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Capítulo 2 LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA REALIDADE

2.10. Posição preferencial

Sem diminuir a importância da liberdade de expressão na construção de um Direito Constitucional democrático e vocacionado para a promoção dos mais elevados valores civilizatórios, ela, assim como os demais direito fundamentais, não ostenta a natureza de direito absoluto, pois encontra limitações na ordem jurídica em situações de confronto com outras posições jurídicas protegidas92. E assim deve ser, considerando que a manifestação do pensamento, em face da sua capacidade de

91 Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990:

“Art. 30. Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”.

92 De fato, a ideia de limitação dos direitos fundamentais é base teórica estruturante do moderno

Estado de Direito. Os direitos fundamentais incorreriam em desastroso processo autofágico caso não se autolimitassem.

influenciar a dinâmica social e de exaltar ou menoscabar vidas, implica também deveres perante a comunidade.

Na interação comunitária cada pessoa possui, além dos poderes que pode aduzir em face do Estado, o compromisso ético de utilizar suas prerrogativas fundamentais em favor do coletivo, pois no âmbito da convivência social ninguém deve se considerar como criatura isolada, sendo cada um responsável nas dimensões política, social e cultural pela segurança, justiça e progresso de todos93. Na excepcional observação de Vieira de Andrade, a liberdade conquistada pelos indivíduos na consagração dos direito fundamentais não significa salvo-conduto para a anarquia, porquanto com ela surge a autorresponsabilidade quanto às ações praticadas ante a coletividade94.

Fixadas essas balizas, pode-se sintetizar que a liberdade de expressão é um trunfo do cidadão em face do Estado na defesa de uma posição jusfundamental, fazendo-se aqui referência ao inspirado magistério do professor Jorge Reis Novais95. Mas mesmo nessa condição de trunfo, esse direito está sujeito a compressões, em determinadas situações, em atenção à necessidade de amparar valores outros que, no caso concreto, merecem preponderar. Isto porque, não diferente dos demais direitos fundamentais, a liberdade de expressão submete-se a uma “reserva geral imanente de ponderação”, a qual justifica a cessão dela, repise-se, diante da força de direitos ou interesses igualmente protegidos que caminham em sentido divergente96.

A despeito das limitações que venha a sofrer, defende-se na doutrina lugar de destaque da liberdade de expressão no conjunto dos direitos fundamentais, chegando-se a falar que ela seria espécie de “liberdade preferencial”, conceito este bastante difundido e aceito na jurisprudência constitucional norte-americana, onde o valor do free speech tem significativo peso na ponderação com direitos como a privacidade, reputação e igualdade97.

O enquadramento da liberdade de expressão na concepção de liberdade preferencial não implicaria professar que há hierarquia normativa entre os preceitos

93 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais..., cit., p. 160-161. 94 Ibidem, p. 166.

95 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais

– Trunfos contra a Maioria. Coimbra: Coimbra

Editora, 2006, p. 17-18.

96 Ibidem, p. 49-50.

da Carta Magna, até porque se procura nas tensões principalmente entre direitos fundamentais harmonizar-se a aplicação destes segundo a técnica da ponderação e o parâmetro hermenêutico da unidade hierárquico-normativa das normas constitucionais. Contudo, é razoável defender que certas posições protegidas pela Constituição inspiram maior relevo axiológico nessas hipóteses de conflito, sobressaindo-se, por conseguinte, na solução do problema98.

Recusar a ideia de hierarquia formal entre os enunciados constitucionais não afasta a reflexão - coerente e focada na matriz da dignidade humana, bem como no pluralismo político/social hodierno – de que há interesses e bens constitucionalmente tutelados com maior grau de proteção do que outros99. No pertinente exemplo de Sarmento, é difícil ilidir que as liberdades políticas e existenciais encontram mais amparo no sistema de guarda da Lei Fundamental brasileira do que os direitos que conferem posições e estatutos econômicos100.

A liberdade de expressão no Brasil é admitida, em princípio, como liberdade preferencial, tendo, por consequência, consideração especial na análise de conflitos com outros direitos protegidos pela ordem jurídica101. A posição privilegiada fundamenta-se notadamente no papel vital dessa liberdade para a potencialização de conquistas inestimáveis das democracias constitucionais, como a preservação da dignidade humana, a garantia da transitoriedade do poder e o pleno exercício dos demais direitos fundamentais.

Observe-se, porém, que a posição preferencial da liberdade de expressão não a isenta de restrição ou mitigação em uma situação concreta quando, pela aquilatação dos interesses em contenda, o sistema constitucional recomendar a priorização de outro direito. Sucede que, nesses casos, exigir-se-á do aplicador do direito um esforço de argumentação maior e mais consistente para convencer quando à necessidade de compressão da liberdade de expressão102.

98 Nesse sentido: BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição:

fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1998, p.

187.

99SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional: teoria, história e

métodos de trabalho. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 519.

100 Idem. 101

SARMENTO, Daniel. Comentário ao artigo 5º, inciso IV. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários..., cit., p. 573.

Daniel Sarmento divisa no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, relatada pelo ministro Carlos Ayres Britto, a inclinação do Supremo Tribunal Federal à posição de liberdade preferencial da liberdade de expressão103. Nessa ação a Suprema Corte brasileira apreciou a recepção do conjunto de dispositivos da Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, a chamada “Lei de Imprensa”, editada no período da ditadura militar, em face da Constituição da República de 1988. A decisão, por maioria, foi pela não recepção do diploma. Em trecho emblemático da ementa do acórdão, o ministro relator averbou que o bloco dos direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa precede o bloco dos direitos à imagem, honra, intimidade e vida privada; salientou, outrossim, que as liberdades tipificadoras da liberdade de imprensa afiguram-se superiores bens de personalidade e mais direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana104.

Com razão, assim, Sarmento, pois a estrutura do voto histórico do ministro Carlos Ayres Britto foi construída lapidarmente em torno da afirmação da liberdade de imprensa – e, por corolário, da liberdade de expressão – como direito fundamental que ostenta posição privilegiada no sistema constitucional de tutela das liberdades públicas.