cerceia de forma ostensiva e muitas vezes virulenta. Um exemplo clássico é o da polícia atrás de camelô no Rio de Janeiro. Existe uma série de situações desse tipo. Então, basicamente, esta é a ação do Estado: apóia residualmente, regula parcialmente e reprime geral e ostensivamente.

Em relação à capacidade de articulação das atividades informais, tomemos novamente o exemplo da empregada doméstica. Ela existe porque é fundamental como sucedâneo do welfare state brasileiro. Sem empregada doméstica não saímos de casa, porque não temos as condições de trabalho e de serviços que existem em outros países. A mulher de classe média brasileira saiu de casa para o trabalho, como a européia, mas na Europa ela saiu porque tinha um conjunto de serviços por trás. No caso do Brasil, o que faz com que consigamos sair e trabalhar é a existência de uma empregada doméstica. É ela que faz o sucedâneo de um conjunto de serviços que o Estado e a própria sociedade não dão, que o welfare

state não dá e que, para nós, é fundamental. Essa é, então, a base da situação

da empregada doméstica.

Sobre os outros dois grupos - comércio de rua e autônomos prestadores de serviços - não falarei muito aqui. Vou me ater somente às domésticas e quem tiver interesse na pesquisa nos outros dois casos nós conversamos. Mas, cada uma das atividades tem uma forma de inserção que garante a ela um espaço. No caso da doméstica, ela é fundamental para que todos nós consigamos trabalhar fora. Essa é a capacidade do Brasil de recriar formas arcaicas na modernidade. Quando o

freezer e o microondas chegaram ao Brasil, nós inventamos a profissional técnica

pretéritas existia nas fazendas, vinha às nossas casas e cozinhava o dia inteiro; ela foi reinventada. Nós conseguimos reinventar situações e desigualdades mesmo na modernidade.

Setor informal e raça

O informal é negro. Por que o informal é negro? Numa pesquisa que fizemos no GDF (Governo do Distrito Federal), eu e a Professora Cristiane, da Universidade de Brasília, Unb, no ano de 2000, tomamos as três categorias: comércio de rua, emprego doméstico e autônomo da construção civil. No total, dois terços dessa categoria era de negros e um terço de brancos. O maior contingente de trabalhadores negros está entre os autônomos da construção civil, caso de encanador, pedreiro, eletricista. E o menor está no comércio de rua. O comércio de rua é, de fato, muito diversificado. Compreende desde a barraquinha, aquela banca de alvenaria que fica no mesmo lugar sempre, até o camelô, aquele sujeito que põe uma lona no chão e vende os produtos. Quando consideramos somente os camelôs, a porcentagem de negros é muito maior. Quanto mais baixo o nível de rendimento, quanto mais precária a atividade, mais os negros estão presentes.

Assim, o resultado que tenho visto e que tem vindo a mim de uma forma cada vez mais forte é que, na exclusão social, os negros são os mais afetados. Isso é lógico, parece que estou falando uma tautologia ou algo que todo mundo consegue ver; mas o que quero chamar atenção é que ao estudarmos desigualdade no Brasil, ao estudarmos a questão social no Brasil, sem passar pela questão racial é como se não conseguíssemos entrar no núcleo da questão. A explicação para o fato de que este país se moderniza o tempo todo sem acabar com a desigualdade passa por uma questão racial que está mal resolvida, mal estudada, mal percebida. O que tenho sempre chamado atenção é que nós, cientistas sociais, temos, cada vez mais, que tentar entender como é esse racismo, essa discriminação, porque este é o cerne da desigualdade brasileira. Não conseguiremos entender o tamanho dessa desigualdade, que este país seja campeão na desigualdade, enquanto não nos debruçarmos sobre a questão crucial, que é a questão racial. Esta questão é sempre vista como merecedora apenas de um capítulo suplementar dentro dos poucos trabalhos que ousam enfocá-la. Nunca é vista como algo que é central. Mas é central, e estou cada vez mais convencido disso. Enquanto não percebermos isso, enquanto não admitirmos a centralidade da questão racial brasileira, enquanto não nos debruçarmos e estudarmos isso, penso que vamos continuar sem entender como este país reproduz desigualdade na forma como reproduz, com tanta modernidade, com tanto crescimento e com tantos milagres econômicos.

O custo do racismo no Brasil

Por último, queria falar sobre o que chamamos o custo do racismo no Brasil. Trata-se de um exercício numérico que fizemos para a “Marcha Zumbi mais 10” do dia 16 de novembro. Isso tem sido muito comentado e deu até uma matéria no jornal O Globo dizendo do absurdo em se pensar um exercício desse tipo. Trata-se do seguinte: pegamos os diferenciais em três grandes áreas sociais: habitação, saneamento básico – acesso à água e esgoto – e educação. A partir daí, observamos qual a diferença de cobertura de negros (pretos e pardos) e brancos. Nesse diferencial

quantificamos quanto custaria, em termos monetários, a equalização da situação, de forma que o patamar de negros contemplados se igualasse ao de brancos. Por exemplo, na educação. Acho que o nível de alfabetização era de 12% de negros analfabetos e 7% de brancos - não tenho os números aqui de cor. Quanto custa alfabetizar esses 5% de negros para igualar os patamares de cobertura? Fizemos isso para todos os níveis da educação, assim como para as demais áreas, e deu um número que chegou a R$ 67,2 bilhões, que não é um absurdo, mas é um número significativo. Ainda hoje um colunista do O Globo disse que estávamos querendo alfabetizar os negros e deixar os brancos esperando. A idéia não é essa, não é colocar ninguém em fila. A idéia é que as pessoas percebam que há um gap e que esse gap tem um valor mais ou menos dessa ordem. Não adianta fazermos políticas de promoção de igualdade racial destinando R$ 15 ou R$ 12 milhões por ano, que é o que o governo tem feito, quando estamos trabalhando com um problema que é da ordem de dezenas de bilhões. O objetivo do exercício era, portanto, delinear esse quadro. Produzimos esse número e foi um exercício interessante, porque a despeito do fato de o IPEA ter trabalhado muito a questão dos números, nunca tinha sido feita uma estimativa dessas. Isso foi entregue ao Presidente da República, que ficou de nos dar uma resposta.

Era basicamente isso o que eu tinha a falar para vocês, o mercado de trabalho e a questão racial. Gostaria de finalizar reenfatizando que, cada vez mais, para mim, fica claro que não são dois assuntos. Quando trabalhamos informalidade, informalidade e questão racial não são assuntos diversos, assim como desigualdade e questão racial não são assuntos diversos, estão intimamente ligados. Convido a todos que trabalham nessa área a fazerem uma incursão mais séria na questão racial, sem o que continuaremos sem entender muito bem este país que temos. Muito obrigado.

ABORDAGEM UNIVERSALISTA E DE AÇÃO AFIRMATIVA:

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