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4. SISTEMA PRISIONAL

4.1 Prisão, instituição total

Considerando as características de uma prisão, marcada pelo isolamento do mundo externo, onde o atendimento às necessidades humanas é realizado e conduzido em grupo, controlado racional e burocraticamente, Goffman (2003), utilizará o termo “instituição total” para designar a prisão127.

[...] instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos em situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada [...] (Goffman, 2003, p. 11)

125 Goffman, E. Manicômios, prisões e Conventos, 2003.

126 Sá, Alvino Augusto. Sugestão de um esboço de bases conceituais para um sistema penitenciário. In Manual de Projetos de Reintegração Social, 2005.

127 Usaremos o termo instituição total especificamente para nos referirmos à prisão, mas ressaltamos que o autor, especifica “cinco agrupamentos” para conceituar instituições totais, a saber: abrigos, manicômios, prisões, oficiais e refúgios religiosos. (Goffman, 2003, p.16)

O aspecto central de uma instituição total, será o controle hierarquizado e administrativo de todos os aspectos da vida diária da pessoa presa e de suas necessidades mínimas, sendo suas atividades desenvolvidas obrigatoriamente em grupo e sob um sistema de organização rígida, orientado por regras e horários formalmente estabelecidos, sendo o desenvolvimento de trabalho e administração dessa instituição, baseado num “plano racional único, supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição.” 128 .

Dessa forma de organização decorrem conseqüências que recaem sobre os indivíduos que estão sob os cuidados da “instituição total” e sob as ordens dos funcionários que atuam na mesma. E tais conseqüências influenciam o sistema de funcionamento da organização, conseqüências essas que apresentaremos no decorrer deste tópico.

Uma instituição total, especificamente uma prisão, além das suas especificidades arquitetônicas para isolamento social, contenção e vigilância, é constituída por dois grandes grupos de atuação, os quais denominaremos funcionários e pessoas presas.

O grupo de funcionários, é composto e estruturado em diretorias, agentes penitenciários de segurança, equipe técnica e de saúde, aos quais a pessoa presa estará subordinada através de um “sistema de autoridade escalonada” 129 .

A relação travada entre estes dois grupos, funcionários e pessoas presas, é marcada por uma divisão “equipe dirigente - internado” 130, caracterizada pelo controle da comunicação e de informações, e “cada agrupamento tende a conceber o outro através de estereótipos limitados e hostis” 131.

Ao adentrar numa instituição total, a pessoa presa passará por um processo que Goffman (2003) denominará de “mortificação do eu” e “mortificação dos sentimentos”,

128 Goffman, 2003, p. 18. 129 Ibid, p.45.

130 Goffman considera essa divisão uma das conseqüências básicas da direção burocrática e de grande número de pessoas. (Goffman, 2003, p. 18).

caracterizado pelo contínuo aviltamento e violação à pessoa, desde o processo de admissão, inserção e socialização na instituição, onde a pessoa presa é marcada, principalmente, pelo isolamento do mundo externo; pelo despojamento de papéis desempenhados anteriormente; pela perda do nome e instituição de um código numérico, que se refere à matrícula e entrada no sistema prisional; despojamento de bens pessoais; perda do sentido de segurança pessoal; desfiguração da aparência e apresentação pessoal usual; “enquadramento” e manutenção de comportamentos e falas exigidas em detrimento dos comportamentos e falas usuais.

Outras formas que contribuem para a “mortificação do eu” serão as inúmeras ocorrências a que a pessoa presa está sujeita e exposta, que Goffman (2003), irá denominar de “exposição contaminadora” 132, caracterizada pela ausência de delimitação entre o mundo institucional e o universo pessoal e íntimo, ocorrendo assim à invasão e o aviltamento das dimensões psicológicas e físicas, sendo destacada a reserva de informações sobre o próprio eu; exposição física da condição humilhante; alimentação inadequada; atendimento médico inadequado; contato interpessoal e relação social impostos através da convivência obrigatória em grupo, principalmente pela superlotação do sistema prisional e pela diversidade dos seus componentes (etária, étnica, racial, etc.), e especificidade do histórico e do número de ocorrências do delito.

Esse processo de “mortificação do eu” apresenta justificativas racionalizadas e fundamentadas pela instituição total, através de seus objetivos e ideais, onde são considerado, a segurança, a disciplina, o controle e a reintegração de um número grande de pessoas, em espaços restritos, com diminutos recursos materiais e humanos.

Paralelo ao processo de “mortificação do eu”, as instituições totais são caracterizadas por uma organização formal e informal, sendo a organização formal distinguida através de um

“sistema de privilégios” 133, o qual possui três elementos básicos: 1) as “regras da casa”; 2) prêmios e privilégios, em função da obediência; 3) e castigos em função da desobediência.

Esse esquema de castigos e privilégios é tão peculiar à realidade e organização das prisões, que possibilita à pessoa presa a orientação para a reorganização do seu eu, traduzindo-se diretamente em benefícios para sua liberdade futura, possibilitando o controle e adequação da pessoa presa pela instituição, através da oferta de prêmios ou castigos.

A organização informal, evidencia um “sistema de ajustamento secundário” 134, desenvolvido pelos próprios apenados, com o objetivo de satisfação de necessidades que a instituição não atende.

Esse esquema possibilita ao grupo de encarcerados checar sua autonomia, desenvolver esquemas de códigos, controle e hierarquia de poder informal. Nesse ambiente, as relações pessoais desenvolvidas são pautadas pelo assédio, intimidação e apoio, dando base a uma comunhão, cumplicidade e lealdade restrita e partilhada entre as pessoas presas, caracterizando-se muita vezes numa administração invisível, a qual será uma organização paralela ou, às vezes, imbricada com a administração dirigente oficial. “A prisão [...] favorece a organização de um meio de delinqüentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos para todas as cumplicidades futuras” 135.

O híbrido da organização formal e informal na prisão, traduz sua real contradição e ineficácia pois, para além dos objetivos declarados oficialmente136, “muitas instituições totais parecem funcionar apenas como depósitos de internados” 137, sendo este “o contexto básico da atividade diária” 138dos funcionários.

133 Goffman. 2003, p. 49 134 Ibid., p.160.

135 Foucault, 1997:222.

136 Segundo a Lei de Execução Penal, Título I, Do Objeto e da Aplicação da Lei de Execução Penal. Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

137 Goffman, 2003, p. 69. 138 Ibid., p. 70.

Segundo Goffman (2003), o controle da pessoa presa “é geralmente racionalizado, através de funções ou objetivos e ideais do estabelecimento, e isso exige serviços técnicos humanitários [...] os especialistas [...] tendem a ficar insatisfeitos, pois não podem exercer corretamente sua profissão, e são usados como ‘cativos’ para dar sanção de especialistas ao sistema de privilégios.” 139

Até aqui buscamos nos aproximar da realidade interna da prisão, suas características e considerações, explicitando o dilema da punição e da reintegração social, representado através da contradição das ações desenvolvidas no sistema prisional, dilema esse presente na prática do psicólogo que é referência de discussão deste trabalho.