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Pois desse lado do muro, o jogo é tão duro, meu pai, que só ter piedade de nós não vale a pena [ ] Coração

1.1 O QUE PRECISA SER DITO SOBRE A SAÚDE

Delimitamos o que achamos necessário ser mencionado sobre a saúde porque muito pode ser comentado. A literatura referente à temática é ampla e por vários caminhos é possível enveredar (campo, direito, conceito, políticas públicas em saúde)11. A sua importância política, social e estratégica para a vida das populações,

conforme reconhecida por Luz (1995), também pode ser retratada. A relevância dos conhecimentos e das práticas em relação à saúde para a sua promoção, assim como para a prevenção e a cura das enfermidades, ainda é outro foco possível.

11Referimo-nos aqui a campo, tal como o concebe Bourdieu (1997): universos sociais relativamente

autônomos, nos quais profissionais da produção simbólica defrontam-se em lutas que objetivam a imposição de princípios e de visão de mundo.

Visto que não objetivamos fazer uma revisão sobre o tema, mas subsidiar nossas considerações sobre a educação em saúde, expomos o que avaliamos ser, temporariamente, o indispensável para este fim. Discutimos o assunto porque, embora nosso foco principal seja a educação em saúde, a concepção que temos de saúde pode interferir na nossa forma de nos relacionar conosco e com os outros. Nesta acepção, há uma associação entre o acesso à educação e melhores níveis de saúde e de bem-estar, pois, dependendo do grau de instrução, podemos ter atitudes positivas ou negativas a respeito da vida.

A articulação da saúde não se dá, porém, exclusivamente com a educação. Podemos afirmar que existe uma primeira relação desta com a doença, posto que elas não se disjungem. Ou seja, constituem o processo saúde-doença. Processo que pressupõe uma articulação entre as diferentes interfaces sociais e depende do modo e da qualidade de vida e do acesso aos bens e aos serviços.

A problemática da saúde-doença, segundo Capra (1992), deve ser compreendida como um fenômeno multidimensional, que envolve aspectos físicos, psicológicos e sociais, todos interdependentes. De acordo com Rondelli (1995), a saúde-doença está intrinsecamente ligada à natureza do corpo humano que, embora universal quanto à sua estrutura anatômica e fisiológica geral, é tomado, pelas culturas e imaginários, como objeto de múltiplas e quase infinitas construções significativas. Tais construções passam a funcionar como guias das práticas exercidas sobre o corpo e dependem do momento histórico em que são realizadas.

Nesta perspectiva, baseado na visão de saúde-doença como processo social e biológico, com historicidade própria, e, como tal, essencialmente dinâmico, Rezende (1989) avalia que as ações desenvolvidas para a promoção da saúde e para o combate às doenças são guiadas pela “ideologia dominante”, no contexto social,

político, econômico e cultural das várias épocas da história. Isto justifica a reelaboração do modelo de atenção básica à saúde, no Brasil.

A própria definição da doença e da saúde, de acordo com Adam e Herzlich (2001), se dá em função das exigências do ambiente, das nossas inscrições e relações familiares e profissionais, constituindo-se, em sentido próprio, estados sociais. Neste sentido, Silva (1973) concebe a saúde e a doença como processo resultante da interação do homem consigo mesmo, com outros homens na sociedade e com elementos bióticos e abióticos. Tal interação se desenvolve nos espaços social, psicológico e ecológico, e, sendo um processo, tem dimensão histórica. Segundo o referido autor, a saúde é entendida como o estado dinâmico da mais perfeita adaptação possível às condições de vida em dada comunidade humana, num certo momento da escala histórica. Em contrapartida, a doença é compreendida como manifestações de distúrbios de função e estrutura decorrentes da falência dos mecanismos de adaptação, e se traduz em respostas inadequadas aos estímulos e às pressões aos quais os indivíduos e os grupos humanos estão continuadamente submetidos.

Diante do exposto, é possível compreendermos porque a saúde do indivíduo não depende exclusivamente dele, mas também da sua família, da comunidade na qual se encontra inserido, da nação. Razão pela qual, para obter qualidade de vida na dimensão saúde, é necessário que o indivíduo seja co-responsável pela sua saúde e pela saúde da coletividade. Esta é, ao nosso ver, a concepção que perpassa o PACS e o PSF.

Embora abordemos a saúde em articulação com a doença, posto que compactuamos com as idéias dos autores apresentados acerca da existência de um processo, podemos destacar especificamente a saúde e os fatores que a promovem.

Do mesmo modo, podemos nos referir à prevenção ou ao controle da doença, sem que isto signifique uma ruptura.

Segundo Brasil (1998, p. 249), “saúde como o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não como ausência de doença, [...] nos remete à utopia de saúde ótima, embora não nos forneça indicações concretas sobre o que seria esta situação de completo bem-estar”. Como se pode concluir “que um indivíduo não doente seja saudável de fato?” Se alguns são doentes do ponto de vista biológico e nem por isso deixam de participar da vida social e dos processos de produção; e alguns são portadores de deficiências temporárias. As condições individuais comportam, por sua vez, um alto grau de subjetividade, pois a saúde vai além do orgânico, havendo algo de singular na história da saúde de cada um, tornando-a um conceito amplo e complexo.

Nesta direção, Fernandes (1996, p. 32) questiona “[...] en que consiste um estado de completo bienestar? [...] és evidente que no se puede delimitar objectivamente y la respuesta, necessariamente va a ser subjetiva”. Conclui a referida autora que o conceito de saúde é extremamente subjetivo.

Especificamente nas comunidades ocidentais, as definições de saúde tendem a ser menos abrangentes. No caso de populações pobres, Helman (1994, p. 105) afirma que “[...] a definição funcional de saúde, provavelmente, é baseada na necessidade (econômica) de continuar trabalhando [...]”. A mesma definição é atribuída para o que se refere à assistência à saúde.

Helman (1994) concebe a saúde como algo mais do que ausência de sintomas desagradáveis e compreende que o seu conceito, assim como o de doença, difere entre indivíduos, grupos, culturas e classes sociais. Dado que os ACSs pertencem a um grupo social e culturalmente diferenciado daqueles aos quais pertencem os

médicos, as enfermeiras e os odontólogos do PSF, inferimos que suas representações sociais de saúde se diferenciam. Inferência que nos faz pensar ainda que suas representações sociais de educação em saúde se distinguem. Porém, conforme expomos mais adiante, devido à metodologia adotada no presente estudo, o teste destas hipóteses não foi possível.

Ainda no que concerne à definição de saúde, Na VIII Conferência Nacional de Saúde (CNS), o seu conceito foi ampliado, e posteriormente aplicado na Lei 8080/90. A saúde passa a ser concebida como resultado de fatores tais como alimentação, habitação, educação, transporte, condições de emprego, renda, lazer, informação, acesso a bens e serviços coletivos essenciais. Nesta mesma perspectiva, Cohn et al. (2002) afirmam que para se ter saúde é necessário uma infra-estrutura urbana satisfatória. Ou seja, que se possua o conjunto das instalações necessárias às atividades humanas: rede de esgotos e de abastecimento de água, energia elétrica, coleta de águas pluviais e rede telefônica.

Chamamos a atenção para o fato da saúde requerer educação e da educação igualmente exigir saúde. Porém, destacamos, por enquanto, que a associação entre acesso à educação e a melhores níveis de saúde e de bem-estar é evidente (BRASIL, 1998), uma vez que as taxas de mortalidade infantil em diferentes países e realidades, por exemplo, são inversamente proporcionais ao número de anos de escolaridade da mãe.

Até aqui, vimos discorrendo sobre a saúde do ponto de vista de especialistas do campo da saúde, cujo capital científico é reconhecido no campo acadêmico. Porém, tratamos de conceituá-la, deixando de traçar um histórico da temática. O que o fazemos, de certa forma, ao historiar sobre a educação em saúde. Entretanto, uma vez que estamos focando o agente comunitário de saúde, não podemos deixar

de situar o contexto mais amplo no qual ele está inserido: O Sistema Único de Saúde12. Por conseguinte, precisaremos discorrer sobre a Reforma Sanitária.

Segundo Silva e Rodrigues (2000), a Reforma Sanitária trouxe a saúde para a arena das decisões políticas e não somente técnicas. Este contexto permite explicitar, claramente, na ótica aqui adotada, que a saúde não é apenas mais um setor da intervenção estatal, mas um campo social, tal como formulou Bourdieu. Um espaço social estruturado, onde tudo o que diz respeito à saúde (conhecimento, técnicas, cargos, verbas etc.) passa a ser objeto de intensas lutas simbólicas e embates concretos entre os partidários da capitalização e da mercantilização do objeto saúde, em sentido macro.

O movimento da Reforma Sanitária concebe as práticas de saúde com base no conceito de saúde como qualidade de vida e não somente assistência a doenças (BRASIL, 2003a). O PSF e o PACS são programas, portanto, que vêm propondo uma mudança nas práticas e concepções tradicionais de saúde, de acordo com as diretrizes do SUS. Sobre eles precisamos discorrer, posto que é no seu contexto que se situa o agente comunitário de saúde. Adiaremos, no entanto, a exposição relativa aos mesmos para falarmos sobre a educação. Discussão que requer mais do que um enfoque direcionado para a abordagem específica do processo educativo, pois nosso olhar está voltado para um objeto não menos complexo: a educação em

saúde.

12Cf MAIA, C. M. F. L. A construção da gestão municipalizada em Campina Grande: a saúde e

seu processo histórico-social de 1987 a 2000. (Dissertação de Mestrado Interdisciplinar em Saúde Coletiva). Campina Grande: UEPB, 2003. 173 p., que dedica um capítulo à análise dos princípios norteadores e às normas operacionais do SUS.

1.2 CONSIDERAÇÕES NECESSÁRIAS PARA A DISCUSSÃO DA EDUCAÇÃO