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I) APONTAMENTOS DO ESTADO MODERNO E O ADVENTO DO ESTADO SOCIAL:

1.3.4 Pressuposto econômico do Estado social:

“Os direitos econômicos, sociais e culturais e respectiva proteção andam estreitamente associados a um conjunto de condições – econômicas, sociais e culturais – que a moderna doutrina dos direitos fundamentais designa por pressupostos de direitos fundamentais. Consideram-se pressupostos de direitos fundamentais a multiplicidade de fatores – capacidade econômica do Estado, clima espiritual da sociedade, estilo de vida, distribuição de bens, nível de ensino, desenvolvimento econômico, criatividade cultural,

convenções sociais ética filosófica ou religiosa – que condicionam, de forma positiva e negativa, a existência e proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais. Estes pressupostos são pressupostos de todos os direitos fundamentais. Alguns deles, porém, como os da distribuição dos bens e da riqueza, o desenvolvimento econômico e o nível de ensino, têm aqui particular relevância. Mais do que noutros domínios os Realien (os ‘dados reais’) condicionam decisivamente o regime jurídico-constitucional do estatuto positivo dos cidadãos”122.

Consoante ressaltou o professor Canotilho no excerto acima, a capacidade econômica do Estado é vital para realizar seu qualificativo “social”. Não se pode olvidar que o Estado do bem-estar, como continuação de um Estado capitalista, tem seu limite de atuação pautado na disposição do modo de produção capitalista.

O que queremos dizer com isso é que por mais belo que seja falar em concretização dos direitos sociais, implementação de políticas públicas, não podemos olvidar que o limite disso é o próprio capitalismo. O capitalismo vigorante numa sociedade é o próprio limite de atuação do Estado no enfrentamento das questões sociais.

Diferentemente dos direitos individuais e da política do liberalismo que apregoavam uma inação do Estado, que demanda poucos recursos econômicos123, a efetivação de direitos sociais e políticas públicas produzem custos muito maiores. Como esse qualificativo “social” é designativo de uma atuação ativa do Estado, um fazer, isso demanda a compra de recursos humanos, técnicos, científicos e demais mercadorias necessárias ao cumprimento desse múnus social.

Ou seja, para dar cabo de seu mister social, o Estado necessita de recursos econômicos capitalistas. Com a intenção da separação do Estado do mercado defendida pelo capitalismo e colocada em prática no liberalismo, o Estado se vê obrigado a se curvar as potencialidades do mercado para obtenção dos recursos necessários para operar no “social”.

122 Cf. Joaquim Gomes Canotilho. “In” Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit., p. 473.

123 Não significa que os direitos individuais não têm qualquer custo, pois tem. E dependendo do direito

individual a ser tratado o custo é bem relevante. Vide, por exemplo, o caso da vedação da tortura, fixado primeiro em tratado internacional e criminalizado no Brasil pela Lei 9455/1997, não basta apenas a criminalização para combater essa chaga social, é necessário o desenvolvimento de uma política educativa, informativa, para conscientizar e prevenir à prática de tortura. É premente, portanto, uma política de ação do Estado no combate deste crime, não apenas com caráter repressivo, mas também com nítido conteúdo preventivo.

O que queremos fixar é que, em geral, o custo dos direitos sociais é muito maior do que o dos direitos individuais, porém não se pode perder de vista que todos os direitos têm custo, da qual não se subtrai a essa regra os direitos individuais.

Dessa forma, aquele Estado que seguiu a risca o ideal liberal de não interferência no mercado, de privatização de suas riquezas e de receitas originárias, tende a ser atualmente um Estado social mais fraco, mais inócuo, pois sua dependência ao mercado econômico é total e a independência deste é quase que plena. Entrementes, aquele Estado que se assegurou de receitas originárias e outras fontes de riquezas, não entregando tudo à iniciativa privada, pode estabelecer um Estado social mais forte, menos dependente e até mesmo uma dependência recíproca, do mercado em relação ao Estado e vice-versa124.

Criou-se uma ficção, portanto, de que o Estado sempre seria solvente e nunca se tornaria insolvente. Essa ficção serviu muito bem ao desiderato de um Estado liberal, cujo único escopo era dar proteção e segurança ao mercado e aos agentes econômicos que atuavam nele, assim como aos detentores do poder econômico. Essa ficção tem se mostrada ilusória num Estado social.

Otfried Höffe assinala:

“A justiça social não é nenhum passepartout que abre todas as porta da assistência prestada pelo Estado... Muitos pensam a propósito da justiça apenas na distribuição e esperam da justiça ‘social’ uma distribuição igual ou uma distribuição segundo as necessidades. Mas os recursos a serem distribuídos não caem como maná do céu. Sobretudo o Estado é tão somente capaz de contribuições secundárias e subsidiárias. Nomeadamente no tocante às contribuições subsidiárias, ele se apóia nas contribuições dos cidadãos, onde ele (co)financia por meio de impostos as instituições de ensino, os fundos sociais ou ramos da economia”125.

Para não concepção de um Estado social falacioso tem se idealizado um novo princípio: o princípio da “reserva do possível”. Esse princípio, elaborado primeiro pela jurisprudência alemã, consistiria em um limite a atuação positiva do Estado, haja vista um óbice fático, real, que são os recursos necessários para a concretização dos direitos sociais. É o reconhecimento de que o Estado capitalista não pode dar cabo de todas as necessidades sociais.

124 O professor Boaventura de Sousa Santos, malgrado tenha escrito sobre o seu ideal de socialismo para o século

21, pensamos que isso seja mais um modelo racional de Estado social, posto que não identifica o fim do capitalismo. Utilizando as palavras desse nobre sociólogo português, porém no paradigma de um Estado social vigoroso, deverá haver um sistema em que será o “modo de produção menos assente na propriedade estatal dos meios de produção que na associação de produtores; um regime misto de propriedade em que coexistem propriedade privada, estatal e coletiva (cooperativa)” (“In” Socialismo do século 21, ob. cit.).

Como se vê, a concretização dos direitos sociais é um problema até mesmo em países de economias capitalistas desenvolvidas, onde se poderia cogitar de grande potencial capitalista para corrigir as incoerências do próprio capitalismo, haja vista o volumoso aporte de recursos econômicos necessários ao seu empreendimento, o que se dirá nos países periféricos, onde essas incoerências são bem maiores!

Dessa forma, a problemática da efetivação dos postulados sociais se torna ainda mais acentuada nos países não desenvolvidos ou reputados em desenvolvimento.

De fato, há um limite fático a atuação positiva do Estado, que é a quantidade de recursos econômicos disponíveis para fazer frente às demandas sociais. Outrossim, há que considerar que em países subdesenvolvidos as demandas sociais são mais profundas e, consequentemente, demandam mais recursos econômicos. Nesses termos, tornar efetivo as prescrições sociais torna-se um labor hercúleo, apelando-se de forma mais ordinária ao princípio da reserva do possível para justificar a não-concretização dos anseios sociais.

Devem-se acrescentar outras premissas a esse raciocínio: os recursos do Estado são quase que totalmente oriundos de receitas derivadas – tributos, principalmente impostos, que decorrem diretamente das atividades realizadas entre os próprios particulares. Essa fonte de custeio do Estado torna-se mais evidente depois das políticas neoliberais que dirigiram o mundo na última década, pregando as privatizações das riquezas públicas, as concessões e delegações e mais modernamente as parcerias público-privadas126.

126 António José Avelãs Nunes faz uma análise mais técnica desse peculiar, com base nas teses de uma economia

estruturalista ou desenvolvimentista, que conclui que

“na medida em que as contribuições do estado para a segurança social não sejam inteiramente cobertas por receitas fiscais provenientes de impostos sobre os rendimentos das classes ricas, o seu financiamento terá de resultar da emissão de moeda ou de receitas de impostos indiretos, que poderão igualmente atuar como fatores geradores de inflação” (“In” Industrialização e Desenvolvimento – a Economia Política do ‘Modelo Brasileiro de Desenvolvimento’, ob. cit., p. 119).

O professor Avelãs Nunes, malgrado seja socialista, assumindo essa posição expressamente nesta obra (p. 638), e critique o estruturalismo, já que “estas considerações não assentam na análise das relações sociais de produção e dos antagonismos de classe, não valorizam devidamente a influência das estruturas monopolistas e das multinacionais, nem levam até às últimas conseqüências a ponderação dos resultados da inserção dos países da América Latina no quadro do sistema capitalista mundial, e sem este tipo de referências analíticas não se vê como possa caminhar-se para soluções revolucionárias” (p. 171), admite que dentro do sistema capitalista, o estruturalismo é bem melhor do que o monetarismo (liberalismo), estando muito mais apto a descrever algumas deficiências dos ciclos econômicos de produtividade, preferencialmente da América Latina, e principalmente o processo inflacionário (p. 172).

Um dos discursos que ele se vale para desmistificar uma tese liberal que por vezes é levantada, até como forma de legitimar a flexibilização, é a relativa ao aumento dos salários, que gerariam maior ônus e, conseqüentemente, menor investimento. São os colóquios do professor Avelãs Nunes, atendo-se às premissas desenvolvimentistas:

“a política de salários tem pouca incidência sobre o processo inflacionista na América Latina: raramente os governos se empenham no aumento dos salários reais dos trabalhadores e estes são limitados nas suas lutas reivindicativas pela quase inexistência de organização sindical entre os trabalhadores agrícolas (a maior parte da

Nessa toada, a realização prática do Estado social torna-se emblema de uma alta carga tributária, pois apenas com esses recursos econômico-fiscais é que poderá dar concreção aos direitos sociais. Como já dito, nos países subdesenvolvidos as necessidades sociais são mais acirradas e, portanto, necessitam de mais recursos. Logicamente, a carga tributária teria de ser muito maior.

Por isso que o argumento de que no Brasil se tem uma carga tributária de país considerado desenvolvido dentro do sistema capitalista, mas serviço público de país subdesenvolvido, com vistas a reduzir a carga tributária, é falacioso. Se o Brasil, de fato, enveredasse por sanar as necessidades sociais nos moldes em que é realizado nos países escandinavos, com certeza, deveria ter uma carga tributária muito maior do que as cobradas lá e existente atualmente aqui.

É de se notar que isso gera uma nova contradição, pois ao se modelar um sistema tributário fincado numa alta carga fiscal, no atual estágio da economia globalizada em que vivemos, gera desestímulo à empresa privada e a investimentos no país. Dessa forma, a alta carga tributária acaba se tornando inócua, pois os recursos econômicos que poderiam ser retirados das atividades privadas para custear o Estado se tornam menores em vista da pouca atividade realizada.

Essa é a lógica que obstrui o Estado de ser social. Para ser social ele necessita de recursos que retira da iniciativa privada; no entanto, se retirar mais do que os outros Estados, na atual economia globalizada, será menos concorrente e perderá investimentos e, conseqüentemente, recursos; e sem recursos, não consegue aplicar a contento para correção das desigualdades sociais. É o ciclo que impede a realização do Estado social nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento.

O Catedrático da Universidade de Lisboa, Jorge Miranda, já vinculou a crise do atual Estado social no século XXI ao alto custo dos direitos sociais:

“observam-se no Estado social de Direito fundos sintomas de crise – a chamada crise do Estado-providência, derivada não tanto de causas ideológicas (o refluxo das

população ativa na generalidade dos países latino-americanos) e pela debilidade dos sindicatos dos trabalhadores urbanos, fatores que ajudam a compreender que a massa salarial representa uma pequena parte do rendimento nacional no conjunto dos países da América Latina. Daí que o aumento dos salários represente sempre muito pouco em comparação com o rendimento nacional, para poder gerar uma pressão inflacionista. Além disso, a regra é os salários subirem em resposta a um prévio aumento dos preços dos outros bens, não podendo, em tais condições, considerar-se como causa autônoma de inflação. Será mesmo possível a ocorrência de certas baixas de preços, não obstante o aumento dos salários, se, entretanto, a produtividade tiver melhorando e os capitalistas não conseguirem aumentar as suas taxas de lucro. A inflação não desaparecerá, apesar do congelamento dos salários, se não eliminarem as deficiências estruturais em que radicam as suas causas” (p. 120).

idéias socialistas ou socializantes perante ideais neoliberais) quanto de causas financeiras (os insuportáveis custos de serviços cada vez mais extensos para populações ativas cada vez menos vastas), de causas administrativas (o peso de uma burocracia, não raro acompanhada de corrupção) e de causas comerciais (a quebra de competitividade, numa economia globalizante, com países sem o mesmo grau de proteção social)”127.

Fritz Scharpf, em análise a essa crise do Estado social decorrente dos altos gastos das questões sociais, entende que, atualmente, a intervenção estatal à moda keynesiana, diferentemente das três décadas posteriores a II Guerra Mundial, não se torna mais plausível sem infringir os imperativos funcionais de uma economia capitalista globalizada. A social- democracia, a perspectiva de redução das desigualdades, a própria existência dos serviços públicos são coagidas a aceitar um limite e condições impostas pela economia mundial e nacional. Para esse autor, numa economia globalizada sob a égide do capitalismo, os avanços na área da inclusão social encontram duplo limitador, quer seja pelas pressões econômicas que já existiam internamente e agora por pressões econômicas também externas fronteiras128.

Em que pese a verossimilhança do princípio da “reserva do possível”, a verdade profunda que se querem apregoar está no seu contrário: “impossibilidade de realização”. A direção perseguida nesse princípio é estabelecer uma impossibilidade do ente público atuar, sob o argumento da ausência de recursos econômicos. Podemos situar a “reserva do possível” nascido na crise do Estado social como uma evolução do princípio da “reserva legal” existente no Estado liberal, que impede o Estado de operar quando não há lei que o permita. Ambos visam impedir o Estado de agir, o primeiro com argumentos ideológicos, o segundo pela constatação de uma situação fática.

Ou seja: pelo princípio da reserva legal, o ente público apenas poderia agir se houvesse lei que lhe autorizasse a assim proceder. É um óbice ideológico à atuação do Estado. Com a evolução do direito, esculpiu-se uma nova gama de direitos abstratos que exigem uma prestação do Estado, e para justificar sua impossibilidade de agir no sistema capitalista, o antigo princípio desceu até o argumento fático, que é o princípio da reserva do possível.

O que deve ficar escancarado é que o capitalismo, antes, valia-se de argumentos ideológicos, porém, com a necessidade de alteração na sua forma (e não na

127 “In” Teoria do Estado e da Constituição, ob. cit., p. 54.

essência – Estado de bem-estar) sob pena de padecimento, começa a revelar sua verdadeira face da impossibilidade fática, dentro das suas engrenagens, de atuar socialmente.

Como já professado por Pasukanis:

“Quanto mais a dominação da burguesia for ameaçada, mais estas correções se tornam comprometedoras e mais rapidamente o ‘Estado jurídico’ se transforma em uma sombra material, até que a agravação extraordinária da luta de classes force a burguesia a rasgar inteiramente a máscara do Estado de direito e a revelar a essência do poder de Estado como a violência organizada de uma classe social contra as outras”129.

A grande questão que se coloca nesse ponto é revelar a exata medida desse princípio da “reserva do possível”, pois ele pode muito bem funcionar a interesses privatísticos de manutenção do “status quo”. Não se descarta que o Estado tem um limite de atuação dentro do modo de produção capitalista, mas a definição de até onde vai esse limite deve ser posta em causa para que não sirva sempre de obstáculo as reformas sociais necessárias.

O que se exige no trato desse princípio é uma constante crítica em relação ao verdadeiro limite do mercado econômico local a suportar à concretização dos direitos sociais, de forma a não torna-lo um empecilho sempre presente à resolução dos desníveis sociais. A reserva do possível não pode ser um discurso conservador legitimador da inércia estatal e da manutenção das chagas que assolam a sociedade. Deve sim ser um discurso consciente, balizado em dados sociais e estatísticos que permitam a compreensão dos problemas sociais e a melhor forma de solucioná-los. Deve ser muito mais um discurso de opção política na busca da melhor resposta do que a simples demagogia da própria falta de opção.

1.3.5 Categorias jurídicas e políticas do Estado social: direitos sociais e