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Capítulo 2 LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA REALIDADE

2.4. Sujeitos da manifestação do pensamento

Na acepção de direito fundamental – e também de direito humano, em uma perspectiva internacional da posição jusfundamental53 – a liberdade de expressão carrega o gene da universalidade. Claro que, a princípio, considera-se titular dela o indivíduo, considerado na sua órbita particular. Depois, evoluindo a compreensão e os estudos sobre o tema, passou-se a aceitar também como sujeito ativo a pessoa jurídica, inclusive de direito público. Na arguta reflexão de Canotilho e Vital Moreira, a extensão dessa liberdade para as pessoas coletivas é congruente com a atuação e natureza de cada uma, exemplificando que a liberdade de expressão, de informação e o direito de resposta podem ser fundamentos de ação coletiva proposta por uma delas, como sucede com demandas ajuizadas por sindicatos ou partidos políticos54. Assim, em resumo, pode-se asseverar que quaisquer pessoas físicas e jurídicas, nacionais ou estrangeiras, titularizam o direito à liberdade de expressão55.

Interessante antecipar, por pertinente, que o fenômeno da massificação dos meios de comunicação e das tecnologias digitais integrativas da sociedade global, no contexto hodierno, estimulou em níveis impressionantes o intercâmbio de ideias, opiniões e juízos de valor entre cidadãos de diversas nacionalidades e realidades socioculturais. De fato, tornou-se banal divisar tantos “filósofos”, “críticos das artes”, “técnicos de futebol”, “analistas políticos”, entre outros “pensadores”, na comunidade, mormente nos infinitos círculos da internet e redes sociais. Na presente era, o consumidor - na condição de homem médio produto do seu tempo – que estiver na posse de um smartphone com os aplicativos Facebook, Twitter e WhatsApp sente verdadeira compulsão de expressar sua leitura do mundo, acerca de qualquer assunto e a qualquer tempo, nem que seja tão somente para replicar alguma outra mensagem recebida através daqueles mesmos aplicativos. Por isso, não é exagero concluir que o conceito de universalidade dos sujeitos ativos da liberdade de expressão encontra-se em inédito grau de realidade. O mesmo

53 NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra

Editora, 2006, p. 82.

54

CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República..., cit., p. 576.

55 SARMENTO, Daniel. Comentário ao artigo 5º, inciso IV. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES,

Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, e-book, p. 571.

fenômeno aumenta consideravelmente a escala dos receptores da manifestação do pensamento, superdimensionando a exposição pública das pessoas às visões concebidas nas mentes alheias.

Quanto aos destinatários da liberdade de expressão, no sentido de contra quem ela pode ser exercida, a primária concepção liberal desse direito (escudo de defesa em face do arbítrio do governante) coloca o Estado (poder público dominante) como o sujeito passivo. Nas relações particulares, por outro lado, a liberdade de expressão irradia-se horizontalmente com algumas ponderações, porquanto nessa seara não pode ser aplicada de modo absoluto ou indiscriminado. Isto porque a autonomia privada, embora tenha perdido muito da sua prevalência com as diretrizes do Estado social, ainda é valor reconhecido pelas constituições democráticas. Por conseguinte, os efeitos da liberdade de expressão efetivamente vinculam os particulares56, mas são mitigados, muitas vezes com eficácia apenas indireta, ou seja, concretizados pela legislação infraconstitucional e através de cláusulas gerais.

Obtempera Paulo Gustavo Gonet Branco, no ponto, que, a pretexto de tutelar esse direito fundamental, não se poderia compelir um jornal privado a publicar determinada opinião fora das situações de direito de resposta57. De outra sorte, no contexto da aplicabilidade da liberdade de expressão nas relações privadas, alude o autor à decisão do Supremo Tribunal Federal proferida no julgamento do Recurso Extraordinário nº 197.911, em 24 de setembro de 1996, cujo relator foi o ministro Octavio Galloti, onde se reconheceu a obrigatoriedade de empresas permitirem a afixação de avisos de sindicatos de trabalhadores em quadro de avisos58.

Especificamente no estudo da liberdade de imprensa (forma qualificada de liberdade de expressão), questiona-se se os jornalistas e profissionais da área, escudados na liberdade de expressão, poderiam veicular matérias contrariando a linha editorial ou pauta exigidas por seus empregadores, no que se convencionou chamar de “liberdade de imprensa interna”.

Impõe-se considerar, inicialmente, que todos na organização interna de uma empresa de comunicação são titulares do direito à liberdade de expressão,

56 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: Direitos Fundamentais. Tomo IV. 5ª

edição. Coimbra: Coimbra, 2012, p. 135.

57Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito..., cit., p. 335. 58 Ibidem, p. 384.

como o editor, diretor, redator, jornalista e até mesmo o contabilista da empresa59. Porém, em que pese a amplitude de titulares, não há como se sustentar o exercício dessa liberdade pelo empregado - como, por exemplo, o jornalista - de modo que o autorize a divulgar no canal de comunicação da empresa (periódico, jornal impresso, programa de rádio etc.) matéria divergente com o perfil ou orientação editorial adotados pela organização de imprensa onde trabalha, pois isto implicaria afetação da própria liberdade de expressão da pessoa jurídica, além de impingir a esta eventuais responsabilidades por opiniões com as quais não concorda60.

Sobre a questão, argumenta Daniel Sarmento, com propriedade, que o pluralismo interno na esfera da comunicação social - entendido como a garantia de espaço equitativo na organização jornalística para a veiculação de pontos de vista diversos sobre temas de interesse público - não deve justificar afetações excessivas na autonomia editorial das empresas, porquanto tais intervenções acabariam por cercear o fundamental papel de pluralismo externo (existência de vários agentes circulando manifestações de pensamento diferentes na sociedade) que estas desempenham no cenário comunitário61. Como advertiu Perlingieri, a atividade informativa não ostenta uma inalcançável neutralidade62, em função do que as visões de mundo que permeiam as publicações e realizações jornalísticas têm indiscutível papel e contribuição na formação da personalidade.

À luz dessa ponderação e do pensamento predominante no constitucionalismo brasileiro, é legítimo concluir que as empresas de comunicação têm o direito de preservar perante a sociedade a sua linha editorial, mesmo que para isto optem por aproveitar ou não aproveitar o conteúdo do trabalho dos jornalistas constantes do seu quadro, filtrando o material para priorizar o que guarda harmonia com as diretrizes editoriais da organização. Esse crivo é relevante, outrossim, para, no plano da transparência ética, mostrar à comunidade quais as concepções políticas, sociológicas, econômicas e culturais que norteiam as divulgações da empresa na atividade de imprensa.

59

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais..., cit., par. 615, p. 208.

60 Relembre-se que, no Brasil, o Superior Tribunal de Justiça, através da Súmula 221, professa que

“são civilmente responsáveis pelo ressarcimento do dano, decorrente de publicação pela imprensa, tanto o autor do escrito quanto o proprietário do veículo de divulgação”.

61

SARMENTO, Daniel. Comentário ao artigo 220. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários..., cit., p. 4773/4774.

62 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na legalidade constitucional. Tradução de Maria Cristina

Oportuna, aliás, a afirmação de Jónatas Machado de que as decisões redatoriais não tipificam, a princípio, censura, pois as liberdades dos jornalistas devem ser compreendidas no ambiente de liberdade interna da empresa jornalística, onde existe normalmente relação de hierarquia entre os seus integrantes63. Ademais, salienta ainda o autor, a tutela constitucional das liberdades de comunicação abrange entidades explicitamente dedicadas à difusão de uma tendência editorial, com fidelização a concepções de pensamento bem definidas, seja no campo político, ideológico, filosófico, religioso etc64. O direito de tendência da organização, por conseguinte, constitui restrição à liberdade de expressão interna dos profissionais que nela trabalham, os quais devem harmonizar sua produção à orientação adotada na empresa. Dessa forma, se determinada empresa de comunicação, a título de ilustração, perfilha nas suas publicações conteúdo eminentemente social e intervencionista, ser-lhe-ia legítimo pelo prisma da liberdade de expressão exigir dos seus jornalistas que não escrevam matérias professando ideias do liberalismo econômico burguês clássico.

Ressalte-se, contudo, que as liberdades de criação e redatorial dos jornalistas, enquanto frutos da inventividade intelectual e da independência para apuração de fatos relevantes, encontram-se protegidas pela liberdade de expressão e de imprensa, não sendo isto inconciliável com a faculdade das entidades de comunicação de veicularem o que for compatível com seus estatutos editoriais.

Em perspectiva mais abrangente do que a perfilhada pela Carta Magna brasileira de 1988, a Constituição da República Portuguesa de 1976 consagrou no seu artigo 38º, nº 1, que a liberdade de imprensa implica “a liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores, bem como a intervenção dos primeiros na orientação editorial dos respectivos órgãos de comunicação social, salvo quando tiverem orientação doutrinária ou confessional”. A Lei Fundamental portuguesa claramente procurou mediar o direito interno de expressão dos jornalistas com o direito de orientação editorial das empresas de comunicação, clarificando que este segundo direito não se afigura absoluto.

E foi mais adiante a Constituição portuguesa ao consignar no nº 2 do artigo acima referido que a liberdade de imprensa implica outorga aos jornalistas da

63MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão..., cit., p. 533. 64 Ibidem, pp. 538-539.

possibilidade de, nos termos da lei, elegerem os conselhos de redação, direito que, conforme explicam Canotilho e Vital Moreira, colima fomentar a participação democrática dos jornalistas, através de um processo colegiado de decisões, nas deliberações e definições da linha editorial da empresa de comunicação65.

Voltando à realidade jurídica brasileira, onde a proteção às escolhas editoriais das organizações de comunicação social apresenta-se, em princípio, mais intensa, não se nega ao jornalista a faculdade de, sem qualquer ônus ou sanção contratual, por termo à relação profissional que possua com empresa jornalística cujo perfil editorial conflite com as crenças e convicções daquele66. Prestigia-se, em tal situação, a liberdade de expressão e consciência do jornalista de forma semelhante à clause de conscience do Direito Francês, a qual, surgida na década de 1930, autorizava o profissional da imprensa a resolver o contrato e obter indenização quando fosse demitido arbitrariamente e a empresa alterasse a linha editorial de modo que afetasse “a honra, a consciência ou outros valores morais do jornalista”67.