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Fluxograma 2 – Processo de Validação do Projeto de REDD+ da RDS do Juma

2.2 POPULAÇÕES TRADICIONAIS: TITULARES DE DIREITOS COLETIVOS

Como afirmado acima, a perspectiva multicultural possibilitou a previsão de direitos coletivos a grupos culturalmente diferenciados. Na sociedade brasileira, além dos povos indígenas e comunidades remanescentes de quilombos, existem muitos outros grupos que possuem culturas diferenciadas, como, por exemplo, as populações tradicionais.

Definir o que seriam “populações tradicionais” é uma tarefa árdua e complexa, pois se trata de um termo demasiadamente genérico e alvo de críticas pelos cientistas sociais.

A própria expressão “população tradicional” não é uníssona. Há quem utilize os substantivos “populações”, “comunidades”, “povos”, “sociedades”, “culturas”, combinados com uma gama de adjetivos: “tradicionais”, “autóctones”, “rurais”, “locais”, “residentes”, etc., de modo que a dificuldade já começa na própria escolha da expressão para se referir a esses grupos (LITTLE, 2002, p. 2). Neste trabalho, adota-se principalmente a expressão “população tradicional”, por ser uma das nomenclaturas mais difundidas na literatura.

Tomando-se emprestado o raciocínio de Deborah Lima (1999, p. 8-9) sobre o uso abstrato do termo “caboclo”, pode-se afirmar que o uso abstrato do termo “populações tradicionais” faz crer erroneamente que existe um grupo social concreto que pode ser imediatamente identificado como população tradicional e que carrega a identidade de população tradicional. As diversas populações tidas como “tradicionais”, ao contrário, não possuem essa identidade coletiva forte, mas sim identidades locais. Por isso, a expressão “população tradicional” tem natureza conceitual, referindo-se a comunidades que compartilham um conjunto de atributos comuns, não se constituindo, porém, em uma categoria social homogênea.

Assim, é pouco provável que no mundo real se encontre um grupo que se autoidentifique como população tradicional. Serão encontrados, ao revés, grupos que se reconheçam como quebradeiras de coco babaçu, caiçaras, ribeirinhos, seringueiros, castanheiros, pescadores artesanais, etc.

Henyo Barreto Filho (2006, não paginado) aduz que a noção de “população tradicional” é empregada sistematicamente para identificar grupos sociais culturalmente distintos da sociedade nacional e que apresentam formas cultural e historicamente específicas de apossamento da terra e de apropriação dos recursos naturais.

Apesar da variedade de grupos que podem ser enquadrados como população tradicional, a literatura aponta algumas características básicas mais comuns, mas que não devem ser encaradas como uma fórmula fechada, podendo haver desvios do padrão apontado (DIEGUES, 1994). O antropólogo Antonio Carlos Diegues (apud DIEGUES, 1994, p. 78), um dos autores mais reconhecidos no tema, caracteriza as populações tradicionais da seguinte forma:

Comunidades tradicionais estão relacionadas com um tipo de organização econômica e social com pouca ou nenhuma acumulação de capital, não usando força de trabalho assalariado. Nela produtores independentes estão envolvidos em atividades econômicas de pequena escala, como agricultura e pesca, coleta e artesanato. Economicamente, portanto, essas comunidades se baseiam no uso de recursos naturais renováveis. Uma característica importante desse modo de produção mercantil (petty mode of production) é o conhecimento que os produtores têm dos recursos naturais, seus ciclos biológicos, hábitos alimentares, etc. Esse ‘know-how’ tradicional, passado de geração em geração, é um instrumento importante para a conservação. Como essas populações em geral não têm outra fonte de renda, o uso sustentado de recursos naturais é de fundamental importância. Seus padrões de consumo, baixa densidade populacional e limitado desenvolvimento tecnológico fazem com que sua interferência no meio ambiente seja pequena. Outras características importantes de muitas sociedades tradicionais são: a combinação de várias atividades econômicas (dentro de um complexo calendário), a reutilização dos dejetos e o relativamente baixo nível de poluição. A conservação dos recursos naturais é parte integrante de sua cultura, uma idéia expressa no Brasil pela palavra ‘respeito’ que se aplica não somente à natureza como também aos outros membros da comunidade.

A relação dessas populações com a natureza é uma característica de destaque. Comumente, esses grupos constroem uma relação diferenciada com o meio ambiente que os cerca, a qual lhes confere um profundo conhecimento sobre os ciclos e recursos naturais, que é passado entre as gerações. Assim, essas populações, geralmente, desenvolvem um modo de vida que utiliza o meio ambiente de forma sustentável e que conserva a natureza.

Essa característica foi fundamental para a própria formulação da noção de população tradicional, cuja expressão foi construída em meio a disputas desses grupos ao

acesso aos seus direitos territoriais, disputa essa intensificada, especialmente na Amazônia, a partir de 1980 (LITTLE, 2002; MOORE apud BARRETO FILHO, 2006). Com o intuito de lhes dar visibilidade, formulou-se a noção de “população tradicional”, utilizada como referência a grupos sociais que conservavam a natureza. A estratégia política adotada para o acesso a direitos territoriais passou a ser, então, a exaltação da sustentabilidade desses grupos no trato com o meio ambiente (BARRETO FILHO, 2006).

No entanto, essa noção de “população tradicional” pode causar equívocos. Uma vez que são valorizados pelo seu modo de vida sustentável, a conceituação de população tradicional pode levar a uma expectativa errônea de que esses grupos sociais apenas serão entendidos como população tradicional – e, portanto, somente serão protegidos enquanto tal – se mantiverem congelados no tempo os padrões de uso sustentável da natureza. Essa noção errônea entende o adjetivo “tradicional” como sinônimo para “atrasada”, “primitiva”, “arcaica” e sela o destino desses grupos como “bons selvagens” (BARRETO FILHO, 2006).

Tal expectativa equivocada, no entanto, reflete uma relação meramente instrumental para com esses grupos e, portanto, deve ser rechaçada. Não se pode pensar nessas populações como “conservacionistas naturais”, pois, mesmo que não o sejam, não perdem o status de população tradicional (CUNHA; ALMEIDA, 1999).

Conforme já afirmado, as características descritas para identificar as populações tradicionais representam um “tipo ideal”, não existindo cultura tradicional em estado puro. Isso significa que as populações tradicionais não são estáticas, mas passam por constantes mudanças sociais (DIEGUES, 1994).

Portanto, a definição antropológica de população tradicional é muito difícil de precisar. Nesse sentido, uma premissa básica que a antropologia tem pregado para se considerar um grupo como população tradicional é a autoidentificação, isto é, não serão terceiros que vão identificar quem é ou não é população tradicional, mas sim os próprios grupos que devem se reconhecer enquanto tais.

Quanto à definição jurídica, tanto o critério da autoidentificação como outras características mencionadas acima foram levadas em consideração pelo Decreto Federal n. 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. O artigo 3º do mencionado Decreto define as populações tradicionais da seguinte forma:

Art. 3º Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se por:

I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que

ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;

Assim, tanto pelas características trazidas pelo campo antropológico, como pela definição jurídica existente no ordenamento jurídico brasileiro, não há dúvidas de que as populações tradicionais consistem em grupos culturalmente diferenciados que devem ser valorizados em suas diferenças. Em razão disso, as populações tradicionais são consideradas titulares de direitos culturais e coletivos, e têm o direito exercitá-los plenamente. Nesse sentido, há a necessidade de haver instrumentos jurídicos que protejam os seus direitos, alguns dos quais serão tratados a seguir.

2.3 PROTEÇÃO JURÍDICA DAS POPULAÇÕES TRADICIONAIS E DIREITOS