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Como causa da primazia do critério material sobre o critério orgânico, o agravamento da «fuga para o direito privado», com multiplicação do fenómeno da

No documento O Novo Cdigo do Procedimento Administrativo (páginas 52-54)

ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO NOVO CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO ∗

2. ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO NOVO CÓDIGO

2.3. Como causa da primazia do critério material sobre o critério orgânico, o agravamento da «fuga para o direito privado», com multiplicação do fenómeno da

«dupla capacidade jurídica» (uma de direito privado e outra de direito público)

Enfim, cremos que o abandono de conceitos mais amplos e complexos normalmente reportados à atividade materialmente administrativa levada a cabo pela Administração Pública em sentido orgânico ou subjetivo – como o de «atividade de gestão pública», «função materialmente administrativa» ou, em vez destes dois, «desempenho da atividade administrativa» (era a expressão consagrada no primeiro anteprojeto) – resulta de uma renúncia pelo legislador do novo CPA à tradicional prévia separação de águas entre, por um lado, uma normal aplicação do Código (de todo ele) à conduta das pessoas coletivas públicas no setor primordial da sua atuação e que constitui o seu quadro jurídico específico, e, por outro lado, e a título excecional, uma sua muito pontual aplicação ao exercício de poder públicos de autoridade por entidades privadas.

Foi a opção do legislador determinada, sem qualquer dúvida, pelo agravamento sentido nas duas últimas décadas da chamada fuga para o direito privado – fenómeno que se refletiu não apenas num considerável aumento das situações de prossecução de parcelas da função administrativa por entidades administrativas privadas (tema que abaixo será devidamente analisado), mas também na sujeição ao direito privado de substanciais áreas de atuação de muitas das clássicas pessoas coletivas de direito público.

Tal tendência, diz-se, tem descaraterizado a tradicional Administração Pública, já não subsistindo nos nossos dias, pelo menos com a clareza de outrora, a premissa base a que se fez referência acima – a da essencial correspondência entre a natureza jurídico-organizativa de um ente (pessoa coletiva de direito público ou de direito privado) e do direito que em regra lhe é aplicável, enquanto seu direito estatutário (respetivamente, o direito administrativo ou o direito privado).

No que respeita às derrogações do princípio da correspondência entre a natureza jurídico- pública de um ente e o seu direito estatutário (que é o direito administrativo), não estamos a falar do clássico e pacífico caso das (antigas) empresas públicas, atuais «entidades públicas empresariais», cuja atividade, de cariz económico-empresarial, à partida orientada por

critérios de eficiência, de há muito se entende ajustar-se melhor ao direito privado. Queremo- nos referir, sim, à sujeição «pela metade» ao direito privado de outras categorias de entes públicos de cariz não empresarial, muitos das quais desenvolvem inclusive uma típica administração de autoridade.

A título de exemplo, a lei orgânica da AMA – Agência para a Modernização Administrativa, IP – o DL n.º 43/2012, de 23 de fevereiro –, depois de, no seu art.º 1.º, qualificar a AMA como um instituto público integrado na administração indireta do Estado que prossegue atribuições nas áreas da modernização e simplificação administrativa e da administração eletrónica, equipara no n.º 3 do seu art.º 3.º este organismo “a entidade pública empresarial, para efeitos de desenvolvimento e gestão de redes de lojas para os cidadãos e para as empresas” – o mesmo é dizer que remete o exercício de toda esta atividade a desenvolver pela AMA para o direito privado.

Mais relevantes são os casos em que a lei sujeita ao direito privado determinados campos de atuação de toda uma categoria de pessoas coletivas públicas. É o que sucede, paradigmaticamente, com as entidades reguladoras independentes, relativamente à respetiva «gestão financeira e patrimonial»: em tais áreas de atuação manda o n.º 3 do art.º 4.º da respetiva lei-quadro (Lei n.º 67/2013, de 28.VIII) que se lhes aplique, supletivamente, o regime das entidades públicas empresariais (RJSPE – DL n.º 133/2013, de 3.X), remetendo-as assim nestas matérias para o direito privado. E o mesmo se diga quanto a uma terceira área de atuação, a saber, a da «gestão de pessoal»: segundo o n.º 1 do art.º 32.º do referido diploma, aos trabalhadores destas entidades é aplicável o regime do contrato individual de trabalho.

Outras categorias de pessoas coletivas públicas, como as associações públicas profissionais e as fundações públicas universitárias, apresentam também esse duplo regime, gerador igualmente de uma inédita «dupla capacidade jurídica» (uma capacidade de direito privado e uma capacidade de direito público). No que a esses entes se refere, aplica-se o direito privado a umas tantas áreas de atuação, nomeadamente à respetiva gestão patrimonial, financeira e de pessoal, e o direito público às demais áreas.

Estes termos são explicitamente utilizados pelo Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, aprovado pela Lei n.º 62/2007, de 10.IX (cujo art.º 134.º, n.º 1, dispõe que as

fundações públicas universitárias “regem-se pelo direito privado, nomedamente no que

respeita à sua gestão financeira, patrimonial e de pessoal”).

Quanto às associações públicas profissionais, determina o art.º 2.º, n.º 2, al. b) da Lei n.º 2/2013, de 10.I (que estabelece a sua comum disciplina) o serem tais entidades regidas pelas normas e princípios que disciplinam as associações privadas no que concerne à respetiva “organização interna”. O mesmo é dizer que às ordens profissionais se aplicará por regra o direito privado nos seus assuntos «domésticos», ou seja, em todas as áreas de atuação alheias às relações regulatórias externas estabelecidas entre elas e os profissionais colegiados (ou os candidatos à profissão também sujeitos à sua jurisdição), incluindo o regime laboral dos respetivos funcionários (que é o do Código do Trabalho, nos termos do art.º 41.º do diploma).

Em contrapartida, aplica-se o direito público, no que a umas e outras concerne, à atividade de gestão pública por si desenvolvida, em direta prossecução das atribuições que constituem a sua razão de existir.

Diga-se por último que em todos estes casos, não obstante a pouca clareza das normas definidoras dos respetivos regimes, estamos longe ainda do figurino das entidades públicas empresariais: em caso de dúvida a regra é (continua a ser) a da aplicação do direito público, configurando-se a sujeição ao direito privado como a exceção. Só que agora as exceções já não são apenas casos pontuais (designadamente uma ou outra prerrogativa de autoridade), mas inteiras áreas de atuação.

No documento O Novo Cdigo do Procedimento Administrativo (páginas 52-54)

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