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Preconceito, discriminação racial e desigualdade

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CAPÍTULO 2 DIREITOS HUMANOS E AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL

2.1 Preconceito, discriminação racial e desigualdade

Para apreender a dimensão das políticas de ações afirmativas, todavia, é necessário

discorrer sobre os conceitos sobre os quais se assentam: racismo, preconceito, discriminação racial e desigualdade. E ainda, justiça e equidade que serão apresentadas no item subsequente.

Torna-se importante lembrar que, no Brasil, o mito da democracia racial se manteve legitimado durante muitos anos pelas obras de Gilberto Freyre. Em seus livros Casa grande &

senzala e Sobrados e mucambos, publicados em 1933 e 1936, respectivamente, ele promoveu

a mestiçagem e conservou o silenciamento sobre a real condição do negro brasileiro.

Carvalho (2006) esclarece que Freyre afirmava não haver nenhuma raça inferior à outra

e que a mestiçagem nacional não deveria ser considerada um problema, e sim uma vantagem. Com esse discurso, ele desviou o debate contra o racismo social existente, configurado na efetiva dificuldade de ascensão dos negros, e que foi denunciado, entre outros, pela Frente

Negra Brasileira.44 Freyre também conseguiu impedir, com todo poder de sua influência, que os

negros assegurassem sua identidade. Assim, Carvalho (2006, p. 101-102) denuncia:

A ideologia freyreana implica também uma desautorização de identidade: aquele que detém todo o poder econômico e social ainda se atreve a desautorizar a identidade com que o discriminado se apresenta. [...] A doutrina da democracia racial foi um decreto de um autor de ensaios contra todas as evidências dos dados oficiais sobre as condições de vida obtidas por sucessivos recenseamentos ao longo do século XX. [...] Os argumentos freyreanos são a vitória do sofisma sobre os dados empíricos, da difusão da apologia do falso sobre a denúncia censurada do verdadeiro.

Os resultados foram devastadores. Kabengele Munanga, na apresentação do livro de Carvalho (2006), esclarece que a ideologia freyreana é um racismo à moda brasileira, que tem como característica o mito da democracia racial que alimentou inúmeros conflitos latentes e camuflou as desigualdades raciais. Além de ter causado prejuízos no “[...] processo de construção da identidade coletiva dos negros”. Prosseguindo, Munanga, afirma que ela atrasou o debate travado “[...] na sociedade brasileira sobre as reivindicações de políticas de ação afirmativa em benefício dos negros”. Santos (2001, p. 80) afirma que preconceito é sempre,

[...] uma atitude negativa em relação a alguém, [...] é uma atitude antecipada e desfavorável contra algo. Essa atitude pode ser tomada em relação a um indivíduo, a um grupo ou mesmo à uma idéia.[...] Portanto, o preconceito racial ocorre quando uma pessoa ou mesmo um grupo sofre uma atitude negativa por parte de alguém que tem como padrão de referência o próprio grupo racial.

O racismo, afirma esse mesmo autor,

[...] parte da suposição irracional da superioridade de um grupo racial sobre outro. É também a crença de que determinado grupo possui defeitos de ordem moral e intelectual próprios. [...] Nada disso conta com o apoio da ciência autêntica, que jamais autorizou esse entendimento. O racismo é uma construção dos homens. É, portanto, ideologia (SANTOS, 2001,p. 83).



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Sobre a Frente Negra Brasileira, ver o artigo de Petrônio Domingues: O Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Março/2007. Por meio eletrônico. < www.scielo.br/pdf/tem/ v12n23/v12n23a07 > Acesso em: 22/02/2014.

O preconceito e o racismo, conforme Santos (2001) e Gomes (2005), são formas de agir, ou seja, são maneiras de ver as pessoas ou as sociedades raciais. E quando essas ações ou atitudes se manifestam para prejudicar o outro ocorre a discriminação. Sendo assim, pode- se afirmar que a discriminação tem em sua base o racismo e o preconceito.

Jaccoud e Beghin (2002) definem discriminação racial45 como “[...] toda e qualquer

distinção, exclusão ou preferência racial que tenha por efeito anular a igualdade de oportunidade e tratamento entre os indivíduos ou grupos” (p. 35), esclarecendo também que ela pode se apresentar de forma direta ou indireta. A discriminação racial direta concretiza-se na ação imediata, resultando na exclusão do discriminado, em razão de sua cor; a discriminação racial indireta evidencia-se de forma dissimulada, ou seja, não é um ato concreto, e sim uma decorrência “[...] de práticas administrativas, empresariais ou de políticas públicas aparentemente neutras, porém dotadas de grande potencial discriminatório” (JACCOUD; BEGHIN, 2002, p. 35).

Assim, pode-se concluir que uma discriminação ocorre quando o indivíduo é tratado

de modo igual em situações diferentes ou, ainda, quando é tratado de forma diferente em situações iguais. Nesse sentido, Habermas (apud MUNANGA, 2003, p. 119) esclarece “[...] o modernismo político nos acostumou a tratar igualmente seres desiguais, em vez de tratá-los de modo desigual. Daí a justificativa de uma política preferencial, no sentido de uma discriminação positiva”. Uma discriminação, afirma Piovesan (2005, p. 48),

[...] significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência que tenha por objetivo ou resultado prejudicar ou anular o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. Logo, a discriminação significa sempre desigualdade.

Dubet (2001), em sua análise sobre as múltiplas desigualdades existentes na sociedade

moderna, afirma que elas se movimentam entre dois extremos: enquanto algumas se reduzem, outras se ampliam. A autora esclarece que

[...] esse movimento não é simples consequência da globalização e se encontra no centro de nossa vida social e de suas tensões. É preciso também situá-lo na experiência dos atores ou de alguns deles, para que daí possamos tirar algumas conclusões no âmbito da análise sociológica (DUBET, 2001, p. 5).

Nesse sentido, acrescenta que a análise das múltiplas desigualdades alterou o olhar dos

sociólogos,



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Para maior aprofundamento sobre o entendimento da discriminação racial (Cf. Hasenbalg, 2005; Feres Jr 2006).

[...] porque a maioria delas não se reduz nem ao berço nem à posição de classe, mas resulta da conjugação de um conjunto complexo de fatores, aparecendo mesmo, muitas vezes, como o produto, mais ou menos perverso, de práticas ou políticas sociais que têm como objetivo, justamente, limitá-las. [...] alguns desses efeitos perversos não podem ser ignorados, especialmente os efeitos de dependência e de estigmatização e, sobretudo, que tais políticas são frequentemente favoráveis àqueles que são menos desfavorecidos (DUBET, 2001, p. 12).

Piovesan (2005) apresenta duas importantes estratégias que se destacam como

medidas de combate à discriminação no campo do Direito Internacional dos Direitos Humanos: a estratégia repressivo-punitiva, que visa punir e eliminar a discriminação; e a estratégia promocional, que visa promover e fazer avançar a igualdade. Assim, torna-se fundamental o combate à discriminação, para que seja garantido o “[...] pleno exercício dos direitos civis e políticos, como também dos direitos sociais, econômicos e culturais.” (PIOVESAN, 2005, p. 49) Portanto, para acelerar a promoção da igualdade, torna-se necessário atrelar as políticas compensatórias à proibição da discriminação. A autora traz maiores detalhes sobre essa questão, quando descreve a importância das estratégias promocionais, que, segundo ela, são

[...] capazes de estimular a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais. [...] a igualdade e a discriminação pairam sob o binômio inclusão-exclusão. Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação implica a violenta exclusão e a intolerância à diferença e a diversidade (PIOVESAN, 2005, p. 49).

Nesse sentido, as ações afirmativas tornam-se um importante instrumento de

inclusão social, ao estabelecer medidas que visam resgatar dividas de privações acumuladas de um passado de desigualdade e exclusão imposto a grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais, as mulheres, entre outros, para assim alcançar a igualdade substantiva. Estas foram as razões que nortearam a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação racial, que criou em seu artigo 1º, parágrafo 4º, a possibilidade de “discriminação positiva” tratada como “ação afirmativa” ao serem formuladas as medidas especiais de incentivo e proteção a essas minorias, buscando uma ascensão na sociedade para que alcancem o nível de equiparação com os demais segmentos da sociedade contemporânea. A Constituição Federal de 1988 instituiu importantes mecanismos que definem a busca da igualdade material, por ser uma igualdade que vai muito além dos ditames da igualdade formal (Cf. PIOVESAN, 2005).

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