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Restrição legislativa da liberdade de expressão

Capítulo 2 LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA REALIDADE

2.11. Restrição legislativa da liberdade de expressão

Diante das considerações expendidas, surge pertinente questionamento sobre a legitimidade constitucional da restrição à liberdade de expressão através da atividade legiferante infraconstitucional do Parlamento. Em termos mais simples, poderia o Poder Legislativo produzir lei ordinária (ou complementar) comprimindo, em abstrato, a liberdade de expressão em algumas situações?

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SARMENTO, Daniel. Comentário ao artigo 5º, inciso IV. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários..., cit., p. 573.

104 BRASIL. Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental nº 130-DF. Requerente Partido Democrático Trabalhista - PDT. Requeridos Presidente da República, Congresso Nacional. Relator Ministro Carlos Brito, julgamento em 30.04.2009. Íntegra

do acórdão disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=605411>. Acesso em 12 dez. 2015.

No debate jurídico brasileiro, o ministro Carlos Ayres Britto, no voto proferido na citada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, foi enfático ao negar tal possibilidade, argumentando que, no plano normativo, a liberdade de expressão/imprensa somente poderia sofrer as restrições que resultassem diretamente do texto constitucional, existindo, assim, uma interdição ao legislador infraconstitucional para impor compressões às “matérias nucleares” desse direito fundamental. Por essa perspectiva, na leitura da Lei Fundamental realizada pelo ministro, restaria ao Parlamento dispor sobre “matérias lateral ou reflexamente de imprensa”, como, por exemplo, “direitos de resposta e de indenização, proporcionais ao agravo”, “diversões e espetáculos públicos”, “proteção do sigilo da fonte” etc.

Opôs-se a esse entendimento o voto aduzido pelo ministro Gilmar Mendes na mesma ação, partindo da orientação segundo a qual a liberdade de imprensa tem caráter institucional que permite e exige a atuação do Parlamento para dar conformação e conferir efetividade a ela; em consequência, existe para o legislador a faculdade outorgada pela Constituição de disciplinar o exercício da liberdade de imprensa (reserva legal qualificada) com o escopo de preservar outros direitos individuais “não menos significativos”, conforme, a propósito, dessume-se da interpretação do artigo 220, § 1º, da Constituição da República105. Em outra oportunidade, no julgamento do Recurso Extraordinário n° 511.961/SP, o ministro Gilmar Mendes reiterou esse entendimento e averbou que a restrição à liberdade imprensa, todavia, deveria ser submetida a escrutínio e aprovada pelo princípio da proporcionalidade.

Nesse debate é pertinente a lembrança do que estatui a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha no artigo 5 (liberdade de opinião, de arte e de ciência), nº 2, em função do qual a liberdade de expressão poderá ser limitada pelas disposições das leis gerais e dos regulamentos legais para a proteção da juventude106. Entenda-se que a referência à generalidade da lei no dispositivo não

105 Constituição da República Federativa do Brasil:

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.”

106 Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, de 23 de maio de 1949: “Artigo 5 [Liberdade

de opinião, de arte e ciência] (1) Todos têm o direito de expressar e divulgar livremente o seu pensamento por via oral, por escrito e por imagem, bem como de informar-se, sem impedimentos, em

se cinge ao conhecido conceito de norma produzida para todos e com previsões abstratas, significando muito mais do que isto, porquanto, conforme orientação do Tribunal Constitucional Federal alemão, as leis gerais limitadoras da liberdade de expressão devem guardar neutralidade de opiniões, ou seja, não podem ter a pretensão de converter as pessoas para determinadas opiniões ou pontos de vista, nem objetivar demover alguém de uma opinião que tenha a respeito de algo, sendo- lhe, outrossim, proibido transformar a falta de valor ou a perniciosidade dos conteúdos de opinião em argumentos para previsões de ingerências107. Oposto à lei geral é o conceito de direito especial, gerado para proibir ou cercear uma atuação, normalmente permitida pelo ordenamento, em virtude da ideia ou concepção que lhe inspira e do efeito imaterial que irradia.

Do que foi exposto, segue a lição de que a lei não pode ser produzida com o objetivo de doutrinar nem de sufocar o espírito crítico, muito menos de inibir a curiosidade de enxergar o mundo através de vários matizes e ângulos, pois é fundamental o processo íntimo de cada um de autorreflexão e convencimento sobre os fenômenos da realidade.

Tal premissa, todavia, não simplifica a tutela constitucional do direito em estudo, tendo em vista a existência de situações concretas que desafiam a lógica da neutralidade da lei como fundamento importante para assegurar a liberdade de expressão. Vamos expor alguns problemas.

O fato de uma lei ser considerada geral (sem julgamento do conteúdo da opinião) não afasta naturalmente o perigo de ela restringir de forma inconstitucional a liberdade de expressão, pois até mesmo aspectos secundários dessa lei podem implicar severa compressão do direito fundamental, não perceptíveis em uma análise perfunctória. Importa aferir, na hipótese, quais as restrições incidentais que a lei provoca sobre a liberdade de expressão e ainda qual o grau da ingerência. Compreenda-se por restrições ou limites incidentais à liberdade de expressão aqueles que, por via reflexa ou indireta, impliquem diminuição do alcance ou

fontes de acesso geral. A liberdade de imprensa e a liberdade de informar através da radiodifusão e do filme ficam garantidas. Não será exercida censura. (2) Estes direitos têm por limites as disposições das leis gerais, os regulamentos legais para a proteção da juventude e o direito da honra pessoal.”, cit.

107PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais..., cit., par. 632, 638 e 639, p. 214

proteção da liberdade, os quais podem figurar inclusive em diplomas legais onde ela não seja o tema em destaque108.

Na jurisprudência norte-americana, por exemplo, a Suprema Corte, no case Grosjean v. American Press Co. (297 U.S. 233 – 1936) reputou inconstitucional a criação de tributo estadual no percentual de 2% das receitas brutas da publicidade de jornais com tiragem acima de vinte mil exemplares, tendo em vista que, conforme assentou o tribunal, a tributação seria instrumento sub-reptício para dificultar a circulação da informação109. Atente-se que no caso apreciado pela Suprema Corte a lei questionada perante a Constituição versava, em princípio, sobre matéria tributária e não tinha o objetivo declarado de afetar a liberdade de imprensa; porém, após examinados os efeitos reflexos práticos da norma sobre a atividade da imprensa, desnudou-se a intenção do legislador de imiscuir-se na livre circulação da comunicação na comunidade.

Por isso, na precisa advertência de Jónatas Machado, na seara dos limites dos direitos fundamentais a prioridade deve ser não apenas perquirir na lei a existência de uma vontade restritiva, pois igualmente importante é dimensionar os efetivos impactos restritivos substanciais da norma sobre as posições jusfundamentais em jogo110.

É preciso ressalvar as leis gerais que afetam a liberdade de expressão, direta ou reflexamente, mas não devem ser reputadas inconstitucionais por: a) colimarem resguardar outros valores que vindicam e merecem proteção jurídica; b) lograrem aprovação no teste da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito). Dessa forma, não seriam afrontosas à Constituição leis que: a) restrinjam manifestações públicas em determinado local para promover a segurança das vias de tráfego ou proteger o patrimônio ambiental, histórico ou turístico111 (seria absurdo concluir pela inconstitucionalidade de norma, por vulneração da liberdade de expressão, que impedisse o acesso de pessoas em marcha de protesto a uma área específica que abrigassem fauna e flora ameaçadas de extinção); b) proscrevessem a instalação de outdoors em prédios de regiões

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MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão..., cit., p. 714.

109 Ibidem, p. 718. 110 Idem.

próximas a aeroportos, a fim de evitar problemas de visibilidade para o tráfego aéreo.