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CAPITULO II – A PRÁTICA EM CONTEXTO DE TRABALHO

3. A prática|practicum enquanto dispositivo de desenvolvimento profissional docente em

3.2 A prática|practicum enquanto lugar de socialização e construção identitária do docente

O conceito de desenvolvimento profissional que partilhamos não se implementa no vazio. Como vimos, requer contextos de trabalho, reais, onde possam ocorrer experiências profissionais e de formação que contribuam de forma relevante para o

aperfeiçoamento da ação profissional ao longo da vida|carreira. Importa, neste plano, destacar a importância da socialização para o desenvolvimento profissional e também remeter para as suas implicações no processo de construção dinâmica da identidade profissional.

A socialização do professor tem sido geralmente definida como um processo por meio do qual o indivíduo se torna parte de um coletivo docente.

Hughes (1955, citado por Dubar, 1997), autor que se situa na perspetiva do interaccionismo simbólico, encara a socialização profissional como uma “iniciação” à cultura profissional e uma “conversão” do indivíduo a uma nova conceção do eu e do mundo, ou seja, o assumir de uma nova identidade, na qual, considera quatro elementos base: a natureza das tarefas; a conceção do papel; a antecipação da carreira e a imagem do eu.

No campo educativo, diversos autores sustentam a ideia de que as predisposições dos estudantes-futuros professores, estão no centro do “tornar-se professor”, exercendo uma grande e poderosa influência socializante, mais até, do que a formação inicial ou posteriormente a socialização no local de trabalho (Tardif, 2002; Mizukami, 2002; Masetto, 1998; Zeichner & Gore, 1990; Lanier & Little, 1986; Lortie, 1975). No caso dos docentes de Enfermagem, como sucede com a quase totalidade dos docentes do ensino superior, não há propriamente lugar a uma formação inicial enquanto professor, pelo que, baseando-nos na nossa própria experiência, estamos em crer que a socialização inter pares pode ter uma grande influência no processo de desenvolvimento profissional.

Na tentativa de explicar o processo de socialização do professor do ensino superior, diversos autores (Cunha, 2004; Benedito et al., 1995; Imbernón, 1994; Pajares, 1992), reiteram o afirmado anteriormente, considerando que o professor aprende a sê-lo mediante um processo de socialização intuitivo, autodidata ou seguindo a rotina dos outros, através da observação dos professores que vão tendo e, desse modo, desenvolvem a interiorização dos múltiplos papéis a que são chamados a responder por via da observação. Sob esta perspetiva, a formação poderá vir a alterar as conceções existentes nos professores, contudo, alguns autores, chamam à atenção de que determinadas crenças ficam profundamente enraizadas nos professores, atuando como filtros de informação, que podem inflenciar a forma como estes se apropriam, usam e

guardam o conhecimento e que, por isso mesmo, dificilmente essas crenças sofrem alterações (Hernández Pina & Maquilón Sánchez, 2011; Vause, 2010; Garcia, 2009; Zabalza, 2004; Guskey e Sparks, 2002). De acordo com Bireaud (1995), tais circunstâncias poderão ser propiciadoras do desenvolvimento de atitudes e estilos docentes concordantes com uma perspetiva individualista do ensino, que a autora designa de “síndrome de ensinar à minha maneira” o que, de algum modo, pode justificar a resistência docente à inovação. Para Zabalza (2004), tais atitudes, podem fazer com que os professores funcionem individualmente como se fossem uma espécie de “célula fechada e autónoma”, tornando-se um sério obstáculo ao seu próprio desenvolvimento profissional e ao dos demais professores, podendo inclusive, constituir um fator condicionante do desenvolvimento de uma cultura colaborativa entre pares. Sendo a socialização profissional um processo complexo, através do qual os indivíduos se vão apropriando da cultura profissional dos grupos a que pertencem, (re) construindo ou reconvertendo o seu “eu profissional” (Dubar, 1997), evidencia-se que esse processo pode ser condicionado por diversos tipos de influências: as que advêm do tempo anterior à formação formal, em consequência das experiências escolares; aquelas que decorrem do período de formação inicial e, ainda, as que resultam do exercício profissional (Zeichner & Gore, 1990; Lortie, 1975). Trata-se, portanto, de um processo que decorre ao longo de toda a vida o que remete o professor para a condição de lifelong learner. No caso dos docentes de Enfermagem, ao interagirem com os diversos contextos profissionais e atores, reconhecem-se como grupo profissional ancorado na Enfermagem mas que, ao longo de um percurso na docência, paulatinamente, fazem a sua transição para a profissão docente passando de um estatuto profissional a outro (Mestrinho, 2011).

De acordo com Alves (2008), os contextos socializadores podem ser categorizados segundo três dimensões: o contexto pessoal (que se refere a imagens, perceções e crenças sobre a profissão); o contexto ecológico social (relativo a influências sociais sobre os atores em interação com o meio ambiente) e o contexto ecológico institucional (ao nível das organizações de formação inicial e de trabalho onde se apresentam as influências do clima e cultura organizacionais). No caso especifico dos professores de Enfermagem,

“(…) estes são socializados em diversas instâncias de socialização, nas escolas e

de um serviço socialmente reconhecido, em que se inscrevem valores próprios da profissão de Enfermagem, da docência e do seu desenvolvimento profissional que é mediado por estudantes, enfermeiros e outros membros de equipas multi-profissionais e ainda pelos utentes dos serviços de saúde e comunidade” (Mestrinho, 2011:37).

Para além disso, os processos de socialização podem ser também equacionados como um ajustamento situacional (através da imersão na cultura da profissão e apropriação de normas, regras e valores próprios), de adoção de estratégias sociais (a partir de uma seleção intencional de ideias e formas de agir face às interações estabelecidas num determinado contexto sócio-profissional), traduzindo-se na forma como cada profissional lida com as situações profissionais.

Qualquer que seja a forma como se encare o processo de socialização dos professores de Enfermagem, ela é hoje entendida como um processo permanente porque não acaba no “estadio terminal” mas, como temos vindo a evidenciar, acompanha o professor ao longo da sua vida, pois “a socialização nunca é completamente conseguida”, nem “nunca é total, nem acabada” como sublinham Berger e Luckmann (1999:178).

Tendo por base que o processo de socialização dos professores de Enfermagem decorre das múltiplas interações nas instâncias sociais e profissionais da Enfermagem e da docência no quadro do ensino superior, bem como dos percursos biográficos e motivações, importa não só clarificar o conceito de identidade de que partimos, mas também, perceber qual o contributo do practicum para a (re)construção identitária dos professores de Enfermagem.

O conceito de identidade, dada a sua complexidade, tem vindo a ser fundamentado em distintas escolas de pensamento: porém, genericamente, a sua explicitação conflui para a ideia de que adquirir uma identidade é um fenómeno psicológico, porquanto assente no eu, no self e, simultaneamente, sociológico, porquanto ocorre na interação com o outro. É, pois, um fenómeno que resulta da dialética entre o indivíduo e a sociedade (Dubar, 2006).

Sob esta perspetiva, pode-se considerar que a identidade remete para a capacidade do sujeito se reconhecer na diferença com o outro, isto é, na dualidade entre a identidade pessoal (identidade construída) e a identidade para os outros (identidade atribuída). De acordo com Dubar (2006), identidade contruída é aquela que depende do reconhecimento e da forma como os outros reconhecem as singularidades dos indivíduos enquanto seres sociais, resultando do reconhecimento individual e da

inscrição num jogo de poderes destinados a impor a outros as suas diferenças. Por sua vez, a identidade atribuída remete para um processo de transação relacional, uma vez que se desenvolve através de experiências decorrentes de um processo identitário que engloba uma identidade virtual e uma outra, construída sob a influência da formação, do trabalho e do emprego. O indivíduo é assim convidado a aceitar ou recusar as identificações que recebe dos outros e|ou das próprias instituições, mas também a (re)construir a sua identidade numa incerteza variável e mais ou menos durável.

Para Garcia (2009), a identidade profissional docente é a forma como os professores se definem a si mesmos e aos outros. Trata-se de uma construção do “eu profissional” que evolui ao longo da carreira docente e que pode ser influenciada pela escola, pelas reformas e pelos contextos políticos, que integra o compromisso pessoal, a disposição para aprender a ensinar, as crenças, os valores, o conhecimento sobre a matéria que é ensinada, assim como sobre o ensino, as experiências passadas, bem como a vulnerabilidade profissional.

De acordo com Lessard (1986 citado por Tardif et al., 1991), a identidade docente é o resultado de um processo de desenvolvimento pessoal e profissional que se realiza através de transições de vida e no quadro de um conjunto de fatores de natureza socioprofissional, que se expressa na relação que cada professor estabelece com a profissão com os seus pares e outros agentes educativos numa construção simbólica para si e para os outros. De igual modo, para Nóvoa a

“(…) fabricação identitária produz-se num jogo de poderes e de contrapoderes entre

imagens que são portadoras de visões distintas da profissão; ela articula dimensões individuais, que pertencem à própria pessoa do professor, com dimensões colectivas, que são inscritas na história e nos projetos do “corpo docente” (2000:136).

A identidade pode então ser entendida como uma construção mental e discursiva que os atores sociais operam em torno de si próprios ou em torno de outros atores, com os quais estão em contacto numa dada situação.

Sob esta perspetiva, as identidades profissionais não são estáticas, evoluem permanentemente, no tempo e no espaço. Vão sendo construídas através de escolhas mais ou menos conscientes que lhes conferem orientações e significações (Abreu, 2001).

Procurando diferenciar a identidade profissional docente de outras identidades profissionais, Garcia (2009) identifica catorze “caraterísticas” distintivas ou

“constantes”, a saber: a socialização prévia (conforme documentado nos trabalhos desenvolvidos por Lortie (1975)); as crenças sobre o ensino dirigirem a prática profissional e surgem em função de influências diversas: experiências pessoais, experiências com o conhecimento formal e experiência escolar e de aula; o conteúdo que se ensina constrói identidade, (de acordo com Zabalza (2004), no caso dos professores do ensino superior essa identidade pode ser contraditória, na medida em que os docentes se identificam mais facilmente com os saberes da respetiva especialidade do que com os saberes da docência); a fragmentação do conhecimento docente, isto é, alguns conhecimentos valem mais que outros; o aprender-se a ensinar ensinando, que releva o valor do conhecimento prático; o isolamento, segundo a qual os professores se “refugiam” na sala de aula, sendo “senhores” da mesma; os estudantes e a motivação profissional, na medida em que, a motivação para ensinar é uma motivação intrínseca, fortemente ligada à satisfação de conseguir que os estudantes aprendam; a carreira docente (carreira plana); o tudo depender do professor, ou seja, a ideia do professor como artesão; o docente como consumidor, ou seja, a visão do professor como técnico de ensino; a competência não reconhecida e a incompetência ignorada, relacionadas com o isolamento e com a ideia do professor como artesão; a desconfiança ante as tecnologias, relacionada com a resistência à sua utilização mas também expressa a resistência à mudança em geral; a influência incompleta dos docentes, resultante da implantação dos meios de comunicação de massa; começar a ensinar: quanto mais difícil melhor, o que indicia a falta de preocupação pela forma como os docentes são integrados no ensino.

Diversos autores (Nóvoa, 2009a; Dubar, 2000; Formosinho, 2000; Hargreaves, 1996) evidenciam a influência e importância dos contextos de trabalho na construção identitária dos professores. No caso concreto da docência em Enfermagem, escasseiam os trabalhos acerca das questões identitárias dos professores, sendo que, os primeiros trabalhos acerca da identidade profissional dos enfermeiros, que permitem fazer algumas inferências sobre a docência em Enfermagem, remontam a investigações realizadas nas duas últimas décadas (Mestrinho, 2011). A generalidade dos autores fundamenta as referidas pesquisas em abordagens sociológicas, no quadro de diversos dispositivos de formação e de interações entre a identidade profissional e experiências de trabalho, analisando como e onde se constroem as identidades, como se desenvolvem os processos de socialização em contexto de trabalho e de que forma o desenvolvimento

profissional se processa (Serra, 2011; Abreu, 2008, 2001; Costa, 2002, 1998; Lopes, 2001; d`Espiney, 1999; Teixeira, 1997; Rebelo, 1996).

Embora hajam poucos estudos acerca da docência em Enfermagem e sejam parcos os que especificamente visam as questões identitárias destes docentes, as pesquisas de Figueiredo (2013), Lopes et al. (2013), Mestrinho (2011) e Pedro (2011) constituem um relevante contributo para e clarificação desta problemática.

Numa análise genérica e transversal aos estudos mencionados verifica-se que, em termos identitários, os professores de Enfermagem se encontram atualmente sob o signo da reconfiguração, consideradas as mudanças estruturais e políticas que têm vindo a ocorrer quer na saúde quer na educação, destacando-se neste último caso, a integração do ensino de Enfermagem no Ensino Superior Politécnico e a posterior integração no EEES.

Constata-se, pois, que os sujeitos dos diferentes estudos apresentam uma identidade profissional ambígua ou dual no sentido que lhe dão os diferentes autores. Apesar de os resultados indicarem que existe uma clara tendência dos sujeitos para a identificação com o grupo de pertença dos docentes do ensino superior e a uma revalorização dos seus papéis sócio-profissionais, manifesta em novas formas de ser e de estar na profissão docente, persiste nos seus discursos uma recorrente valorização da prática da Enfermagem como essência da profissão docente, reiterando o pensamento de que se assumem simultaneamente como enfermeiros e docentes, situação que parece refletir-se no seu modo de agir quer na academia quer nos contextos profissionais (Figueiredo, 2013; Lopes et al., 2013; Mestrinho 2011; Pedro 2011).

Para Mestrinho (2011), esta ambiguidade discursiva traduz uma identidade compósita que se repercute na dificuldade em separar o “ser enfermeiro” e o “ser professor”, surgindo assim, de acordo com a autora, “(…) um profissionalismo adaptativo, dado que os professores de Enfermagem estão num processo profissional ainda não completamente resolvido, faltando-lhes parte de um percurso que permite fazer a passagem para o grupo de pertença dos professores do ensino superior” (p.292), do qual a autora identifica as principais fases: ambiguidade identitária; profissionalismo adaptativo; passagem para o grupo de referência dos professores do ensino superior; reorientação e nova cultura profissional; ideal ético de docente orientado por valores de ensinar e cuidar; novas formas de profissionalismo docente.

A reconfiguração da identidade dos professores de Enfermagem é indissociável dos contextos formativos em mudança e parece revelar-se, entre outros aspetos (como por exemplo, na procura de formação pós-graduada quer ao nível de mestrado quer de doutoramento (Figueiredo, 2013; Pedro, 2011)), na paulatina transformação do profissionalismo docente e, consequentemente, nos modelos de formação. Neste âmbito e no que ao practicum diz respeito, transversalmente aos diferentes estudos, emerge o pensamento de que os ensinos clínicos constituem uma componente formativa singular e relevante que, através do contacto direto com as situações de trabalho, permite ao estudante desenvolver conhecimentos, capacidades (conceptuais e operativas), atitudes e valores indispensáveis a um desempenho profissional futuro competente.

Independentemente da instituição de formação, de modo geral, os modelos formativos parecem assentar na formação em alternância, nos quais a ação docente parece oscilar entre modalidades de formação que apelam à análise das práticas, à reflexão e à construção do conhecimento (congruentes com as exigências atuais do ensino superior) e modos de trabalho transmissivos e de aplicação|reprodução de conhecimentos, parecendo existir um domínio de competências que ainda não foi suficientemente desenvolvido pelos professores (Figueiredo, 2013; Mestrinho, 2011).

A mudança nos modos de trabalho docente parece colocar também em evidência a necessidade de um outro tipo de colaboração quer entre docentes quer entre estes e os enfermeiros dos contextos profissionais no âmbito dos processos de supervisão dos estudantes. Emerge assim como fundamental, o desenvolvimento de um projeto formativo conjunto que tanto sirva os interesses da formação inicial em Enfermagem como o desenvolvimento profissional docente e dos enfermeiros dos contextos de trabalho e que num sentido mais amplo, seja também um contributo efetivo para o desenvolvimento da disciplina de Enfermagem e da profissão.

Estamos conscientes de que diante de tais desideratos, os professores de Enfermagem vivem um dilema entre manter uma identidade herdada|construída na “antiga” Escola de Enfermagem ou então “(…) conceptualizar-se organizacionalmente com base numa nova realidade de heterogeneidade humana, discente, docente e contextual” (Formosinho, 2009:69), nos novos cenários que são agora a arena da sua ação docente.

3.3 O lugar da prática|practicum na construção do saber profissional do professor de