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2.3 Atividade humana e concepção

2.3.4 Processo de concepção centrado na atividade

A concepção é compreendida como um processo complexo e fragmentado no sentido em que envolve diversos especialistas trabalhando em campos específicos do conhecimento, logo, requer a integração de diferentes “mundos objetos” que não comunicam necessariamente entre si. Caracteriza-se como um processo social dinâmico, que se realiza a

partir de negociações, trocas e intercâmbios entre diferentes interesses, no qual inúmeras decisões são tomadas ao longo das etapas do projeto (GARRIGOU et al., 1995).

A concepção é um processo coletivo, de interação, negociação e trocas entre diferentes sujeitos. Nesse sentido, a intervenção da ergonomia na concepção pressupõe uma construção social apoiada na mobilização de diferentes atores do projeto e a criação de espaços de discussão e deliberação conjunta que possibilitam a compreensão da experiência onde se encontram as lógicas e situações de uso.

Béguin e Cerf (2003) ressaltaram que o ergonomista enquanto um ator da concepção participa do processo não apenas para analisar a atividade, mas principalmente para modificar a condução da concepção de modo que a atividade dos trabalhadores e usuários possa ser considerada. Nesta perspectiva os autores apontam dois eixos distintos de atuação que se retroalimentam: i) analisar a atividade no processo de concepção: compreender o trabalho dos projetistas e; ii) analisar a atividade para a concepção: desenvolver sistemas ou organizações futuras a partir da compreensão da atividade dos usuários ou operadores finais.

Para Béguin (2007) a prática dos ergonomistas no processo de concepção é orientada por três perspectivas sobre a atividade, conforme distinção feita pelo autor: cristalização, plasticidade e desenvolvimento.

A cristalização sugere que todo artefato cristaliza um conhecimento, uma representação e as escolhas dos projetistas realizadas no processo de concepção, considerando a atividade a ser realizada e as escolhas sociais, econômicas e políticas. Em outras palavras, o artefato incorpora um modelo de usuário e de sua atividade. Caso estes modelos sejam falsos ou insuficientes eles poderão ser fonte de dificuldade ou exclusão nas situações reais de uso (BÉGUIN, 2007).

Assim sendo, por meio da atividade é possível conhecer as características do artefato, do usuário e da situação de uso e compreender a interação entre os componentes humanos e técnicos. Além disso, a partir do processo de objetivação, o qual torna visível e compreensível a atividade tendo em vista o contexto no qual esta se situa, a análise da situação real possibilita definir e identificar as restrições contextuais (BÉGUIN, 2007).

A perspectiva da plasticidade reconhece que a atividade real não corresponde a sua antecipação uma vez que esta é orientada por situações concretas em um momento específico e está em constante evolução. É preciso conceber sistemas e artefatos que permitam ao usuário realizar as adequações necessárias de acordo com as circunstâncias. Portanto, a concepção não é especificar a efetuação da ação, mas sim estabelecer fronteiras de

ação ou espaços possíveis para a atividade futura, deixando margens de manobra suficientes (BÉGUIN, 2007).

Em síntese, a perspectiva da cristalização resume que é necessário compreender conjuntamente a concepção do artefato e dos usos e; a plasticidade estabelece que a eficácia dos dispositivos não resulta exclusivamente dos artefatos, mas também da atividade dos sujeitos em uma dada situação (BÉGUIN, 2007).

Por último, a terceira perspectiva, desenvolvimento, está ancorada em três aspectos: i) não existe vida técnica, assim para uma inovação funcionar ela deve estar associada à um contexto; ii) o operador ou usuário desenvolve novas técnicas a partir daquelas que estão disponíveis, podendo modificar os dispositivos de acordo com suas próprias construções; iii) o processo de apropriação do artefato revela a necessidade de desenvolvimento de recursos pelo sujeito para sua própria ação (BÉGUIN, 2007).

Logo, o desenvolvimento dos artefatos e da atividade devem ser considerados conjuntamente na condução do projeto, ou seja, a concepção dos artefatos pelos projetistas e o desenvolvimento de recursos para ação pelos usuários deve estar articulada. Além disso, uma abordagem de concepção fundamentada na perspectiva do desenvolvimento é intrinsecamente participativa, na qual projetistas e usuários participam trazendo suas diversidades e especificidades (BÉGUIN, 2007).

A concepção requer a construção de um mundo comum, o que remete a ideia de confrontação de conhecimentos diferentes a partir de pontos de vista distintos. Deste modo a atividade de um é colocada no mundo dos outros para guiar as aprendizagens cruzadas, que por sua vez são sustentadas por uma construção social (BÉGUIN, CERF, 2003).

Esse conceito de mundo evidencia a ideia de que em face de um mesmo objeto coexistem diferentes modelos ou sistemas de referência e remete ao conceito de estratégia e de criatividade situada, dada a necessidade de produção das condições e os meios da atividade pelo sujeito (BÉGUIN, CERF, 2003).

Nesta perspectiva, levando em consideração as características da situação de uso, a partir da ação e para a ação, os usuários não utilizam os dispositivos técnicos como previstos nos desenvolvimentos, mas modificam-nos momentânea ou permanentemente (BÉGUIN, CERF, 2003). Esta atividade construtiva do usuário que resulta na evolução dos artefatos e na construção de esquemas de utilização é denominada como gênese instrumental (BÉGUIN, RABARDEL, 2000; BÉGUIN, 2007). A origem da gênese instrumental não se restringe a necessidade de adaptar os artefatos, mas se inscreve no desenvolvimento do sujeito

e de seu poder de agir associado ao seu sistema de atividades (FOLCHER, RABARDEL, 2007).

A gênese instrumental ocorre a partir de duas dimensões: i) instrumentalização, orientada para o artefato e; ii) instrumentação, orientada para o sujeito. Ambos os processos contribuem para o desenvolvimento e evolução do instrumento (BÉGUIN, RABARDEL, 2000; BÉGUIN, 2007).

A instrumentação relaciona-se à construção e evolução dos esquemas de utilização e a incorporação de novos artefatos aos esquemas preexistentes. Esquemas de utilização são estruturas ativas que se adaptam de acordo com as mudanças nas situações. Considerando que os processos de assimilação e acomodação podem ser difíceis, Béguin e Rabardel (2000) afirmam que os esquemas sociais sejam analisados antes da geração de especificações, de modo que os desenvolvimentos servirão as necessidades dos usuários.

A instrumentalização baseia-se nos atributos e propriedades do artefato, incluindo a evolução e transformação deste. Relaciona-se a atribuição de funções, ampliando o uso inicialmente pretendido. Estes desenvolvimentos podem ser temporários ou permanentes e modificar uma ou mais propriedades do artefato.

Uma maneira de lidar com a instrumentalização seria desenvolver sistemas flexíveis para que o usuário os adapte às suas necessidades. No entanto, Béguin e Rabardel (2000) apontaram que pode ser difícil responsabilizar os usuários pela adaptação, pois nem sempre estes terão os recursos necessários, tornando as modificações difíceis de serem conduzidas. A análise dos artefatos sujeitos a instrumentalização não indica essencialmente soluções imediatas, mas sugere novas necessidades.

Nesta abordagem a concepção fornece ao usuário o artefato, que terá seu potencial revelado ao ser implementado na ação, quando os desenvolvimentos serão experimentados, validados ou rejeitados. O artefato poderá assumir novas funções frente a diversidade das situações e projetos que os usuários definem para si mesmos (BÉGUIN, RABARDEL, 2000).

Por meio das gêneses instrumentais, ao desenvolver novos recursos para o artefato a partir de sua singularidade, os usuários contribuem para a concepção dos artefatos, esquemas de utilização, usos e suas condições. A aproximação da atividade dos usuários e a dos projetistas estabelece coerência entre as formas dos artefatos e das atividades (FOLCHER, RABARDEL, 2007).

Nesse sentido, a concepção é entendida como um processo dialógico constituído a partir do intercâmbio de atividades entre os atores sociais. Este intercâmbio é

mediado por produções intermediárias e constitui a fundamentação sobre a qual o aprendizado mútuo entre projetistas e usuários pode ser construído para remodelar, enriquecer e modificar o objeto do desenvolvimento (BÉGUIN, 2003).

Assim, os princípios da abordagem mediada por instrumentos que contribuem para a concepção são: i) organizar o processo de concepção em torno dos esquemas sociais de utilização; ii) conceber artefatos que facilitem a continuidade do desenvolvimento pelo usuário e; iii) construir processos de concepção participativa em torno das gêneses instrumentais. Portanto concepção pressupõe a criação de espaços para o desenvolvimento da atividade, seja produtiva ou construtiva.

De acordo com Folcher e Rabardel (2007), um dos desafios para o desenvolvimento de metodologias de concepção antropocentradas é o de encontrar soluções para a convergência da concepção no uso (desenvolvimentos pelos usuários) e concepção para o uso (realizado pelos projetistas).

A concepção centrada no uso está enraizada nas dimensões extrínsecas da atividade do usuário, mas também em suas dimensões intrínsecas, particularmente a atividade construtiva dos sujeitos no uso (gênese instrumental) (BÉGUIN, 2003).

Cada projetista aprende com sua atividade e com as demais pessoas envolvidas na concepção, caracterizando um processo de aprendizagem mútua. A ação não se restringe a aplicação do conhecimento existente, mas o reconstrói. A aprendizagem também ocorre entre projetistas e usuários, permitindo que a inventividade de cada um seja aproveitada (BÉGUIN, 2003).