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CAPÍTULO 5: A INVESTIGAÇÃO DO CURRÍCULO NA ESCOLA E NA SALA

5.5 Práticas de ensino dos conteúdos do currículo: o que nos informam os dados

5.5.1 Os professores e os conteúdos históricos: concepções e processos de

5.5.1.1 Professora Flora

A professora Flora utiliza um roteiro prévio das aulas, mas o “atualiza” conforme o tema é desenvolvido. Assim, o tempo despendido nas diferentes atividades

e a extensão do conteúdo dependem das dinâmicas estabelecidas durante as aulas. Um tema inicialmente planejado para ter uma duração de oito horas-aulas, por exemplo, dependendo dos desdobramentos ocorridos durante as aulas, poderá se estender indefinidamente por um largo período.

Inquirida a respeito, a professora informou que

Quando iniciei meu trabalho como professora tinha muita preocupação com esse negócio de conteúdo, passar, de dar conta ali do que estava no planejamento. De uns dois anos para cá eu tenho me preocupado menos. Qual é o meu foco agora: o que ele pode levar de conhecimento. Qual o conceito que pode ser construído ali. Se ele (aluno) sair da escola com alguns conceitos construídos é muito melhor que enchê-lo de conteúdo e não ter passado nada.

Essa posição em relação aos conteúdos, que se estende ao ordenamento do ensino na perspectiva da chamada História temática, evidencia-se nas atividades de sala de aula pelo diálogo dela com os alunos, estimulados a participar da “construção” dos conceitos referentes ao tema. Isso ocorre por meio do levantamento de hipóteses a partir de uma fonte ou um evento, pela aproximação do tema ao cotidiano do bairro ou através de outros procedimentos como o raciocínio indutivo, que vai do particular ao geral.

No tema “Pré-História”, no 6ºano “C”, a professora recorreu ao método indutivo para que os alunos compreendessem os conceitos de temporalidades, fonte histórica e fato histórico. A descrição do roteiro das aulas de atividades desenvolvidas com os alunos informa sobre os procedimentos utilizados por ela para que eles se apropriassem dos conceitos históricos mencionados.

- Dia 30/07/2012:

Procedimento: Texto para o aluno copiar da lousa.

Título: a origem da humanidade: questões para levantamento de conhecimentos

prévios dos alunos.

- Dia 31/07/2012:

- Dia 02, 03, 06 e 07/08/2012:

Materiais didáticos: Cartazes com imagens de produtos que fazem parte do

cotidiano - produtos de alimentação, limpeza, relógio, calculadora, etc.

Procedimentos: Atividade em dupla: questões para sondagem dos

conhecimentos prévios dos alunos. Respostas no caderno dos alunos.

- Dia 09 e 10/08/2012:

Procedimentos: Problematização: muito tempo depois que a civilização e os

seres humanos deixaram de existir, a Terra recebe a visita de um alienígena (vindo de outro planeta). Como ele reagiria ao ver os restos das coisas que os humanos usavam no seu dia-a-dia? Seria possível, a partir desses objetos, reconstruir a História? Elaboração de hipóteses com os alunos.

- Dia 20 e 21/08/2012:

Procedimentos: Atividade em dupla – produção de texto sobre o problema

apresentado.

- Dia 23, 27 e 29/08/2012

Procedimentos: Problematização: Texto no caderno – A pré-História.

- Dia 04 e 05/09/2012

Recursos materiais: Dvd sobre a pré-História: Uhug – Na Serra da Capivara

(desenho animado). In: https://www.youtube.com/watch?v=GvwW0uRNQZ8  Outros recursos materiais: Papel sulfite, lápis.

Procedimentos: Exibição do vídeo para a classe, precedido de comentário;

formação de grupos; entrega para cada aluno de uma folha de sulfite; orientação sobre desenho referente ao vídeo com uma situação que considera mais significativa; orientação para os alunos colarem o desenho no caderno.

- Dia 11 e 12/09/2012:

Procedimentos: Perguntas aos alunos sobre os desenhos produzidos; anotações

na lousa sobre as suas falas; registro das anotações no caderno dos alunos.

- Dia13 e 14/09/2012:

Procedimentos: Apresentação de supostos fósseis – paus, pedras, desenhos,

tecidos de pano, apagador e giz. O professor separa os objetos em pré-História e História da atualidade e explica como chegou a saber porque são de tempos diferentes para classificar as fontes.

- Dia 17 e 19/09/2012:

Nessas aulas, após os alunos terem se manifestado sobre os desenhos e os supostos fósseis, a professora chamou a atenção para a importância dos registros para a reconstituição da pré-História. Informou aos alunos que esses registros serviram de prova para a História que estava nos livros, etc.

- Dia 21 e 24/09/2012:

Nessas aulas ocorreu a finalização da atividade com um texto na lousa e aula expositiva em que a professora reforçava a comparação entre os objetos utilizados pelos grupos humanos na pré-História e no presente.

- Dia 25/09/2012: Vídeo – “Niéde Guidon: o povo de 100 mil anos” traz um resumo sobre o Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, Piauí. In: https://www.youtube.com/watch?v=ytodtEwVkTA

A seqüência didática que tematiza a unidade de conteúdo “civilização grega”, ministrada no 6º ano “B”, entre os dias 04/11/2012 e 18/11/2012, também se caracterizou pela utilização de fontes diversificadas como vídeo e textos do livro

didático para fazer a abordagem do tema, conforme a descrição comentada da rotina das aulas, que apresento a seguir:

- Dia 04/11/12: Introdução ao tema “História da Grécia antiga”69 por meio da exibição do vídeo “Grécia antiga70”, desenho voltado para o público infanto-juvenil:

- Boa tarde. Vamos começar um novo assunto. Pra começar, vamos assistir a um vídeo que mostra os gregos. Os jogos olímpicos, os deuses e outras coisas. Pessoal: Vamos ver o vídeo. Todo mundo pára de conversar.

Enquanto falava, a professora solicitava aos alunos que se acomodassem e prestassem atenção. Iniciada a sessão, a maioria dos alunos permaneceu atenta. Somente alguns deles faziam comentários esporádicos a respeito da história que estavam assistindo. Terminada a exibição [do vídeo], ela escreveu na lousa um pequeno resumo da história apresentada no filme, após o qual, escreveu na lousa algumas palavras- chaves (termo que usou) e seu significado para os alunos copiarem, a fim de entenderem melhor a história narrada no filme e iniciarem o conteúdo, propriamente dito.

No dia 06/09/2012 houve a continuação da aula anterior. A professora prosseguiu com o tema “História da Grécia antiga”71. O assunto foi introduzido através de sondagem prévia dos conhecimentos dos alunos, mediante o seguinte diálogo:

- P: Boa tarde crianças. Chamada. Um aviso: Como não vamos usar o livro [didático] essa

semana não precisa trazer. Quando for para trazer o livro eu aviso. Na aula passada vocês viram o filme sobre a Grécia. Gostaram?

- A: Alguns alunos responderam afirmativamente, outros falaram em voz baixa que era chato... - P: Quem nasce na Grécia é o quê?

- A: Grego.

69

As unidades de conteúdo se subdividem em diferentes tópicos ou assuntos, abordados através de diferentes recursos.

70

Vídeo: Grécia antiga. In: https://www.youtube.com/watch?v=4YSC91SZ2DI

71

As unidades de conteúdo se subdividem em diferentes tópicos ou assuntos, abordados por meio de diferentes recursos.

- P: Quem nasce no Brasil é o quê? - A: Brasileiro.

- P: [começa a anotar na lousa as observações dos alunos, enquanto fala]. Ô pessoal. Eu quero

saber de vocês o que sabem sobre a civilização grega. Vocês viram o vídeo. Hoje existe um país chamado Grécia. Vocês ouviram falar desse país?

- A: Em silêncio...

- P: Aline... o que você mais reparou no vídeo da aula passada?

- A: Eles são diferentes da gente. Usam roupas diferentes. Tem casas engraçadas, redondas.... - P: Porque será que eles são diferentes, Aline?

- A: Não sei...acho que é porque eles são de outro lugar...

- P: Que lugar será esse? Anota na lousa Grécia antiga e abre um item chamado “vestuário”. - P: Quem mais reparou alguma coisa do vídeo?

- A: Eu vi que eles tinham muitos deuses. - P: Jonatham, como eram esses deuses? - A: Tipo, deus da guerra...Hércules...

- P: Anota na lousa: deuses gregos: Apolo. O que mais você reparou?

- A: (todos simultaneamente). Eles tinham jogos... corrida, competiam por prêmio..

- P: Ah! Eram os jogos olímpicos. O prêmio que vocês viram era um ramo de oliveira. Depois

eu explico o que é esse prêmio. Fiquem sabendo que eles não recebiam dinheiro. Isso foi falado no vídeo. Vocês lembram?

- A: Aparentam estar confusos. Não respondem.

- P: Vocês sabem dizer em que época a história se passa? - A: Antigamente...

- P: Faz muito ou pouco tempo? - A: Não conseguem responder.

- P: Faz bastante tempo. Muito tempo... Então: quantos anos Larissa? - A: Sei lá. Uns trezentos anos...

- P: O que vocês (classe) acham? A Larissa está certa? Ronaldo: Ajuda a Larissa. - A: Não sei...

- P: Não tem problema. Vamos ver tudo isso na próxima aula. Agora vou passar um texto na

lousa sobre os gregos. Todo mundo tem que copiar. Primeiro copiar as palavras que eu escrevi na lousa, depois, copiar o texto da lousa.

No dia 11/11/2012: continuação da unidade “História da Grécia antiga”. A professora solicitou aos alunos a leitura de um box do livro, p. 159, contendo um glossário de termos sobre os quais os alunos não estavam familiarizados. Em seguida, os orientou a fazerem um trabalho.

- Vocês vão fazer um trabalho de pesquisa em grupo sobre “os deuses gregos e sobre os jogos olímpicos”. Vão pesquisar em casa e trazer o que encontraram dia 16. Vamos fazer jogos de memória. De um lado do cartão vocês vão desenhar o deus e do outro lado o que eles têm de especial.

Em seguida, passou a verificar se os alunos tinham compreendido os termos contidos no glossário:

- Rafael. Fala uma palavra.

Em seguida a professora explicou o significado da palavra. A atividade transcorreu até o final da aula.

No dia 13/11/2012 continuou o tema sobre a “Grécia antiga”. A introdução do conteúdo da aula, nesse dia ocorreu por meio de dois textos curtos copiados na lousa, que não pertenciam aos livros didáticos usualmente utilizados. Os assuntos foram “A arte na Grécia”, e “Os gregos e a cidadania”. Enquanto os alunos copiavam os textos, a professora procedeu à verificação dos cadernos, aos quais atribuiu conceitos, lançados no Diário de Classe.

Do mesmo modo, no dia 14/11/2012 prosseguiu o trabalho sobre a “Grécia antiga”. Nesse dia, o conteúdo da aula foi a finalização do texto sobre “os gregos e a cidadania”, iniciado na aula anterior. Enquanto os alunos terminavam de copiar o texto,

a professora percorria a classe para verificar se eles estavam realmente copiando (o texto):

- Vou passar olhando o caderno.

Anotava no Diário de Classe se o aluno havia feito a atividade, e em seguida atribuía um conceito. A verificação dos cadernos correspondia à avaliação da aprendizagem do tema pelos alunos, justificada pela professora como “algo importante

e que os alunos esperavam, porque se [a avaliação] não fosse cobrada, eles iriam entender que o professor não se importava que eles não fizessem a atividade”.

A escolha do professor por uma “gramática fraca” para o ensino apresenta o risco de que algumas situações escapem do roteiro inicialmente previsto, como mostra a transcrição do registro gravado com as observações da professora Flora, a respeito da interpretação de uma fonte por uma aluna:

Quando estava trabalhando a História do bairro no 6º ano, pedi aos alunos para tirar algumas fotos da invasão para discutir com eles72. Na aula, quando abordei o assunto e começamos a discutir o conteúdo das fotos alguns alunos começaram a falar que aquilo de invadir terras era errado, que os invasores eram uns pilantras que se aproveitavam da situação para invadir o que não era deles, etc. Até que um aluno falou que não era bem assim, que o pai dele falou [para ele] que tinha comprado o terreno do tio, que tinha invadido, e que todos os vizinhos tinham passado pela mesma situação. Aí eles (alunos) foram percebendo que o bairro surgiu de uma invasão e que todos os que moravam ali, de alguma forma, haviam se apossado de terrenos, e que a situação de miséria mostrada nas fotos também deveria ter acontecido com os pais deles. Uma aluna, a Beatriz, começou a falar que eu não tinha o direito de mandar os alunos fotografar e usar as imagens na aula porque estava expondo a miséria das pessoas que moravam na invasão, até porque elas estudavam na escola. Fiquei surpresa porque percebi que isso revelou diferentes formas de ver o problema da ocupação do espaço na cidade. Como a discussão foi interessante, pedi para os alunos trazerem fotos das pessoas e do bairro na época da primeira invasão, quando ele (o bairro) foi formado. Ficamos um bom tempo

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Uma área de grande extensão contígua à área edificada do bairro foi ocupada em 2012 – ano em que essa pesquisa foi desenvolvida na escola – pelos integrantes do MTST-Movimento dos Trabalhadores Sem Terra urbano. Essa ocupação foi seguida do parcelamento da área em lotes que originaram um novo assentamento no bairro. O bairro onde a escola está localizada também se originou da “invasão” de terras de uma antiga fazenda desativada. Vide capítulo 3 desse estudo.

trabalhando esse conteúdo. Depois, os alunos puderam colocar os diferentes pontos de vista através da produção em grupo de um texto escrito sobre a atividade.

Em artigo em que explora o uso de imagens como fonte no ensino de História, a historiadora Antonia Terra, baseada nas proposições de Mikhail Bakhtin no campo da Lingüística, Filosofia e da Literatura, afirma existir uma “relação dialógica entre o autor e o leitor da obra e o outro sujeito que emite uma resposta (construída por aquele que lê, interpreta)” (1998, p. 98). Sendo assim, no contexto da sala de aula, a leitura de um quadro ou uma fotografia não se esgota na análise do seu conteúdo, pois, para além, é preciso discutir “a forma como o autor reconstrói o conteúdo e o seu enunciado (novo contexto), impingindo-lhe os múltiplos diálogos travados com outros autores, com sua época e outras épocas e, principalmente, a sua originalidade” (idem, p. 102).

Tomando como referência a reflexão de Antonia Terra é possível perceber, através do diálogo travado entre a professora Flora e seus alunos, que a análise das fotografias proporcionou interpretações diversas, de acordo com a perspectiva de leitura adotada por cada um dos sujeitos diante do objeto analisado.

Para a Beatriz, a exposição da precariedade das moradias mostrada pelas fotografias representava um desrespeito aos moradores da área “invadida”, pois expunha ao público a situação de miséria em que viviam os alunos da escola que habitavam essa área; para outros alunos, os ocupantes do terreno eram “invasores” e “pilantras” que “pegavam o que não era deles”; já para o aluno que teve o insight de relacionar a “invasão da área” à ocupação que originou o bairro onde a escola está localizada, duas décadas atrás, as imagens fotográficas lhe permitiram “rememorar” o passado arquivado nos escaninhos da memória familiar73.

Sem entrar no mérito das conclusões a que cada aluno chegou, importa discutir as formas de comunicação pedagógica e os procedimentos utilizados pela professora durante o desenvolvimento das aulas para trabalhar os conceitos históricos: inicialmente por meio do diálogo em que explorava as fotografias como fonte mobilizou os registros da memória imediata dos alunos, evocados por meio de argumentos orais; a discussão que se seguiu e as considerações referentes à temática foram registradas por meio da produção de textos escritos.

73

Podemos inferir que, na primeira etapa da aula, a professora trabalhou com um contexto em que a memória dos alunos interage com as memórias sociais relacionadas ao problema abordado: o binômio direito à propriedade da terra x direito à moradia. Questão recorrente na História do Brasil, as falas dos alunos repercutem as posições dos diversos setores da sociedade: manifestos da mídia, organizações sociais, partidos políticos, etc. Nesse sentido, a memória dos alunos, por meio do “texto oral” expressa o presente vivido, em que ecoam as vozes dos sujeitos e classes sociais que, no plano da realidade, mediante diferentes estratégias discursivas, disputam espaço na arena econômica, política e cultural. Os fragmentos da memória evocada pelo aluno no tempo presente possibilitam ao professor e aos alunos realizar um esforço de síntese entre o presente e o passado, completado pela seqüência de fotografias relacionadas à ocupação do bairro por “invasores”, nos idos dos anos 1980.

A segunda etapa marca a passagem da memória, evocada pela lembrança sobre o acontecido, para a fixação da memória, mediante a produção do texto escrito. Nessa etapa do processo de reconstrução do conhecimento histórico, ocorre uma operação de deslocamento em que a principal referência da memória passa a ser o documento escrito.

Essa operação metodológica pressupõe alguns riscos, a começar pela autoridade que o texto escrito possui na sociedade contemporânea em relação a outras formas de representação. Ao valorizar em demasia o escrito, agimos à maneira dos historiadores “positivistas”, que tomam o documento escrito como prova irrefutável da veracidade do conteúdo que apresenta, como se ele por si só tivesse um caráter “mágico” que o torna irrefutável e não como uma produção cujos sentidos muitas vezes nos escapam.

A opção do professor por um processo ensino-aprendizagem em que o roteiro da aula está sujeito a ser modificado em razão da gramática fraca nos processos de comunicação pedagógica, traz à tona a questão dos significados sociais implícitos à seleção dos conteúdos de ensino. Temas que supostamente pertenceriam a contextos diversos da escola, quando passam a integrar o rol dos conteúdos de ensino, são escolarizados. Em outras palavras, esses conteúdos passam por um processo de didatização, a fim de atender aos objetivos propostos pelo professor.

Por outro lado, como assinala o historiador Marcos Silva, ao refutarmos a concepção que imobiliza e exila a História em um tempo passado, também é preciso se

cercar de cautela para não tomar o presente como um tempo dado, em que se vive num presente contínuo sem referências do passado.