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3. CRIMINOLOGIA

3.3 Teoria Crítica

Também denominada de teoria radical e “nova criminologia”, a Teoria Crítica da criminalidade tem sua origem na década de 70 nos Estados Unidos e na Inglaterra espalhando-se depois na Europa, a partir de três movimentos distintos e respectivos autores representativos91.

Segundo Shecaira (2004) o foco de atenção e crítica eram as teorias criminológicas de consenso, que eram “incapazes de compreender a totalidade do fenômeno criminal” 92 , sendo até mesmo, alvo de crítica, a teoria do labelling approach (rotulação social), considerada como uma proposta de reforma liberal e de melhoria das instâncias de controle, respeitando com limites o pluralismo cultural e moral.

A teoria crítica “propõe uma ampla reflexão do próprio conceito de crime” considerando que sua redefinição está aliada a “uma ampla reflexão crítica sobre a realidade, de modo a enfrentar a questão de um sistema legal baseado no poder e no privilégio” 93.

88 Shecaira, 2004, p. 59. 89 Ibid., p. 60.

90 Shecaira, apresenta a distinção entre controle social primário ( controle formal através de sanções) e o controle social secundário (controle informal através da internalização de normas e modelos), remetendo-nos ao “[...] pensamento dual de Estado, compreendendo sociedade civil e sociedade política, que foi consagrado por Antonio Gramsci [...] Dessa concepção dual surge o conceito de Estado, com novas determinações, comportando duas formas de dominação: uma representada pela hegemonia (sociedade civil) e outra pelo poder coercitivo (sociedade política).” (Shecaira, 2004, p. 58-60)

91 Shecaira, 2004, p.327 et. seq. 92 Ibid., p.332

Os movimentos da década de 70 tornaram-se o berço do desenvolvimento de “três distintas tendências no interior da criminologia moderna: o neo-realismo de esquerda94, a teoria do direito penal mínimo e o pensamento abolicionista.” 95, que passamos a descrever conforme apresentado por Shecaira (2004) 96:

1. A corrente neo-realista de esquerda

- defende o “regresso ao estudo da etiologia do delito, com prioridade aos estudos vitimológicos” pois acreditam que, “as chamadas ‘causas do delito’ devem ser denunciadas, a fim de que a injustiça estrutural seja identificada com sua gênese”. Critica outras correntes, cujo foco de atenção prende-se às razões econômicas e políticas e “que enveredam para a teoria de Estado”;

- entende “que além da pobreza, outros fatores concorrem para a perpetração do crime, devendo ser reconhecidos [...] o individualismo, a competição desenfreada, a busca incessante de bens materiais, as discriminações sexuais e o racismo”; - sobre a vítima propõe a atenção às “pessoas que mais sofrem com a criminalidade,

os desprovidos [...] o delito como problema real é, de fato, um fenômeno intraclassista e não interclassista, sendo assim, tal fenômeno produz uma divisão dentro das classes menos favorecidas e faz esquecer o inimigo real: a sociedade capitalista” 97;

94 “Denomina-se de esquerda pra diferenciar-se do movimento realista de direita, que tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, no começo dos anos 80, exigia mais repressão contra a criminalidade de massa e contra as minorias étnicas”. Martinez Sanches, Mauricio (apud Shecaira, 2004, p.335).

95 Shecaira, 2004, p. 335 et. seq. 96 Ibid., p. 335 et. seq.

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Em relação a essa questão, observamos: “Ao ser considerada intolerável pelo conjunto da sociedade, a pobreza assume um status social desvalorizado. Os pobres são obrigados a viver numa situação de isolamento, procurando dissimular a inferioridade de seu status no meio em que vivem e mantendo relações distantes com todos os que se encontram na mesma situação. A humilhação os impede de aprofundar, desse modo, qualquer sentimento de pertinência a uma classe social”. (Serge Paugam, 2001, p. 69).

- sobre a política criminal propõe “uma nova relação entre polícia e sociedade, assim como uma ‘organização democrática na comunidade’ com a finalidade de contribuir para uma luta comum contra o delito”; “uma linha reducionista na política criminal, descriminalizando certos comportamentos e criminalizando outros. Assim entende que as novas demandas sociais exigem a tipificação de ‘novos’ crimes, ainda que se reconheça a necessidade da diminuição da ‘velha’ criminalidade”; “Adotam [...] a idéia da prevenção geral positiva, em grande parte sustentada pelos chamados funcionalistas, mas muito criticada pelos primeiros pensadores críticos”; sugere “especial atenção às instituições, comunidade e polícia, para traçar uma política criminal setorial que trate de representar os interesses da localidade, do bairro, independentemente da estratificação social” 98; - sobre o controle social propõe a “redução do controle penal e extensão a outras

esferas. Isto é [...] que a criminologia se preocupe com certos fatos que atingem mais diretamente a classe trabalhadora”, por exemplo, “roubos, violências sexuais, abusos contra crianças e adolescentes, violências com motivações raciais, violências nos locais de trabalho, delitos cometidos por governos e grandes empresas”;

- sobre a pena considera a importância da reinserção dos delinqüentes, “no lugar de marginalizar e excluir os autores dos delitos, devem-se buscar alternativas à reclusão para que adquiram uma espécie de compromisso ético com a comunidade, na prestação de serviços e na reparação dos danos às vítimas”; a manutenção da prisão “ainda que somente em circunstâncias extremas, pois algumas pessoas, em liberdade, seriam perigosas à sociedade”, e entendem, “que a busca de alternativas à prisão é, definitivamente, uma manifestação de idealismo.

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Com isso, em grande medida acabam relegitimando a idéia do cárcere, pois aceitam ser situações em que a classe trabalhadora e os setores marginalizados viriam a se educar”.99

Shecaira (2004) adjetiva como interessantes muitos aspectos das perspectivas apresentadas pelos neo-realistas de esquerda, pois consideram as mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais da última década e buscam a conexão com a crescente criminalidade e vitimização. O autor pondera “que tudo isso deve transformar a prioridade da agenda dos criminólogos” 100.

Segundo Shecaira (2004) a corrente neo-realista de esquerda afirma que “algumas forças fundamentais lançaram novos paradigmas criminológicos [...] ponto de partida da visão revisionista” 101, a saber: “o aumento das taxas de criminalidade, que transformou não só o perfil das exigências sociais, mas também a própria intervenção punitiva” o que “decorre fundamentalmente do fenômeno de desemprego estrutural”; “a revelação de vítimas até então invisíveis”; “a problematização da criminalidade [...] em vez da distinção clara entre crime/não crime, é mais fácil percebê-la como um continuum entre comportamento tolerado e comportamento criminalizado, em que ponto de corte varia com o tempo e entre grupos sociais diferentes”; “universalidade do crime e a seletividade da justiça”; “problematização da punição e da culpabilidade [...] Em vez de a polícia suspeitar de certos indivíduos, passou a suspeitar de categorias sociais [...] a noção categórica de culpabilidade é matizada por outros fatores externos à avaliação pessoal e que são sempre relevantes nas decisões dos tribunais.”102

99 Shecaira, 2004, p. 338. Cf. ainda a dialética da exclusão e inclusão (perversa), cap. 2, deste trabalho. 100 Shecaira, 2004, p.338.

101 Ibid., p. 339-341. 102 Ibid., p. 339-341.

2. A corrente minimalista

- propõe como ponto principal o direito penal mínimo, daí a origem do nome da corrente;

- entende que o crime existe por definição legal, portanto, o estudo das “suas causas” significa um regresso numa perspectiva criminológica positivista. Assim, rechaça a crítica dos neo-realistas de esquerda, quando estes criticam os minimalistas por se debruçarem sobre as razões econômicas e políticas;

- considera “a criminologia como resultado de um processo de definição, cuja finalidade está em ocultar situações negativas e sofrimentos reais das classes menos favorecidas” 103;

- Propõe “superar o idealismo da teoria da rotulação social” 104, e ainda, a redefinição crítica do próprio conceito de delito. “Aceitar sua definição na sociedade atual é ignorar que o direito regula uma sociedade desigual e que, portanto, estaria atuando de forma a não conservar qualquer neutralidade” 105; “deixar de atribuir relevo aos pensamentos tradicionais da criminalidade de massa ou criminalidade de rua [...] para pensar uma ‘criminalidade dos oprimidos’: racismo, discriminação sexual, criminalidade de colarinho-branco, crimes ecológicos, belecismo etc.” 106 ;

- sobre a pena, seus pensadores “são céticos relativamente à eficácia do instrumento penal para combater a criminalidade organizada ou para dar resposta aos conflitos

103 Shecaira, 2004, p. 342.

104 Segundo Shecaira, a “teoria da rotulação social [...] (seus pensadores) defendem uma ‘prudente não intervenção’ em face de alguns delitos cometidos, por entenderem que qualquer radical aplicação de pena pode produzir conseqüências mais gravosas quanto aos benefícios que pode trazer”. (Shecaira, 2004, p. 342).

105 Ibid., p.342. 106 Ibid., p.343

cujos autores não são individualizados, mas que correspondem a modalidades, organizações e sistema complexos de ações” 107;

- sobre a política criminal propõe “radicais transformações sociais e institucionais para o desenvolvimento da igualdade e democracia”; diminuição “do sistema penal em certas áreas e expansão de outras” concomitante à “descriminalização de certos comportamentos, como delitos contra a moralidade pública, delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, são defendidas intervenções mais agudas nas áreas em que se trabalha com interesses coletivos, tais como saúde e segurança do trabalho, revendo a hierarquia dos bens jurídicos tutelados pelo Estado”; “defesa de um novo direito penal, em curto prazo, mediante a consagração de certos princípios com os quais seriam assegurados os direitos humanos fundamentais” 108.

Segundo Shecaira (2004) os minimalistas consideram que “o ‘programa’ de direito penal mínimo deve ser acompanhado de uma ação de mobilização política e cultural que faça da questão criminal uma questão política crucial interpretada à luz dos conflitos que caracterizam a sociedade em geral” 109.

107 Shecaira, 2004, p. 344. 108 Ibid., p. 343-344. 109 Ibid., p. 344.

3. A Corrente Abolicionista

Esta corrente representa a crítica ferrenha ao sistema punitivo. Os abolicionistas “afirmam que o sistema penal só tem servido para legitimar e reproduzir as desigualdades e injustiças sociais. O direito penal é considerado uma instância seletiva e elitista.” 110, por isso alegam ser necessário desmistificar o papel das instituições penais.

O abolicionismo apresenta três matrizes ideológicas, a anarquista, a marxista e a liberal/cristã, as quais passamos a especificar:

1. a anarquista entende que “a principal preocupação está na perda da liberdade e autonomia do indivíduo por obra do Estado” 111, e aponta que o sistema penal coloniza o mundo da vida, assim todas as classes estariam submetidas a tal condição. Propõe que o caminho seria a “libertação em relação ao papel desempenhado pelo Estado [...] permeia essa visão a defesa de que a sociedade pode ser mais fraterna e solidária e que esta seria o cimento das posturas que autorizariam prescindir do sistema punitivo.” 112

2. a marxista entende “o sistema penal como instrumento repressor e como modo de ocultar os conflitos sociais. Parte da visão consagrada na ‘ideologia alemã’ quanto ao conceito de alienação, que conduz classes antitéticas a terem um pensamento conducente a uma idéia de colaboração entre elas” 113. Aspira à mudança dessa situação, o socialismo, conduzindo a uma justiça social, liberdade, decisões coletivas e conseqüentemente menos atuação do controle social sobre a maioria.

110 Ibid., p.344. 111 Ibid., p.346 112 Ibid., p.346. 113 Ibid., p.347.

3. a liberal/cristã: tendo como base o “conceito de solidariedade orgânica” 114, sendo a solidariedade o instrumento principal para solução das “situações problemas”, sendo essa expressão cunhada para referir-se aos conflitos entre as pessoas.

Os abolicionistas afirmam “que o delito é uma realidade construída. Os fatos que são considerados crimes resultam de uma decisão humana modificável” 115 , portanto, apontam para uma desconstrução e argumentam suas razões que justificam a abolição do sistema penal, a saber:

1. A sociedade já vive sem o direito penal, para tal afirmação consideram o alto índice da cifra negra (crimes não denunciados) e o alto índice de situações

resolvidas fora da justiça criminal;

2. o sistema é anômico, assim consideram que o sistema e normas não cumprem sua funções esperadas de proteção, prevenção e inibição do crime;

3. o sistema punitivo é seletivo e estigmatizante;

4. o sistema é burocrata, “cada instituição tem sua estrutura compartimentalizada em estrutura independente, voltada para si [...] desenvolvem critérios próprios de ação, ideologias, culturas e subculturas [...] Nessas compartimentalizações diluem-se as responsabilidades e ninguém acaba se preocupando [...] com o acusado e com a vítima”116;

5. o sistema concebe o homem como um inimigo de guerra;

114 Ibid., p.347. 115 Ibid., p. 348 116 Ibid., p. 350

6. o sistema penal117, opõe-se à estrutura geral da sociedade civil; 7. a vítima não interessa ao sistema penal;

8. o sistema penal é considerado como uma máquina para produzir dor inutilmente; 9. a pena de privação de liberdade é ilegítima, as finalidades apresentadas em

função da prisão não se cumprem.

Da apresentação das diversas correntes e respectivas visões, e para além de divergências e polêmicas, buscaremos agora, com o apoio do autor que até aqui nos acompanhou, Shecaira (2004) identificar as principais contribuições da teoria da criminologia crítica e examinar como essa teoria se propõe a conhecer e explicar a realidade, compreender o problema criminal e a transformá-lo.

Expressão de crítica obstinada à criminologia tradicional e às instâncias de controle punitivo, a criminologia crítica, apesar de seus pontos divergentes expressados através de suas diversas correntes e matizes ideológicos, apresenta a confluência de seus pensadores expressada pela busca da “transformação da sociedade e do próprio direito penal, traçando caminhos humanistas de tratamento aos criminosos” 118.

Dentre suas principais contribuições podemos destacar:

- Em relação ao objeto delito: o fundamento deste “deve ser investigado junto às bases estruturais econômicas e sociais, que caracterizam a sociedade na qual vive o autor do delito [...] a perfeita compreensão do fato delituoso não está no fato em si,

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“[...]estrutura burocrática na sociedade moderna, com a profissionalização do sistema persecutório, gerou um mecanismo em que as sanções são impostas por uma autoridade estranha e vertical, no estilo militar. As normas são conhecidas somente pelos operadores do sistema[...]” (Shecaira, 2004, p. 351).

mas deve ser buscada na sociedade em cujas entranhas podem ser encontradas as causas últimas da criminalidade” 119;

- Em relação à pessoa que comete o delito: “o fundamento imediato do ato desviado é a ocasião, a experiência ou o desenvolvimento estrutural que fazem precipitar esse ato não em um sentido determinista, mas no sentido de eleger, com plena consciência, o caminho da desviação como solução dos problemas impostos pelo fato de viver em uma sociedade caracterizada por contradições” 120;

- em relação à vítima e ao controle social do delito: os teóricos críticos buscam por meio das modificações do direito penal, “mudar o paradigma das criminalizações” objetivando “reduzir as desigualdades de classes e sociais” 121.

Essa visão faz repensar toda a política criminalizadora do Estado [...] o Estado deve assumir uma criminalização e penalização da criminalidade das classes sociais dominantes, como a criminalidade econômica e política, práticas anti-sociais na área de segurança do trabalho, da saúde pública, do meio ambiente, da economia popular, do patrimônio coletivo estatal e contra o crime organizado, com uma maximização da intervenção punitiva; de outro lado, há de se fazer uma minimização da intervenção de pequenos delitos, crimes patrimoniais (cometidos sem violência ou grave ameaça a pessoas), delitos que envolvem questões morais e uso de entorpecentes. (Shecaira, 2004, p. 358 e 367)

O autor supracitado traz ainda a reflexão quanto ao papel da teoria crítica na construção e transformação da realidade e ressalta dois momentos significativos:

119 Ibid., p. 357. 120 Ibid. p.357. 121 Ibid., p.357.

1. Na primeira geração de criminólogos críticos a contribuição estava na apresentação dos problemas para discussão;

2. Considerada uma segunda fase, a partir da década de 80, caracterizada pela tomada de consciência sobre a responsabilidade do conhecimento avançando, assim, na efetivação de mudanças no direito penal122 e de propostas de política criminal, como destacado anteriormente sobre a revisão da política de criminalização e penalização do Estado.

As considerações apresentadas até aqui, capítulos dois e três, expressam nossos parâmetros e referenciais teóricos na busca de compreendermos a constituição histórica, social, política e econômica da prisão, considerada como expressão de poder e controle social. Buscamos compreender ainda, a íntima relação da prisão com o fenômeno de exclusão, compreendendo a prisão como uma das formas de expressão do processo de exclusão, caracterizada pela segregação e a aniquilação social.

Nesse sentido, consideramos a pena de privação de liberdade e o seu objetivo, o “desfecho de procedimento oficial” 123 do processo de exclusão, denunciando-se o “processo dialético de exclusão/inclusão” 124 perversa, num contexto permeado pela desigualdade social

e econômica.

122 Cf. Shecaira, 2004, p. 358-361. 123 Castel, 1997, p.40.