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CAPÍTULO 6: CONSIDERAÇÕES FINAIS

6.1 Qual currículo? Qual ensino?

O currículo é um campo que têm recebido cada vez maior atenção dos pesquisadores da educação e das autoridades educacionais, devido ao papel central que tem assumido nas reformas educacionais realizadas pelos estados e municípios brasileiros a partir da década de 1980. Nesse contexto, a produção sobre currículo abarca temas e problemas diversos, que vão desde estudos dos documentos curriculares produzidos pelos documentos estatais até aspectos relacionados à cultura e ao poder, expressando o sentido polissêmico desse objeto, de acordo com a perspectiva teórica adotada pelos autores dedicados a investigá-lo.

De acordo com Silva (2010),

a questão central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado (...) qual conhecimento ou saber é considerado importante ou válido ou essencial para merecer ser considerado parte do currículo (p. 14-15).

Entre outras funções, o currículo atua como uma das instâncias organizativas do cotidiano escolar, sendo uma importante referência na construção das práticas escolares: Baliza as intervenções do Estado no âmbito da escola por meio das políticas públicas direcionadas ao controle estrutural do sistema educacional, corporificado na legislação, nos programas de ensino, nos conteúdos programáticos oficiais e nas avaliações, bem como norteia a produção do material didático que serve de suporte ao trabalho docente entre os quais sobressai o livro didático, instrumento influente de intervenção no cotidiano escolar (CASSIANO, 2004).

A interferência estatal pode ser encontrada tanto na autoridade visível representada pelos funcionários de carreira e pelos comissionados em cargo de confiança da autoridade central quanto nos documentos em que o Estado busca construir representações a respeito de si mesmo. Essas representações podem ser encontradas em memorandos, normas, regulamentos e em termos de visita às escolas pelos supervisores escolares.

Nesse contexto, por sua função reguladora, o currículo tem função estratégica para o Estado buscar construir sua hegemonia no campo educacional por meio das políticas educacionais. Valorizadas pelos aparatos técnico-burocráticos encarregados de produzi- las, “as propostas curriculares ‘criam verdades’ ao oficializarem saberes e legitimarem posturas” (BARRETTO, 2012, p. 7).

Para Goodson (1997), o currículo escolar é um artefato cultural que atua como instância normatizadora dos discursos sobre o processo de escolarização, pelo qual o Estado determina quais conhecimentos devem ou não fazer parte do processo de ensino. A “imposição” de um determinado padrão normativo ao currículo escolar pelo Estado é permeada por fatores de ordem diversa, que vão da correlação de forças entre os diversos grupos envolvidos e ou contemplados na sua “fabricação”, à sua trajetória pelo complexo aparato institucional dos sistemas educativos, passando pela compreensão e ou adesão à proposta estatal por esses sujeitos.

Lopes (2006) considera o currículo uma seleção da cultura que se materializa como texto discursivo que circula por diversas esferas de influências. Amparada em Bernstein (1996; 2003), ela afirma que ao circular por diferentes espaços de produção, o texto curricular sofre sucessivas recontextualizações, de maneira a ser adequado às condições específicas dos espaços da cultura que percorre.

No âmbito da escola e da sala de aula, a recontextualização do conhecimento validado nas propostas curriculares oficiais tem a ver com o contexto da prática, em que as definições curriculares são recriadas e reinterpretadas por meio da transferência de sentidos do contexto da formulação para o contexto de realização. Nesse processo de transferência, o texto da proposta curricular é sujeito a deslizamentos interpretativos e à resistência dos educadores a essas propostas.

Dessa maneira, apesar do poder privilegiado que a esfera do governo possui na produção de sentidos nas políticas educacionais, as práticas e propostas desenvolvidas no espaço escolar são produções que extrapolam as instâncias governamentais, sendo que os processos de seleção e produção dos saberes não se restringem às propostas e práticas presentes no texto curricular oficial. Elas incluem diferentes processos de construção-reconstrução desses conhecimentos, condicionados por questões institucionais e particulares à unidade educativa, assim como pelas diferentes leituras, interpretações e reinterpretações feitas pelos sujeitos que interferem nesse processo.

Nas redes de ensino brasileiras, as políticas de currículo têm papel central em relação ao objetivo de “assegurar o direito de todos os alunos à educação” (GATTI,

BARRETTO e ANDRÉ, 2011, p. 42). Para isto, a população escolar precisa ter garantido não somente o acesso e a permanência na escola, mas também melhores oportunidades para aprender. Essa posição se inscreve no contexto das políticas educacionais calcadas no princípio da equidade, do qual decorre o direito à aprendizagem com qualidade social, construída mediante a participação dos atores sociais nas diferentes instâncias de decisão da vida pública e privada.

A ênfase das políticas públicas na aprendizagem busca romper com a assimetria entre os diversos níveis de produção-reprodução do currículo, à medida que flexibiliza e descentraliza as decisões relacionadas ao processo educativo. Nesse contexto, a escola e a comunidade, vistas como espaço de aprendizagem e formação passam a ter um papel central no desenvolvimento do currículo, o que em tese permite que a proposta educativa se aproxime das demandas do aluno.

Entretanto, se proclamam objetivos comuns quanto à formação e participação da comunidade escolar na vida social, as políticas de currículo se diferenciam em torno de algumas questões centrais: definir o que realmente conta como conhecimento mais valioso e que deve ser aprendido de forma elaborada; se esse conhecimento deve ser aprendido em um contexto disciplinar ou deve permear diferentes disciplinas; e, se esse conhecimento dialoga com os interesses, experiências e motivações dos alunos.

A(s) resposta(s) dada(s) a essas questões é que definirá(ão) a identidade e a maior ou menor legitimidade da proposta curricular pelos sujeitos e grupos envolvidos na sua implementação na unidade escolar. Em outros termos, os princípios de seleção e distribuição dos conteúdos no currículo, bem como sua articulação interna se relacionam à maior ou menor participação dos diferentes atores e grupos sociais da escola nas esferas de decisão sobre o que e como ensinar e ao modo de avaliar a aprendizagem.

As orientações e concepções trazidas pelas propostas curriculares servem para legitimar alguns conhecimentos em detrimento de outros, definirem contextos de aprendizagem e são determinantes na construção das subjetividades dos sujeitos que participam do cotidiano escolar. Entretanto, a implementação das propostas curriculares dependem do contexto de reprodução pelas diversas instâncias em que circula. Uma maior ou menor aceitação pelos sujeitos e grupos aos quais são destinadas as suas orientações e concepções pode fazer com que elas sejam bem ou mal sucedidas.

De acordo com Bernstein (1996), os princípios fundamentais que presidem os processos de seleção, organização e transmissão se relacionam aos códigos curriculares,

formas de classificação que definem se um currículo pode ser classificado como de coleção ou de integração, de acordo com a maior ou menor permeabilidade entre os conteúdos das disciplinas que compõem o currículo. Um currículo mais permeável – de classificação fraca ou integrando os conteúdos disciplinares – pressupõe fronteiras disciplinares maleáveis, enquanto um currículo de coleção pressupõe fronteiras disciplinares mais rígidas, em que as disciplinas mantêm sua autonomia no conjunto do currículo.

Se os princípios definidos no código curricular determinam a seleção do deve ser ensinado, a transmissão do conhecimento se relaciona à pedagogia, por meio da comunicação pedagógica entre o transmissor e o adquirente de um discurso pedagógico cujo “texto” estabelece uma relação de dominação entre estes. Em Bernstein, “texto” tem um sentido literal e ampliado, podendo designar aspectos individuais ou de conjunto. Para ele, o texto (substantivo), ao qual adiciona o adjetivo “privilegiante”, confere, direta ou indiretamente, privilégio à classe, ao gênero, etc. No campo educacional, o texto pedagógico privilegiante “pode designar o currículo dominante, a prática pedagógica dominante, mas também qualquer representação pedagógica, falada, escrita, visual, espacial ou expressa na postura ou na vestimenta” (1996, p. 243).

A avaliação determina o nível de realização dos processos de transmissão do código curricular expresso nos conteúdos, a maior ou menor aquisição pelos alunos desses conteúdos e os possíveis desdobramentos dos seus resultados no processo de ensino.

A perspectiva de Bernstein é a de que o currículo faz parte de um sistema de mensagem (discurso contido no texto curricular, mas não só nele), que forma o código do conhecimento educacional (de coleção e de integração) que circula pelos diferentes espaços sociais, e em sua trajetória sofre deslizamentos de sentidos, que possibilitam aos sujeitos e grupos localizados nesses espaços reinterpretá-lo e resignificá-lo. Isso ocorre mediante uma estratégia de deslocamento e realocação do “texto curricular” de uma matriz discursiva para outra. Durante esse processo, o texto é descontextualizado do seu contexto discursivo, e recontextualizado em um novo contexto, o que faz com que os conhecimentos de que são portadores adquiram novos sentidos.

Bernstein evidencia que a produção do currículo é um processo social cuja construção está intrinsecamente relacionada aos processos de recontextualização do conhecimento nos diferentes contextos sociais, condicionadas pelas relações de poder entre os indivíduos e grupos. São essas relações de poder, em que estão em jogo o status

da disciplina no âmbito acadêmico e escolar, a maior ou menor participação das entidades representativas dos educadores na formulação da política educacional, as disputas internas nos grupos de pares e as representações sociais que permeiam as práticas docentes, que definem a configuração do currículo.

Por isso, Bernstein afirma ser no processo de recontextualização, quando um texto muda de lugar, que se constitui um espaço para atuação da ideologia. Dessa forma, o campo recontextualizador pedagógico oficial, constituído basicamente pelo Estado nacional sob influência de todos os demais campos (internacional, acadêmico, cultural, de produção), produz o discurso pedagógico oficial (LOPES, 2002, p. 159).

O discurso pedagógico oficial atua como elemento regulativo das práticas escolares, à medida que estabelece princípios e regras para a apropriação do conhecimento a ser transmitido na escola, isto é, valida determinado código (conteúdo do currículo), bem como suas formas de transmissão (princípios pedagógicos).

Young (2011), chama a atenção para o que denomina “redução ou esvaziamento do conteúdo” (p. 609), nas reformas curriculares implementadas no período recente em países da Europa ocidental. A abordagem do currículo que norteia tal proposta, denominada pelo autor de contextual, propõe um arranjo curricular flexível, de modo a acolher temas e problemas relacionados ao cotidiano dos alunos.

Generosas quanto à intenção de buscar motivar os alunos que apresentam dificuldade em se apropriar do conhecimento nos moldes em que ele é usualmente apresentado no currículo de base disciplinar, colocando-os no centro do processo de aprendizagem, a abordagem contextual omite a finalidade própria do currículo: “o desenvolvimento intelectual dos estudantes” (p. 614), do qual derivam os conceitos subjacentes aos conteúdos, os processos pedagógicos utilizados pelos professores para o ensino desses conceitos e conteúdos, recontextualizados de acordo com o contexto específico a cada escola, comunidade escolar e conhecimento profissional dos professores.

Para Young, o currículo tem uma base social e histórica, sendo definido de acordo com os objetivos e finalidades atribuídos à escola em diferentes contextos. Assim, a formulação do currículo deve ser orientada por critérios de pertinência que hierarquizem os saberes socialmente relevantes e promovam a seleção dos conceitos que possam levar o aluno a extrapolar o senso comum. Esse currículo deve ter como

base o conhecimento especializado desenvolvido pela comunidade de pesquisadores, cabendo ao professor recontextualizá-lo no contexto específico da sua escola e dos seus alunos.

O autor também enfatiza o papel das disciplinas escolares no arranjo curricular, vistas por ele como elemento estabilizador do currículo mediante o intercâmbio de saberes entre os especialistas com a geração de novos conhecimentos no campo disciplinar; possibilita aos alunos e professores se apropriarem dos conceitos dessas disciplinas diferenciando esse saber dos saberes proporcionados pela vivência cotidiana; como geradora de identidade para professores e alunos. Sendo assim, o currículo de base disciplinar oferece melhores oportunidades de aprendizagem para os alunos “pois as disciplinas, com sua sequência, seu ritmo e sua seleção de conteúdos e atividades são o que mais nos levam, em educação, a oferecer aos estudantes acesso a um conhecimento confiável (p. 620)”.

A definição dada por Young ao papel formativo do currículo e das disciplinas escolares remete a um desafio geralmente tangenciado na abordagem das propostas curriculares: de a escola e os professores promoverem a articulação entre os conteúdos relacionados a aspectos da cultura local, a novas ferramentas de aprendizagem e a critérios de avaliação qualitativos aos conteúdos de base disciplinar, considerados pelo autor produções históricas e culturais socialmente pertinentes, considerando a escola espaço de convívio entre sujeitos com diferentes experiências e expectativas.

Em específico no ensino de História, as demandas dos diversos grupos sociais e minorias étnicas conquistou espaço na arena em que se disputa a primazia de definir qual conhecimento por sua relevância social deve estar no currículo escolar e como deve ser sua inserção em meio aos conteúdos já consagrados pela “tradição inventada”.

Questão crucial por seu caráter político, ela extrapola o campo pedagógico e se insere no âmbito das disputas pela memória entre a História oficial e a História dos sujeitos que em diferentes contextos reivindicaram seu espaço na construção do discurso histórico na esfera escolar. A redefinição dos espaços ocupados por esses sujeitos na memória educacional e no currículo de História da escola básica, a veiculação em alguns livros didáticos e orientações curriculares das estratégias e táticas empregadas por eles para resistir à dominação, nos fornecem exemplos claros de como o conhecimento disciplinar pode se tornar um “conhecimento poderoso”. Afinal, em qual lugar, a não ser na escola e por meio do trabalho do professor esse conhecimento pode ser veiculado?