• Nenhum resultado encontrado

A reconstrução histórica nas Orientações Curriculares e nas práticas docentes

CAPÍTULO 6: CONSIDERAÇÕES FINAIS

6.2 A reconstrução histórica nas Orientações Curriculares e nas práticas docentes

A seleção dos conteúdos nas Orientações Curriculares produzidas pela rede municipal de ensino de São Paulo revelou que eles estão organizados por temas que se articulam em torno de conceitos-chaves provenientes da História e das teorias de ensino-aprendizagem baseadas em Piaget e Vygotsky. Para que isso ocorra, esses conceitos são retirados do seu contexto discursivo original e realocados em outro contexto. Ao longo dessa trajetória ocorre um processo de recontextualização, através do qual o conceito sofre um deslizamento de sentidos, de modo a se adequar ao novo contexto discursivo em que está inserido.

No texto das Orientações Curriculares da SME, os conceitos históricos correspondem a dois níveis hierárquicos – conceitos gerais da área e Sugestões de temas – que correspondem respectivamente ao eixo temático e aos temas gerais da área, uma espécie de subtemas do primeiro. Assim, conceitos gerais como tempo histórico, cultura, natureza, sociedade e trabalho se desdobram em conceitos mais específicos em relação aos temas sugeridos para serem ensinados. O principal critério de seleção dos temas foi o de que ao planejar, o professor dê oportunidade ao estudante de “estabelecer relações entre o presente e o passado, o local onde vive e outros locais, e se situar historicamente em seu cotidiano (p. 62). A partir desse grande objetivo, a proposta sugere tomar como referência “estudos da cidade de São Paulo no presente e suas relações a partir de problemáticas históricas, com o passado dessa mesma região e de outros lugares do mundo” (Idem, p. 62).

O entendimento do que são os conteúdos escolares no documento oficial é bastante amplo, articulando “informações, conceitos, procedimentos (metodológicos),

valores e atitudes75 (p. 34). O pressuposto é que

as vivências escolares formam os alunos, tanto da perspectiva das informações a que ele tem acesso, como interfere em seu desenvolvimento cognitivo, forma seus valores e garante modelos de atitudes para serem gerenciadas por eles na vida social. Nesse processo, o professor tem um papel fundamental: é ele quem seleciona as informações, instiga formas de estabelecer relações sociais, políticas ou temporais, defende idéias (de

75

modo intencional ou não) e serve de exemplo para os comportamentos cotidianos (São Paulo: SME, 2007, p. 34).

Nessa perspectiva, ao mesmo tempo em que permite ao professor desfrutar de considerável margem de autonomia para selecionar os conteúdos que devem integrar o currículo, essa noção de conteúdo delimita previamente a seleção ao conjunto de conceitos históricos elencados nos eixos temáticos/temas propostos.

Ainda em relação à seleção dos conteúdos pelo professor, há de se observar que os conceitos históricos propostos requerem do professor um conhecimento bastante elaborado da discussão historiográfica recente, visto que boa parte desses conceitos foram apropriados de autores vinculados à História social e da terceira geração da Escola dos Annalles.

Sendo assim, o professor precisa fazer dois movimentos simultâneos ao realizar o planejamento de ensino: de um lado, estabelecer uma compreensão a respeito das teorias subjacentes aos conceitos que servem de referência para os recortes temáticos, de maneira que possa fazer a construção dos eixos temáticos e temas, disponibilizando- os em conteúdos. De outro lado, articular esses recortes às teorias de ensino- aprendizagem coerentes com os objetivos propostos ao ensino da disciplina em determinado ano/série, faixa etária, etapa cognitiva, entre outros. Ele também precisa selecionar materiais e fontes de informação compatíveis com os objetivos anunciados no planejamento.

De acordo com os relatos dos professores de História e da coordenadora pedagógica da escola em que ocorreu a pesquisa, o caderno com o texto das “Orientações Curriculares: Visão da área” circulou entre os educadores, tendo sido objeto de discussão durante as reuniões pedagógicas e JEIF durante o ano de 2008. Entretanto, por diferentes motivos – reorganização do projeto pedagógico, remoção de professores e mudanças na SME e DRE – a discussão do currículo proposto pela Secretaria Municipal de Educação foi retirada da pauta pedagógica nos anos seguintes.

Sendo assim, embora as professoras admitam conhecer a proposta curricular vigente, as observações do cotidiano de trabalho e a análise das entrevistas permitem inferir que os conceitos e noções presentes nas suas práticas foram apropriados das Orientações Curriculares, de textos curriculares que tiveram ampla divulgação no seio

do professorado, caso dos PCNs, mas também se verificou que há práticas remanescentes da própria concepção e abordagem do ensino de História provavelmente vivenciado pelas professoras durante o seu próprio período de estudantes.

A professora Flora admite que os PCNs e as Orientações Curriculares influenciam a sua proposta de trabalho, pois em linhas gerais concorda com os pressupostos contidos nesses documentos curriculares. Para ela,

Os PCNs estão de acordo com a minha formação na Faculdade. Apesar de ser [um curso em uma instituição] particular, havia muito investimento dos professores em trabalhar com História temática e com autores da História do cotidiano. Depois, quando comecei a dar aula na escola pública, vi que essa era a melhor forma de trabalhar com os alunos. Acho que eles se interessam mais [pelo estudo] porque discute uma realidade mais próxima deles.

Um dado que emerge da fala da professora diz respeito à influência exercida pela História social e Nova História na escolha dos referenciais históricos que constituíram os recortes temáticos que organizaram o seu trabalho com os alunos. Conforme o seu depoimento – apesar de não tê-las citado nominalmente – essas tendências historiográficas estiveram presentes na sua formação acadêmica, sendo possível inferir que a sua identificação com as Orientações Curriculares e os PCNs decorre da ênfase que esses documentos curriculares dão aos autores vinculados a essas tendências.

Na escola, esfera da produção do currículo real, as regras de transmissão do conhecimento escolar – a hierarquização dos saberes considerados mais ou menos importantes de serem ensinados e o compassamento na distribuição das atividades de ensino – faz que o discurso veiculado no texto curricular sofra transformações mediante um processo de pedagogização do conhecimento.

Ao acompanhar uma seqüência de aulas no 6º ano da professora Flora, em que ela se alongou além do tempo previsto no planejamento, perguntei se tinha a preocupação de trabalhar todo o conteúdo do planejamento feito no início do ano letivo. Ela manifestou seu ponto de vista:

Eu tinha muita preocupação com conteúdo passar, de dar conta do que estava no planejamento... De uns dois anos para cá eu tenho me preocupado menos. Qual é o meu foco agora: o que ele pode levar de conhecimento. Qual o conceito que pode ser construído ali. Se ele (aluno) sair dali com alguns conceitos construídos é muito melhor do que eu enchê-lo de conteúdo e não ter passado nada, né?

A postura da professora em relação aos conteúdos remete a uma questão central na organização do conhecimento no currículo: o modo como se dá a aprendizagem dos conceitos dos diferentes campos do conhecimento. Na perspectiva “construcionista”, expressa pela professora, a resposta a essa questão se reveste da maior importância, pois condicionará todo o processo subseqüente de seleção e distribuição do conhecimento histórico para os alunos.

Um dos principais problemas enfrentados pelos defensores da História temática está na discussão a respeito de quais conteúdos são considerados fundamentais para compor o currículo escolar, e quais devem ser abandonados ou colocados em segundo plano. Essencialmente política, essa discussão remete aos processos de construção da identidade e da memória histórica a ser transmitida às novas gerações. A esse respeito, é emblemático o processo de construção histórica da figura de Tiradentes. Em “A formação das Almas”, o historiador José Murilo de Carvalho procede a uma interessante análise sobre as razões que levaram à escolha do alferes Joaquim José da Silva Xavier como protótipo do herói republicano, durante o processo de construção do regime republicano no Brasil.

Segundo o autor:

“Na figura de Tiradentes todos podiam identificar-se, ele operava a unidade mística dos cidadãos, o sentimento de participação, de união em torno de um ideal, fosse ele a liberdade, a independência, ou a república. Era o totem cívico. Não antagonizava com ninguém, não dividia as pessoas e as classes sociais, não dividia o país, não separava o presente do passado nem do futuro. Pelo contrário, ligava a republica a independência e a projetava para o ideal de crescente liberdade futura. A liberdade ainda que tardia” (p. 68).

A revisão histórica operada em torno da figura de Tiradentes, de condenado à morte por traição ao Estado português à apropriação e transformação em símbolo do nacionalismo e patriotismo do ideário republicano o fixou nos manuais escolares e no

imaginário popular como modelo de virtude cívica e cristã, situação que perdura até os dias atuais, não obstante as transformações ocorridas na historiografia, na cultura e no ensino da História escolar76.

A discussão em torno dos conteúdos, portanto, é uma discussão sobre quais deles são importantes para a formação política dos cidadãos e da constituição da identidade nacional. Nesse sentido, cabe perguntar se ao selecionar e organizar os conteúdos, é possível e desejável fazer recortes temáticos e temporais que deixem, por exemplo, de considerar o papel desempenhado por Getúlio Vargas no processo político e econômico do período 1930- 1964?

Outro aspecto polêmico da História temática diz respeito

“à orientação temporal e interpretação global da História, bem como os problemas que ela coloca para os alunos diante dos exames com força de currículo, como o SAEB e o ENEM, e, sobretudo, as dificuldades para o estabelecimento de uma homogeneidade de assuntos e tratamento dentro dos sistemas de ensino (estaduais, por exemplo) nos quais se demanda um certo grau de homogeneidade (CERRI, 2009, p. 142-143).

Lembrando que na História temática os conceitos fazem sentido quando articulam as diversas temporalidades em torno do tema ou o inverso, a seleção dos conteúdos passa a ser uma operação complexa, em que estão em disputas projetos políticos e representações caras a determinados setores sociais.

Consideramos com Chervel (1990) que as disciplinas escolares são portadoras de uma identidade própria, desenvolvida ao longo da sua trajetória de constituição, e que essa identidade se baseia no grau e forma de especialização. Portanto, é a singularidade de cada disciplina que garante simultaneamente sua autonomia e articulação às outras disciplinas no interior do currículo. Por suposto, a seleção e organização dos conteúdos está subordinada simultaneamente aos conceitos próprios da disciplina que o professor se propõe a explorar nas atividades com os alunos e nos procedimentos comuns entre as diversas disciplinas que compõem o currículo. Outro pressuposto é que o ensino deve ultrapassar a simples memorização de datas, fatos e acontecimentos históricos, bem como a organização cronológica “tradicional”, em que os eventos se sucedem do passado remoto ao contemporâneo (passado recente).

76

Podemos aplicar essa análise à disputa da memória de Zumbi dos Palmares, como símbolo de afirmação da população brasileira afrodescendente.

Nas Orientações Curriculares essa premissa fica evidente pela ênfase dada à construção de conceitos históricos – alguns deles complexos - referenciados na historiografia, bem como às concepções teóricas centradas no aluno, em especial as baseadas em Piaget e Vygotsky. Essa concepção de ensino de História exige do professor conhecer tanto a produção acadêmica relacionada ao campo histórico quanto os processos cognitivos que permeiam a aquisição do conhecimento pelos alunos. Quanto a esses últimos, precisam chegar a construtos que vão além da simples descrição do fato histórico, exigindo análise, explicação, levantamento de evidências e hipóteses.

Outra questão pertinente à seleção dos conteúdos se refere aos critérios utilizados pelo professor para realizar os recortes temporais.

Para o historiador André Segal (s/ data), os professores dão pouca atenção ao conceito de tempo, que deveria ser priorizado, tendo em vista que a História se propõe, “por princípio, explicar a mudança social e a relação das sociedades com a duração” (p. 4). Nesse sentido, ele advoga

discernir a importância da abordagem conceitual, (...) e de sugerir que os ritmos e níveis de duração braudellianos – estrutura, conjuntura e acontecimento – possuem um grande valor pedagógico e que é possível incorporá-los na prática de ensino (p. 1).

De acordo com esse pressuposto, os conceitos relacionados ao tempo são pedagogicamente operatórios, mas para torná-los acessíveis aos alunos de diferentes idades e níveis de escolaridade é preciso simplificá-los, sistematizá-los, clarificá-los, de maneira que possam ser ensinados.

Para o autor, a ênfase nos conteúdos, sem que haja a definição clara do método para articular os conceitos às temporalidades (duração), resulta da pouca importância atribuída à didática da História pelos historiadores. Como eles são responsáveis pela formação acadêmica dos professores que ingressam na escola básica, a secundarização da didática nesse processo formativo repercute nos processos de ensino-aprendizagem na escola básica. Assim, os critérios com que o professor desse nível de ensino realiza os recortes dos conteúdos e organiza o currículo real obviamente têm a ver com a sua formação acadêmica, concepção de História e de aprendizagem, bem como com a

cultura própria à unidade escolar em que atua, além, é claro, do perfil do alunado e dos materiais didáticos que ele tem à sua disposição.

A professora Flora utiliza uma abordagem do ensino a partir de pressupostos aproximados ao modelo “braudelliano”, em que busca trabalhar os conceitos estruturantes dos conteúdos – fato histórico, evento histórico, por exemplo, a partir de fontes diversificadas e contextos familiares às vivências do aluno. No entanto, as fontes tendem a se limitar a ser uma forma de introdução ao tema estudado, e não um documento que deve ser interpretado e submetido à crítica, que deveria ser um dos principais objetivos do ensino de História na esfera escolar.

Como o conceito de tempo, na perspectiva da História temática de inspiração braudelliana é o mais importante “estruturante” da disciplina, é preciso articular os fatos históricos às ordens de duração (do acontecimento, da conjuntura e da estrutura) e aos instrumentos de análise histórica (os ritmos e os níveis de duração do tempo).

Desprovido dessas ferramentas conceituais, que possibilitariam realizar a crítica aos documentos históricos, bem como articular a História à perspectiva temporal em que o fato ou o tema estão inseridos, como o aluno conseguirá situar os fatos históricos com os conceitos implícitos aos ritmos e níveis de duração e articulá-los às problemáticas do presente?