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I) APONTAMENTOS DO ESTADO MODERNO E O ADVENTO DO ESTADO SOCIAL:

1.2.2 A Revolução Francesa:

A revolução francesa se refere a um conjunto de acontecimentos ocorridos entre 1789 e 1799, que alteraram o quadro político da França, colocando em cheque o ‘Ancien Régime’ e com ele o poder do clero, da nobreza e, principalmente, do monarca.

Vários são os que colocam essa Revolução como o início da Idade Contemporânea. Todavia, como já enfatizado alhures, a revolução francesa não alterou em absoluto o modo de produção que já vigia. Muito pelo contrário. Serviu para consolidar o sistema capitalista de produção na infra-estrutura social, expurgando do cenário político os resquícios feudais que ainda se mantinham e não mais se justificavam.

A revolução francesa pode ser caracterizada como uma adequação da superestrutura política, ideológica e até mesmo jurídica, à infra-estrutura capitalista, da mesma forma como já fora o absolutismo, quando consolidou o poder político, centralizando- o. Isso significa que, após a centralização do poder pelo regime absolutista, com patrocínio da burguesia, essa classe já dominante economicamente desejou possuir também esse poder político.

A França pré-revolucionária tinha uma estrutura social estamental, baseada em estados ou grupos, da qual o primeiro e segundo eram representados pelo clero e nobreza; o terceiro estado albergava a burguesia e o resto do povo, que somavam 95% da população francesa. É inegável que existiam diversos privilégios para o primeiro e segundo estado, que eram sustentados pelo terceiro estado, tais como isenção de todo e qualquer tributo, e possibilidade de alguns nobres cobrarem taxas para si na utilização de suas terras, resquícios ainda da era feudal. Isso não significava que o primeiro e o segundo estado eram ricos ou

“Se a economia do mundo do século XIX foi formada principalmente sob a influência da revolução industrial britânica, sua política e ideologia foram formadas fundamentalmente pela Revolução Francesa. A Grã- Bretanha forneceu o modelo para ferrovias e fábrica, o explosivo econômico que rompeu as estruturas socioeconômicas tradicionais do mundo não europeu; mas foi a França que fez suas revoluções e a elas deu suas idéias, a ponto de bandeiras tricolores de um tipo ou de outro terem-se tornado o emblema de praticamente todas as nações emergentes” (“In” A era das Revoluções (Europa 1789-1848). 21º ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 83).

Gerhard Ritter, professor de História Moderna da Universidade de Munique, faz um estudo específico sobre o Estado Social, advertindo logo na primeira frase no Prólogo de que o Estado Social é uma decorrência da industrialização:

“En el presente estúdio se intenta exponer el origen, la evolución y las caracteísticas del Estado social como um factor central y especialmente característico de las sociedades industriales modernas” (“In”, El

Estado social, su origem y desarrollo en una comparación internacional. Madrid: Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, 1991, p. 11).

viviam na ociosidade, pois muitos integrantes desses quadros viviam desses privilégios, havendo sacerdotes e nobres que precisavam trabalhar.

Os privilégios eram regras de direito do antigo regime, e quando se vislumbrou a necessidade se cobrar tributos dessas classes para fazer frente ao déficit público francês gerado pelos gastos reais, as guerras externas e a independência dos EUA, que a França incentivou e participou como aliada dos norte-americanos, a regra que passou a valer é a do direito adquirido, sendo a noção de justiça difundida por esses dois estados baseada na preservação do que já lhe pertencia. Surge aí a noção de direito natural, haja vista que o direito estatal não servia aos interesses capitalistas.

É interessante notar que o direito adquirido, ferrenhamente defendido atualmente por nossa elite, foi execrado na fase pré-revolucionária francesa, levando os filósofos e juristas da época a desenvolverem a teoria do Direito Natural com intuito de os contraporem aos privilégios reais, haja vista que o Direito estatal não atendia os interesses de mudança. Então foi preciso desenvolver uma noção de Direito que fosse anterior e superior a ordem estatal. Entretanto, logo após a burguesia tomar o poder político e se privilegiar dele passou a defender o direito positivo do Estado e com ele o direito adquirido, como forma de manter seu poder econômico e também o poder político.

Em tese de Doutoramento pela USP, posteriormente publicada pela Quartier Latim, o professor Alysson Mascaro expressa bem essa transmudação do Direito natural em Direito positivo:

“O crepúsculo da modernidade – a filosofia do direito jusnaturalista – e a aurora da contemporaneidade – o direito positivo – tratam ao mesmo tempo dos mesmos conteúdos e da mesma aposta na igualdade, na universalidade, na estabilidade das leis. Enquanto o jusnaturalismo é o mundo das leis estáveis da burguesia na filosofia, o positivismo jurídico do século XIX é o mundo das leis estáveis da burguesia dentro do Estado. A diferença reside no exato período em que o poder político-estatal era absolutista para a sua transformação em poder burguês. Em quinze anos – de 1789 a 1804 – aquilo que era a declaração filosófica das leis universais do homem já era código civil positivado na França”51.

51 “In”, Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 48.

A igualdade que o professor Alysson menciona nesse trecho é aquele tipo especial de igualdade defendida na filosofia moderna, que não verga os olhos para a desigualdade real; é a igualdade formal de todos perante o mercado econômico. Mais a frente ele explica bem essas noções:

E assim foi, tanto que na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, elaborada após a queda da bastilha e já com a burguesia no poder, no artigo 4º, está escrito: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei”. E a lei era o posterior Código Napoleônico elaborado em 1803, que consuma o pensamento burguês na forma de norma estatal52. Com isso, a classe que queria o poder político oriundo do Estado, antes de consegui-lo, defende a

“O direito moderno é a consagração da igualdade e da impessoalidade na lei, ao contrário da pessoalidade e da diferença das formas sociais antigas e pré-capitalistas. No entanto, aquilo que é igualdade para o direito moderno é o encobrimento da realidade social desigual pelo condão da técnica formalista, e não a plena igualdade real. A felicidade e a satisfação das necessidades ainda são de alguns e não de todos, mas não há mais sorte nem divindade para consagrar a diferença; há a técnica jurídica a desviar a atenção da desigualdade, e, enquanto desvia a atenção para a pirotecnia das promessas de sua cidadania formal, legitima a injustiça real” (p.51).

Ressaltando essa vertente de que o Direito natural tem a mesma raiz do direito positivo, Eugeny

Pasukanis se manifesta:

“A diferença entre a doutrina do direito natural e o positivismo jurídico moderno consiste unicamente no fato de que a primeira percebeu, muito mais claramente, o vínculo lógico existente entre o poder de Estado abstrato e o sujeito abstrato” (“In” A teoria geral do direito e o marxismo, ob. cit., p. 121).

52 O professor da Universidade de Ghent, Bélgica, R. C. van Caenegem, interpreta esse código civil napoleônico

nos seguintes termos:

“O tom geral do Code de 1804 é nitidamente conservador, como demonstra o respeito aos direitos de família e de propriedade como base da ordem social... O direito absoluto da propriedade e os diferentes modos de sua aquisição; na sua administração, sobretudo pelo chefe de família, e os meios de sua transmissão: estes são os conceitos essenciais dos livros II e III do Code. O segundo pilar do Code é a família, cuja característica principal é a submissão ao poder do marido e pai (livro I). Um outro traço fundamental do Code é seu positivismo, que iria marcar a Escola Exegética e exercer uma influência dominante durante todo o século XIX... O Código Napoleão restabeleceu o direito e os tribunais em seu pleno rigor, mas agora o sistema era mais racional e seu funcionamento mais controlável e previsível do que no ancien régime. A eliminação do direito natural como fonte do direito positivo pertence à mesma linha de pensamento. No século XVIII, o direito racional (Vernunftsrecht) fora um instrumento poderoso na luta contra o antigo regime político. Durante a Revolução, o direito natural tinha sido constantemente invocado para justificar as novas normas e os novos sistemas. O Code civil, no entanto rejeita qualquer empréstimo do direito natural; de agora em diante, a ordem instituída era o Code, e qualquer referência ao direito natural, fonte perpétua de inspiração para os que se opunham ao status quo, estava fora de questão. Para os adeptos do novo Code, o papel do direito natural tinha acabado. No que se refere à libertação e à emancipação, o efeito do Code era limitado. É verdade que muitas desigualdades e tributos (especialmente os feudais) tinham sido abolidos, mas o Code de 1804 introduziria outras. Por exemplo, a discriminação contra as mulheres, sobretudo as casadas, o que pode ser visto em particular nas restrições à participação das mulheres nos conselhos de família ou a servirem de testemunhas, na sujeição da esposa à autoridade do marido e na obrigação de concordar com ele, assim, como no princípio de reservar para o marido o direito de administrar a propriedade de sua esposa. Havia também discriminação contra o direito dos trabalhadores, como mostra, por exemplo, o sistema de registro de operários (livrets d’ouvriers). A norma do art. 1781 do Code era particularmente desfavorável: no caso de disputa entre empregador e empregado a propósito de uma questão de pagamento ou de obrigação recíproca, prevalecia a palavra do empregado” (“In” Uma introdução histórica ao direito privado. Trad. Carlos Eduardo Lima. 2ºed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 10/3).

Pasukanis ainda faz percuciente anotação sobre a origem do Código Civil francês:

“O individualismo jurídico privado concorda, no geral, com o despotismo político. O código civil nasceu em uma época que não só é caracterizada pela falta de liberdade política na ordem estatal francesa, mas igualmente por uma certa indiferença com relação a esta liberdade, que já se manifestava desde o 18 Brumário” (“In” A teoria geral do direito e o marxismo, ob. cit., p. 125).

existência de um direito natural anterior à ordem estatal; e depois de consegui-lo, volta a defender que Direito é tudo aquilo que o Estado diz que é - a legalidade estatal.

“El positivismo formalista se convierte, de este modo, en la teoría jurídico- política de la burguesía liberal, eliminando progresivamente del concepto del Estado de Derecho las exigencias de contenido iusnaturalista, todavía presentes en la obra de Kant. El resultado fue el Estado de Derecho liberal burgués que supuso la Constitución y el derecho de sufragio restringido a sólo tres clases, la garantía perfecta de la vida, de la libertad y de la propiedad; fue ‘unidad, derecho y libertad’, en vez de ser ‘libertad, igualdad y fraternidad’; supuso la igualdad ante el derecho y en el derecho, pero no la igualdad de derechos de posibilidades y de participación. Por ello, la libertad y la igualdad fueron entendidas de modo formal, o más exactamente, en sentido negativo, constituyeron derechos de defensa contra el Estado (staatsgerichtete Abwehrrechte), no derechos de participación política (politische Anteilsrechte) en la comunidad”53.

Da mesma forma foi em relação à luta empregada contra a propriedade privada, que na égide do Ancien Régime serviu de fundamento para que a burguesia se insurgisse, alegando ser fonte de privilégios, no período posterior à Revolução Francesa, em que houve confisco de bens dos nobres e da igreja, com a conseqüente transmissão a essa classe ascendente economicamente, a propriedade privada e a segurança dela passaram a ser valores sagrados.

Consta expressamente do artigo 17 dessa primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado...”. Eugeny Pasukanis concluiu sobre essa constante histórica:

“Os mesmos homens que se insurgiram contra a propriedade, a afirmaram no dia seguinte em que se colocaram no mercado como produtores independentes”54.

53 Cf. Antonio Enrique Pérez Luño. “In” Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitución. 7º ed. Madrid:

tecnos, 2001, p. 222.

54 “In” A teoria geral do direito e o marxismo, ob. cit., p. 97.

Néstor Pedro Sagüés acentua que se inicia um período em que “se instaura constitucionalmente un

orden econômico individualista y liberal, declarándose a la propriedad como derecho inviolable (Cerdeña, 1848, art. 29; Argentina, 1853, art. 14; Consta Rica, 1888, art. 29); pleno (Brasil, 1891, art. 72) y hasta sagrado (Haití, 1889, art. 19; Uruguaym, 1830, art. 144). La propriedad es defendida en particular contra el Estado, ya que la constitución impide, generalmente, las confiscaciones (Cuba,1899, art. 33; El Salvador, 1886) y admite la expropriación sólo mediante una justa y previa indmnización al propietario (Bélgica, 1831, art. 11; España, 1876, art. 10)… Ninguna constitución del período pone topes a la posibilidad de acumular riqueza. Se permite, pues, acrecentarla ilimitadamente en manos privados” (“In” Elementos de derecho constitucional. Tomo 1. 3º ed. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2001, p. 9).

Em que pese o entusiasmo da comunidade jurídica em relação aos Direitos Humanos, há que se ter consciência que seu nascedouro55 foi circundado por interesses de uma classe – burguesia - muito bem definidos. Por isso, sem descartar a importância desse documento, há que se fazer as críticas cabíveis até mesmo como forma de se aprofundar as reformas necessárias a permitir um maior desenvolvimento social.

O historiador Eric Hobsbawm corrobora essa noção:

“As exigências do burguês foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária... ela também prevê distinções sociais, ainda que somente no terreno da utilidade comum... E a assembléia representativa que ela vislumbrava como órgão fundamental de governo não era necessariamente uma assembléia democraticamente eleita, nem o regime nela implícito pretendia eliminar os reis. Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada à maioria dos liberais burgueses do que a república democrática que poderia ter parecido uma expressão mais lógica de suas aspirações teóricas, embora alguns também advogassem esta causa. Mas, no geral, o burguês liberal clássico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) não era um democrata mas sim um

55 Os mais animados com os Direitos Humanos colocam sua origem em tempo muito anterior ao aqui tratado,

vendo seus primórdios na antiguidade clássica, no Egito e Mesopotâmia, por volta do 3º milênio a.C., relatando que já havia alguns mecanismos para a proteção individual em relação ao Estado. É referido ainda o Código de Hamurabi (1690 a.C.) como a primeira codificação a consagrar direitos comuns a todos os homens. (cf. Alexandre de Moraes, “in” Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federal do Brasil, doutrina e jurisprudência. 6º ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 6).

Logicamente que essas assertivas se preocupam apenas com a origem dos Direitos Humanos de primeira geração, de fundo liberal, que exatamente tem como fito tratá-los como direitos inatos de proteção contra o Estado, tendo como pressuposto a separação do Estado da sociedade, não se atendo a evolução da diretriz desses direitos, que passam a existir dentro do Estado e podem, inclusive, serem fomentados por esse, como guardião do interesse público. Vide Hegel:

“é preciso reconhecer que a idéia de liberdade só existe verdadeiramente na realidade do Estado” (p. 57). “Nesta identidade da vontade universal e da particular, coincidem o dever e o direito e, no plano moral objetivo, tem o homem deveres na medida em que tem direitos e direitos na medida em que tem deveres. No direito abstrato tenho eu um direito e um outro tem o dever correspondente. Na moralidade subjetiva, o direito da minha consciência e da minha vontade, bem como o da minha felicidade, são idênticos ao dever e só como dever-ser são objetivos” (p. 148). “Tal conscientização do valor do pensamento universal tem uma importância infinita, e só se torna um erro quando cristaliza na forma do cosmopolitismo para se opor à vida concreta do Estado” (p. 185). “É o Estado a realidade em ato de liberdade concreta” (p. 225). (Trechos extraídos da obra “Princípios de filosofia do direito“, ob. cit.).

Kelsen acentua que decorre do liberalismo os direitos fundamentais, entrementes a idéia empregada por direitos fundamentais partir exatamente daquela noção de direitos de 1º geração, de contraposição ao Estado, de um período que centrou o foco no indivíduo e não no coletivo:

“precisamente os direitos fundamentais constituem a única herança verdadeira que as Constituições modernas receberam do liberalismo...porque a Constituição com a codificação dos direitos fundamentais, em particular com a garantia da liberdade de manifestação do pensamento, da liberdade da ciência e do seu ensino, assegurava juridicamente a luta contra si mesma” (“In”, O Estado como integração: um confronto de princípio. Trad. Plínio Fernandes Toledo. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 117 e 118).

devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e proprietários. Entretanto, oficialmente esse regime expressaria não apenas seus interesses de classe, mas também a vontade geral do ‘povo’56.

Eros Grau escreve nessa mesma diretriz:

“o que se protege são as autonomias individuais dos agentes econômicos (em termos diretos e incisivos: as autonomias individuais dos produtores burgueses). A racionalidade jurídica do direito moderno coincide com a afirmação jurídica da primazia das autonomias individuais, o que envolve as declarações de direitos, o movimento do constitucionalismo liberal e suas técnicas, especialmente a da separação dos poderes e a da legalidade (= princípio da legalidade da Administração). Objetivamente: liberalismo político e liberalismo econômico se entrelaçam de modo tal que, sob pena de comprometimento da essência de um e outro, não se os pode cindir. E que fique bem nítido que os arautos do primeiro, estão, ingenuamente ou não, a serviço do segundo. Daí ser necessário desnudarmos o comprometimento dos ‘direitos fundamentais’ e dos ‘direitos do homem’ com a afirmação da primazia das autonomias individuais, quer dizer, dos proprietários burgueses. O fato é que as teorizações do Estado de direito nascem da luta da burguesia conta o poder absoluto do Monarca, isto é, da luta pelo Estado juridicamente controlado/limitado, cuja legitimidade não carece mais de fundamento teológico, transcendente, metafísico”57.

A prova de que a liberdade defendida pelo movimento iluminista, que era patrocinado pela burguesia, não era precisamente uma liberdade para o ser humano, mas sim uma liberdade do e para o mercado econômico, é suficientemente constatada apenas pela leitura das obras de vários dos grandes pensadores desse período ideológico. Sumariza a questão o Fábio Comparato:

“Em pouco tempo, aliás, percebeu-se que o espírito da Revolução Francesa era, muito mais, a supressão das desigualdades estamentais do que a consagração das liberdades individuais para todos”58.

56 “In” A era das Revoluções, ob. Cit., p. 91.

57 “In” Mercado, Estado e Constituição. Boletim de Ciências Econômicas XVLI, Coimbra, 2004, p. 10. 58 “In” A afirmação histórica dos direitos humanos, ob. cit., p. 136.

Páginas antes o professor Comparato revela o verdadeiro sentido da democracia inaugurada com a Revolução Francesa:

“Mas a democracia que ressurge nessa época nada tem que ver com a demokratia grega. Nesta, como explicou Aristóteles, o poder supremo (kyrion) pertence ao demos, que o exerce diretamente e nunca por meio de representantes. Ora, o demos ateniense é composto, em sua grande maioria, de pequeno camponeses e artesãos,

Sem olvidar a importância dos estudos de Montesquieu, o grande sistematizador da separação de poderes moderna que influenciou todo o mundo ocidental principalmente do outro lado do Atlântico, não há como negar o caráter elitista de algumas de suas teses, como a que exclui do processo político o “povo”, ou seja, aquele que não é detentor de poder econômico, defendendo uma democracia essencialmente representativa como a única apta a gerar o desenvolvimento social cujos representantes seriam os burgueses, que assumiriam a “voz nacional”59:

“A grande vantagem dos representantes é que eles são capazes de discutir os assuntos. O povo não é nem um pouco capaz disto, o que constitui um dos grandes inconvenientes da democracia... Havia um grande vício na maioria das antigas repúblicas: é que o povo tinha o direito de tomar decisões ativas, que demandavam alguma execução, coisa da qual ele é incapaz. Ele só deve participar do governo para escolher seus representantes, o que está bem ao seu alcance... Sempre há, num Estado, pessoas distintas pelo nascimento, pelas riquezas ou pelas honras; mas se elas estivessem confundidas no meio do povo e só tivessem uma voz como a dos outros, a liberdade comum seria sua escravidão”60.

ou seja, de grupos de baixo poder econômico. É por isso que, no pensamento político grego, a democracia representa a exata antítese da oligarquia, em que o poder político supremo pertence à classe proprietária. Em sentido contrário, a democracia moderna, reinventada quase ao mesmo tempo na América do Norte e na França, foi a fórmula política encontrada pela burguesia para extinguir os antigos privilégios dos dois principais estamentos do ancien régime – o clero e a nobreza – e tornar o governo responsável perante a classe burguesa. O