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Sistema de cotas na educação superior pública estadual e federal

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CAPÍTULO 2 DIREITOS HUMANOS E AÇÕES AFIRMATIVAS NO BRASIL

2.5 O “modelo” brasileiro de ações afirmativas

2.5.2.1.1 Sistema de cotas na educação superior pública estadual e federal

As primeiras iniciativas de implantação de políticas de ação afirmativa no ensino no

Brasil partiram de leis estaduais, que exigiram de suas universidades a adoção de políticas de inclusão nos processos seletivos. A Lei nº 4.151/2003, do governo do estado do Rio de Janeiro, abriu caminho para essa nova medida e instituiu a reserva de vagas para estudantes

negros e pardos na Universidade Estadual do Rio de Janeiro65 (UERJ) e na Universidade

Estadual do Norte Fluminense (UENF). Na UERJ, todavia, conforme apontam as professoras Carvalho Netto e Mourão Sá (2009), a introdução das cotas foi uma medida imposta pela então governadora do Estado, Rosinha Garotinho (PSB), com fins eleitoreiros. Mas as autoras, ambas, professoras da Instituição, ressaltam que “Mesmo assim, o grupo pró-cotas da universidade recebeu de bom grado [a medida]” (p. 2).

Em artigo apresentado no VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais

ocorrido na Universidade de Coimbra (Portugal) em setembro de 2004, as mencionadas professoras ressaltaram a situação de abandono em que se encontrava a rede pública de ensino fundamental e médio do Rio de Janeiro, há vários anos denunciada pela maioria dos educadores brasileiros. Completaram, ainda, que esse fator veio a contribuir para a implantação da Lei de Reservas de Vagas no Brasil, destacando que a partir de depoimentos



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A UERJ por ser a primeira universidade pública a adotar ações afirmativas foi duramente criticada pela mídia e questionada por 291 ações judiciais (VALENTIM, 2012).

colhidos dos alunos-cotistas, passou a ser essencial a criação de propostas inovadoras para atender às suas necessidades e mantê-los na universidade até a finalização de seus cursos (Cf. CARVALHO NETTO; MOURÃO SÁ, 2009).

Nessa direção, a pesquisadora Penha Lopes (2008) desenvolveu um estudo analisando

as experiências dos primeiros estudantes cotistas egressos da UERJ66 dos cursos de

Odontologia e Ciências Sociais. Apesar das diversas dificuldades apontadas pelos estudantes, a autora constatou que

[...] a maioria [dos entrevistados] notou mudança na maneira de pensar, um questionamento maior e uma ampliação de seus gostos. Adquirir formação universitária aumenta igualmente nosso capital humano (nosso conhecimento e nossas habilidades) e nosso capital social (quem conhecemos e com quem nos relacionamos). A possibilidade de uma completa inserção social requer ambos desenvolvimentos (LOPES, 2008, p. 128).

Depois das instituições públicas cariocas, as ações afirmativas passaram a ser também

adotadas por diversas universidades de outros estados, por meio de leis estaduais e, principalmente, por deliberações do Conselho Universitário, como o ocorrido na Universidade Estadual da Bahia (UNEB) (Cf. FERES JR. et al., 2013).

A Universidade de Brasília (UnB) destacou-se como a primeira Instituição federal a

“[...] romper com essa lógica segregacionista da academia brasileira” ao propor o sistema de cotas para negros em 2004, conforme assinala Jaques (2009, p.3). O autor ressalta que as universidades brasileiras acolhem, em sua maioria, os estudantes brancos, deixando, assim, de valorizar outros segmentos étnicos que podem contribuir com a construção do pensamento de problemas brasileiros.

Entre os desafios que são postos ao sistema de cotas, há aqueles que se mantêm

constantes nas discussões no campo acadêmico e também na sociedade em geral. Refiro-me às manifestações contrárias e favoráveis às ações afirmativas nas instituições públicas de ensino. Nesse sentido, vale destacar algumas opiniões e/ou justificativas contrárias ao sistema de cotas e que parecem ser mais relevantes nas discussões que se desenvolvem no interior dos diversos campos sociais, não só no contexto nacional como também internacional.

Para Richard Kahlenberg (apud BOWEN; BOK, 2004, p. 384), por exemplo, as ações

afirmativas, vistas como base de classes, seriam como “[...] remédio para o emaranhado moral e político da ação afirmativa, um modo de atingir as metas buscadas pelas preferências



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raciais, mas evitando os problemas criados por tais preferências.” Charles Murray (apud BOWEN; BOK, 2004, p. 374) assinala que “[...] é esse o mal do tratamento preferencial. Ele perpetua a impressão de inferioridade”. O sistema de cotas, conforme o autor leva os estudantes a frequentarem escolas para as quais não estão realmente qualificados e a manterem o estigma de que eles não são tão capazes quanto os brancos.

Oliven chama a atenção para a análise do professor Takaki, asiático-americano, da

Universidade da Califórnia, alusiva aos críticos das ações afirmativas, assinalando que esses, muitas vezes, omitem fatos da história norte-americana, uma vez que sempre existiu

[...] discriminação positiva para homens brancos, que se beneficiaram, durante muito tempo, de oportunidades educacionais e profissionais que lhes eram reservadas. Eles desfrutavam de inúmeras vantagens sociais, sem terem de enfrentar a concorrência de mulheres e de minorias consideradas não brancas. Essas vantagens eram repassadas a seus filhos brancos, por gerações e gerações, elas se tornavam cumulativas (OLIVEN, 2007a, p. 36).

Brandão afirma ser contrário às cotas nas universidades públicas que pretendem

beneficiar qualquer grupo étnico-racial. Ele sustenta que o sistema de cotas só tem sentido se o critério levar em consideração o fator econômico-social dos prováveis beneficiados, e acrescenta que “[...] somente depois de amplo debate na sociedade, [...] sem que se ponha em risco a qualidade do ensino, [...] oferecido atualmente pela universidade pública brasileira” (BRANDÃO, 2005, p. 99).

Otávio Ianni, em entrevista concedida a Estudos Avançados da USP em 2004, quando

indagado sobre sua opinião sobre as cotas para negros na universidade, respondeu:

As cotas são uma conquista e uma concessão, uma legitimação de uma sociedade preconceituosa. [...] se formos ao fundo nesse problema, veremos que esses negros não tiveram condições de estudar a ponto de não serem classificados nos exames de seleção. [...] em vez de enfrentarmos o problema na raiz – melhorando as condições sociais de brancos e negros de diferentes níveis sociais – se estabelece a cota. Não se mexe na ordem social que é uma fábrica de preconceitos, [...] Como se isso fosse a conquista plena, quando na realidade é um contrabando de concessão (IANNI, 2004, p. 17).

A esses autores contrários às cotas aliam-se diversos intelectuais do campo acadêmico,

tais como Peter Fry (UFRJ), Yvonne Maggie (UFRJ), Demétrio Magnoli (UNB), entre outros. As pesquisas de Belchior (2006) e Santos (2007) revelam as ideias constitutivas dos discursos contrários e a favor das ações afirmativas - políticas de cotas para ingresso nas universidades públicas.

Quadro 1: Comparativo dos principais argumentos contrários/favoráveis à política de cotas

utilizados pelos professores universitários

Argumentos Contrários Argumentos Favoráveis

1- É uma invenção americana e não tem nada a ver com a realidade racial brasileira porque não há racismo no Brasil

2- O mérito deve ser critério exclusivo de seleção para a universidade. É preciso selecionar os melhores, independentemente da cor/raça dos candidatos

3- Seria uma discriminação racial contra os vestibulandos brancos. É difícil saber quem é negro no Brasil. Não há um critério preciso de classificação racial no Brasil

4- Os negros contemplados com cota racial seriam discriminados e estigmatizados mais ainda. Eles serão vistos como incompetentes. Criaria uma tensão racial desnecessária

5- O não ingresso dos negros na UnB, deve-se a falta de ensino público de qualidade em Brasília e no Brasil e não a discriminação racial

8- Os negros não tem acesso ao ensino superior porque em geral são pobres e não porque são negros. A cota racial pode garantir o acesso á UnB, mas não a permanência dos negros na Universidade

7- Não se pode ter duas categorias de alunos em sala de aula: um grupo preparado de brancos, e outro despreparado, de negros

8- Seria uma forma de combater a injustiça mediante outra forma de injustiça, não solucionam o problema racial brasileiro

9- O papel social do negro na sociedade brasileira não requer necessariamente a sua inserção na universidade

10- As cotas só devem ser aceitas se voltadas para a população de baixa renda

11- Os problemas sociais e raciais devem ser combatidos por políticas sociais de caráter universal, com fiscalização constante.

1- É uma questão de equidade

2- Porque sou a favor de qualquer tipo de política pública de acesso à universidade para os negros 3- Há racismo no Brasil, ele afeta o desempenho escolar

dos negros e estes precisam ser compensados por isso

4- Os brasileiros não tem reserva moral para implementar outro tipo de ação afirmativa menos contundente

5- É uma das maneiras mais rápidas de se implementar uma política de diversidade racial na UnB

6 - É uma forma de corrigir as falhas da política educacional brasileira

FONTE: Dados fornecidos por Belchior (2006) e Santos (2007) e organizados pela autora da tese (2014).

Essas ideias começaram a aparecer cinco anos antes da implantação das primeiras experiências assentadas no sistema de cotas. Além de expressar a posição dos professores em relação ao problema, elas constituíram as bases sobre as quais as políticas de ações afirmativas foram elaboradas no propósito de defesa da garantia dos Direitos Humanos para

uma cidadania plena. A ideia referente ao acesso à Universidade Pública gerou maior conflito, por quebrar a “reserva de vagas” para os que já detêm capital cultural. Em geral, os argumentos transitam entre a explicação do preconceito racial e social às perspectivas de inclusão social. O negro, na condição de categoria integrante das políticas de cotas, acabou dando o sentido das manifestações contrárias, eivadas de preconceitos e discriminação, sem entender que essas políticas poderiam contribuir para solucionar o preconceito e as desigualdades raciais. No limite das possibilidades, elas permitiram o acesso e a diplomação a novos sujeitos educativos.

Apesar de não haver unanimidade entre os pesquisadores, resultados concretos têm

demonstrado a pertinência das cotas. No Seminário Racismo, Igualdade e Políticas Públicas, realizado nos dias 30 e 31 de março de 2011, e promovido pelo Instituto de Estudos

Socioeconômicos (INESC) da UnB, a pesquisadora Paula Balduino de Melo67 apresentou um

balanço sintético dos sete anos de implantação das cotas raciais na instituição. Conforme Melo (2011), o sistema de cotas mostrou ser uma política eficaz, com base em dois eixos que se completam e delineiam seus objetivos principais: primeiro, a igualdade de chances na forma da inclusão social permite ao estudante cotista, ao ingressar numa universidade, visualizar a possibilidade de ascensão social. E segundo, a criação de exemplos na comunidade e a mudança no imaginário coletivo são elementos que pouco a pouco se constroem, com a presença marcante de pessoas negras nos corredores da universidade.

Com relação ao primeiro objetivo, Melo (2011) relatou que, se por um lado, são várias

as histórias de pessoas negras que, depois de muitos vestibulares, só conseguiram ingressar na universidade por meio das cotas, por outro, aponta a dificuldade de vários cotistas em se manter na universidade por questões financeiras e, ainda, por sofrimentos psíquicos manifestados após uma contínua convivência, muitas vezes em ambiente hostil. Quanto ao segundo objetivo, ela explica que vários alunos cotistas da UnB são as primeiras pessoas, entre seus familiares, a ingressar numa universidade, portanto, uma conquista que tem grande força simbólica no meio de seus círculos sociais. Dessa forma, uma “[...] nova configuração social trará a possibilidade de reconstruir o imaginário coletivo” e, assim, o olhar da sociedade brasileira poderá habituar-se a ver pessoas negras exercendo todo tipo de profissão (MELO, 2011, p. 10).



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Paula Balduino Melo é doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Ativista do Nosso Coletivo Negro; membro do Fórum de Mulheres Negras do DF e colaboradora das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).

Nesse sentido, as afirmações de Melo (2011) ratificam o que Oliven (2007) já havia mencionado, ao apontar a importância dos modelos para as futuras gerações, pois os jovens negros necessitam conhecer outros negros bem-sucedidos, um significado simbólico, em áreas ou cursos de maior prestígio, como Medicina, Direito, Engenharia, entre outros.

A primeira experiência realizada em Goiás de acordo com essa orientação ocorre na

Universidade Estadual de Goiás (UEG)68 em 2005, um ano após a implantação da Lei

estadual nº 14.832/2004, que fixa cotas para o ingresso dos estudantes nas instituições de educação superior integrantes do Sistema Estadual de Educação Superior. A Universidade Federal de Goiás (UFG) aderiu a essa orientação em 2009, com a implantação do Programa UFGInclui, que teve como base as experiências positivas de algumas universidades públicas

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