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CAPITULO I – A CARTA CIDADÃ

IV. DO PRINCÍPIO REPÚBLICANO E DO PRINCÍPIO FEDERATIVO

1. O princípio republicano

O princípio republicano é um princípio fundamental e básico, informador de todo o sistema jurídico brasileiro, cuja ideia de república domina não só a legislação, como o próprio texto constitucional inteiramente, de modo inexorável, penetrando todos os seus institutos e esparramando seus efeitos sobre os mais modestos escaninhos ou recônditos meandros.43

Em linhas gerais, o regime republicano caracteriza-se pela tripartição do poder político e pela periodicidade dos mandatos políticos, com consequentes responsabilidades dos mandatários.

Assim, leciona Geraldo Ataliba, que os mandamentos constitucionais

estabelecem complexos e sofisticados sistemas de controle, fiscalização, responsabilização e representatividade. Como tal configuram-se como mecanismos de equilíbrio e harmonia (checks

and balances do direito norte-americano, aqui adaptados pela mão

genial de Ruy) da “função primacial” do sistema jurídico brasileiro, no equacionamento, reforço e garantia do princípio republicano.44

43

Cf. Geraldo Ataliba. Constituição e república. 2 ed. Atualizada por Rosaléa Miranda Folgosi. São Paulo: Malheiros, 1998.p. 31.

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A importância desse princípio também é reiterada por Adriano Pilatti, que estabelece um feixe de atributos mínimos que caracterizam a república. Ele parte da afirmação de que ela, a república, é uma entidade radical, marcada pela concepção igualitária de bem público, cujo titular é o povo, compreendido como um conjunto de cidadãos livres e iguais no exercício de seus direitos. Como segunda característica, ele afirma rigorosamente a distinção entre o patrimônio público e o privado dos governantes, fator este que deverá nortear a atuação de todos os agentes estatais, sobretudo quando essa é traduzida em atos de gestão da coisa pública, com a imposição de deveres inarredáveis de impessoalidade e de prestação de contas.

Assim, a eletividade dos governantes, principalmente a do Chefe de Estado, além da temporalidade dos seus mandatos e a consequente periodicidade das eleições, possibilita a responsabilização político-jurídico de todos os agentes públicos, sem exceção, quando ocorrer a prática de atos lesivos ao bem público.45

Nota-se que a Constituição de 1988 estabeleceu, em seu artigo 2º, que são poderes da União, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, sendo vedada expressamente, pelo artigo 60, § 4º, incisos II e III, qualquer forma que venha abolir o preceituado. Seu escopo, no entanto, não preceitua a separação ou independência absoluta dos poderes, mesmo porque, há na própria disposição constitucional, a previsão de harmonia entre eles.

Flávia Viveiros de Castro leciona

No que pertine à harmonia entre os poderes do Estado, a referência que deve ser feita diz respeito à mútua interferência entre os mesmos, visando à criação de um sistema de freios e contrapesos, indispensáveis para que se evite o arbítrio e o abuso de poder. Cria- se um complexo sistema de corresponsabilidades, que busca o equilíbrio e controles recíprocos.46

45

Cf. Os princípios da Constituição de 1988. A. Pilatti. In: M. Peixinho e I.F Guerra e F Nascimento Filho. (Org.) Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p.130.

46

Cf. Flávia Viveiros Castro. In: Os princípios da Constituição de 1988. M. Peixinho e I.F. Guerra e F.Nascimento Filho. (Org.) Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001. p. 149.

Depreende-se, assim, que o poder do Estado47

é uno e compartilhado entre entidades que desempenham funções e atividades constitucionalmente atribuídas a cada uma, independentes umas das outras, sem que nenhuma seja predominante.

No uso das prerrogativas que competem a cada poder do Estado, há as denominadas de poder de iniciativa, que de modo geral estão distribuídas pela Constituição. Ao observar a estrutura constitucional brasileira, constata-se que os poderes exercem funções típicas e atípicas48

, e que a limitação de um Poder pelo outro está na própria Constituição, ao estabelecer sistema de freios e contrapesos, como por exemplo, ao dar competência ao Legislativo para elaborar leis, mas as submete à sanção e promulgação do Executivo, assim como as submete ao controle constitucional do Judiciário; ou, quando atribui competência ao Executivo para administrar os seus serviços, submetendo-o às leis do Legislativo e ao julgamento do Judiciário; ou ainda quando confere competência ao Judiciário para dizer o direito no caso concreto, mas condiciona o seu julgamento às leis do Legislativo, bem como condiciona o exercício do cargo de magistrado das Cortes Superiores à indicação do Executivo e à aprovação do Legislativo. A finalidade é elemento permanente e de vinculação da conduta do agente administrativo, como do legislador ou do juiz.

Mas a Carta Maior foi além ao assegurar a liberdade e autonomia de atuação dos membros de cada poder, pois estabelece vedações, como os artigos 54, incisos I e II, com o objetivo de garantir a reta atuação dos integrantes do Parlamento ou

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Cf. Marcello Caetano, refletindo sobre os dois sentidos da expressão “poderes do Estado” esclarece que: “(...) a expressão poderes do Estado é empregada em dois sentidos: umas vezes os autores e as leis referem-se às diversas faculdades de agir, contidas no poder político; outras querem significar os sistemas de órgãos pelos quais se encontra dividido o exercício das formas de autoridade política. (...) Como se vê, quando se toma a expressão <poderes do Estado> nesta primeira acepção suscita- se um problema de carácter filosófico que pode ser resolvido especulativamente, por via dedutiva: a partir do conceito de poder político deduzem-se as potencialidades ou faculdades que estão contidas na sua essência. E portanto, os diversos autores podem pretender formular sobre o tema as suas teorias, consoante o conceito de soberania de que partem o método que seguem, procurando uma visão mais exata ou mais completa da questão.na segunda É claro que se os poderes do Estado são órgãos ou sistemas de órgãos pelos quais é repartido o exercício das faculdades da soberania segundo critérios pragmáticos, isto é, olhando apenas à eficiência sob o ponto de vista do funcionamento do sistema político ou da garantia da liberdade individual, o problema de saber quais eles sejam, ou quantos devam ser, passa a ser mera questão da arte política, variável consoante os critérios a que obedeça o ordenamento de cada sistema constitucional.” (Marcello Caetano. Manual de ciência política e direito constitucional. 6. ed. ver. e ampl., v.1. Por Miguel Galvão Teles. Coimbra: Almedina, 1996, pp. 199-201)

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mesmo, quando impõem no parágrafo único, incisos I, II e III do artigo 95 vedações aos membros do Poder Judiciário.

O Poder Executivo quando pratica os atos de chefia de Estado, de governo e da administração, está assim, exercendo função típica estabelecida pela Constituição Federal, conforme o artigo 84, incisos I, II, XXIV e XXV. A função atípica normativa será exercida de modo generalizado, no caso previsto no artigo 49, XI, da Constituição Federal; e de modo específico em outros dispositivos constitucionais, como no artigo 84, incisos III, IV, V, VI, XXIII, XXVI; e mais, compete-lhe à expedição de regulamento para a fiel execução das leis, conforme o artigo 84, inciso IV, última parte. Contudo, no exercício do poder disciplinar, que lhe cabe sobre o seu pessoal, o Executivo julga administrativamente os seus servidores, mas sem afastar o recurso ao Judiciário, em caso de lesão ou ameaça ao direito1

, exercendo a função atípica de julgar.

O Poder Judiciário é independente e fundamental como instrumento concretizador das liberdades e franquias constitucionais1

, a sua função típica é a de julgar os casos concretos de lesão e ameaça ao direito, conforme se vislumbra nos artigos 102, 105, 108, 114, 124 da Carta Maior. Mas, como irá ocorrer no Poder Legislativo, para executar a sua função típica, terá que exercer, atipicamente, a função administrativa quanto aos seus membros, seus servidores e seus bens, como dispõe o texto constitucional nos artigos 93 e 96 inciso I, letras "b", "c", "d", "e" e "f", e ainda no artigo 99. Exercerá função legislativa atípica conforme o estatuído constitucionalmente no artigo 96, inciso I, "a" segunda parte e inciso II, da CF.

Finalmente, ao Poder Legislativo, no cumprimento da função típica de legislar, cabe a ele editar leis, conforme está estabelecido na Constituição Federal em seus artigos 48 e 49. O artigo 49, inciso XI, estabelece que compete também ao Legislativo zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros poderes. Como ocorre com o Poder Judiciário, o Legislativo irá exercer atividade administrativa sobre seu pessoal e seus bens. Mas, ao julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade, conforme artigo 86 da Carta Magna, estará exercendo atipicamente função julgadora. Contudo, nos dias de hoje, a sua função fiscalizadora vem se destacando, tornando-se tão essencial quanto à sua função típica de legislar, ao realizar fiscalização contábil,

financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Poder Executivo, conforme estipula a Carta de 1988 nos seus artigos.

Assim, em termos esquemáticos, o ponto de partida sobre o espírito republicano, plasmado pela Nação na Carta de 88 se desdobra ao longo do texto constitucional com inúmeras regras, dando o conteúdo exato e a precisa extensão da tripartição do Poder que os mandatos políticos e sua periodicidade implicam na alternância no poder. Estabelece responsabilidades dos agentes públicos, visando à proteção das liberdades públicas e, por fim, mecanismos de fiscalização e controle do povo sobre o governo, tanto na esfera federal, quanto na estadual e municipal.

A reflexão que se impõe para o presente estudo consiste no fato da República se traduzir no regime político em que os que exercem de funções políticas – executivas e legislativas – representam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletividade e mediante mandatos renováveis periodicamente. Como aceitar o presidencialismo de coalizão em nome de uma pseudo governabilidade, contrariando os mais basilares fundamentos republicanos adotados pelo povo brasileiro na Carta Magna de 1988, como sendo uma prática condizente com os ditames constitucionais?

Somente uma atuação firme e consistente perante o Poder Judiciário pode corrigir a distorção encontrada no presidencialismo de coalizão, em que ocorrem nomeações de integrantes do Poder Legislativo para integrar a burocracia estatal. Mecanismo nefando de cooptação do Poder Executivo, que distorce todos os mecanismos de controle dispostos à mão do legislador e do povo, fazendo de mera decoração os institutos da sabatina e do impeachment, bem como de outros instrumentos de controle e avaliação de políticas públicas, como a requisição de informações e a convocação de autoridade.

Deve ser declarada a inconstitucionalidade de tais espúrias nomeações, pois cargo em comissão deve ser provido por meio de indicação do Chefe do Poder Executivo para agentes públicos concursados e não para agentes políticos eleitos49

. Nesse sentido, é clara a indagação:

49

Cf. Marcos Roberto Gentil Monteiro. Hermenêutica constitucional do provimento em comissão. Fundação Toviêdo Teixeira. Aracaju: Editora-UFS, 2005. pp. 23-170, p. 132

“É legítimo e ético um deputado ou um senador aceitar convite para exercer outras funções?”50