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“Quando o moinho pára o moleiro acorda.”

Por ser uma pessoa dada à escrita e à reflexão em diversas fases da vida, perante o desafio da escrita da narrativa autobiográfica profissional, lembrei-me das palavras de Fernando Pessoa, as quais me levaram a pensar que, sendo nós humanos tão diferentes uns dos outros, temos, por vezes, sensações e maneiras de pensar semelhantes, e quase que poderíamos descrever as nossas vivências e experiências da mesma forma (Pessoa, 2000:143):

―Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.

Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os

eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.

É frequente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito jovem – trechos dos dezassete anos, trechos dos vinte anos. E alguns têm um poder de expressão que me não lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há em certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que hoje sou.

Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime.

Ainda há dias sofri uma impressão espantosa com um breve escrito do meu passado. Lembro-me perfeitamente de que o meu escrúpulo, pelo menos relativo, pela linguagem data de há poucos anos. Encontrei numa gaveta um escrito meu, muito mais antigo, em que esse mesmo escrúpulo estava fortemente acentuado. Não me compreendi no passado positivamente. Como avancei para o que já era? Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.

Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo já o escrevi. Recordo. E pergunto ao que em mim presume de ser se não haverá no platonismo das sensações outra anamnese mais inclinada, outra recordação de uma vida anterior que seja apenas desta vida...

Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?‖

Lembro-me que num dos seminários promovidos pela ANEFA em que participei, foi proposto aos profissionais de RVC presentes a escrita de uma narrativa autobiográfica, para partilhar parcialmente em sede de formação e, se é verdade que abracei o desafio com agrado, não é menos verdade que a primeira página que escrevi foi uma tentativa de escapar à exposição do meu percurso de vida – uma introdução longa. Partilho agora essa mesma introdução e a narrativa que elaborei sobre o meu percurso de vida até aos vinte e três anos de idade, com a alteração e o desenvolvimento de algumas experiências, bem como o acrescento de outras até ao presente, em virtude dos objectivos a que me propus no presente trabalho.

Em virtude do objectivo da presente narrativa autobiográfica se centrar nos meus processos formativos a partir da experiência profissional, não irei ser tão exaustiva na

abordagem com carácter autobiográfico puro (todas as experiências das quais me lembro e que foram para mim importantes para a minha formação na globalidade enquanto ser humano), mas farei sim uma abordagem com carácter experiencial temático e pontual, de acordo com as experiências profissionais e formativas mais relevantes para o presente trabalho, sendo que (por uma questão de reserva), mais importante do que identificar algumas entidades por onde passei, são o conteúdo funcional e as aprendizagens delas decorrentes. Ainda assim, não podia deixar de explorar a minha formação base familiar que, de forma determinante, contribuiu para a pessoa e profissional que sou hoje. Desconfio que a minha narrativa não será apenas centrada na experiência profissional. Alerto para o facto de tentar, tanto quanto me é possível, reflectir sobre a transferência das qualidades e ―competências‖ da infância e juventude para o exercício profissional como profissional de RVC. Essas reflexões vão intercalando as experiências pontuais que conto. Inicio desta forma a minha narrativa...

Narrar uma história tem muito que se lhe diga…tanto mais quando se trata da nossa história de vida. É um projecto ambicioso, quase ambicioso demais para se concretizar no sentido que lhe atribuímos, a saber: contar todos os factos da nossa vida de forma temporalmente organizada, interligando-os através de fios condutores de um ou mais sentidos, e atribuindo-lhes de forma particular ou mais global, um significado que será sempre subjectivo, mas não necessariamente irracional.

A história da nossa vida pode conter acontecimentos que se inscrevem nos mais variados espaços e contextos, os quais, numa perspectiva construtiva, tornam-se factores de aprendizagem e motores para o desenvolvimento de competências que: ou não estamos conscientes delas, ou não sabemos catalogá-las.

Uma história de vida nunca está completa, há sempre algo a acrescentar. Uma história de vida nunca de alegrias está repleta, há sempre acontecimentos a lamentar. Uma história de vida nunca se conta a todos tal como foi, ou porque a visão de quem a conta se turvou, ou a leitura de quem ouve não se mostrou ser a mais correcta.

Passar para o campo de referências de quem conta uma história, sem tabus, sem preconceitos, demonstrando toda a empatia necessária, é uma tarefa árdua que o Homem tem tentado empreender desde o início da sua existência, sem que consiga

realizá-la com total capacidade de isenção. Contar uma história de vida com toda a clareza possível, partindo do princípio que esta vai ser compreendida numa óptica positiva e de respeito, sem qualquer juízo precipitado, sem qualquer comparação irreflectida, é algo verdadeiramente utópico, dada a natureza imperfeita do Homem. O meu objectivo é contar a minha história de vida, a qual, desde já confesso, terá um pendor mais profissional, pelas razões já mencionadas. Esta escolha consciente será encarada como uma resistência, aliás, esta introdução será igualmente considerada como um sinal de pura resistência, e de facto assim é!