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Propriedade e controle societário É comum pensar que quem exerce o poder

No documento Endereço para permuta: (páginas 48-51)

O poder de controle nas sociedades anônimas brasileiras

A) Propriedade e controle societário É comum pensar que quem exerce o poder

numa companhia é seu dono. O proprietário das riquezas produzidas por uma indústria ou comércio deve ser, em princípio, quem possui o poder de comando ou controle. Entretanto, o conceito de riqueza sofreu profundas mudan- ças no decorrer do século XX. Ser proprietário de grandes extensões de terras, de milhares de cabeças de gado ou de uma fábrica foi, em tempos passados, as principais exteriori- zações de poder e dinheiro.

Esse paradigma de riqueza começou a mudar, e os antigos bens que a representa- vam (todos eles materiais) começaram a fi car atrás de outras fontes, de caráter imaterial, tais como os contratos de software, trans- ferências de know-how, títulos de diversas espécies, ações, marcar, patentes de inven- ção, propriedade intelectual, etc. Basta pensar em Bill Gates, que se converteu no homem mais rico do mundo, não por possuir grandes fazendas ou inúmeros imóveis, mas sim por ser o pai do Windows, sistema operacional de computadores que mudou radicalmente a sociedade mundial.

As novas formas de riqueza (títulos de diversas espécies, transferência de know how etc.) apresentam uma característica comum, a abstração. Nenhum deles possui por si só um signifi cado claro ou completo; são termos representativos, relacionados a bens imate-

2 Por exemplo, o art. 33 da Lei de Sociedades Comerciais Argentina e o art. 2.359, 2, do Código Civil Italiano

utilizam o termo “infl uência dominante”. Para uma análise comparativa e evolutiva dos conceitos, veja-se: ALONSO, Felix Ruiz. “Holding” no Brasil. Revista de Direito Comercial. v. 10, São Paulo, p. 77-96. 1952.

3 Uma boa resenha bibliográfi ca pode ser consultada nas obras de: COMPARATO, Fabio Konder. O poder

de controle na sociedade anônima. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976; a mesma obra com atualização de Calixto Salomão Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2005; FERREIRA DE MACEDO, Ricardo. Controle não Societário. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; MANÓVIL, Rafael M., Grupos de Sociedades en el derecho comparado. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1998.

riais, intangíveis, frutos do avanço da ciência jurídica para acompanhar a nova realidade econômica. A realidade negocial pode ser facilmente dimensionada em termos econômi- cos, mas difi cilmente em termos jurídicos. O sistema clássico de propriedade, baseado no ideal do senhorio do titular sobre seus bens, demonstra-se insufi ciente para conceituar e delimitar os avanços econômicos do último século5 .

O conceito de propriedade necessitou transformar-se, tornando-se mais elástico6.

O que consideramos como principais atri- butos do direito de propriedade, isto é, seu caráter absoluto, exclusivo e irrevogável7,

não é aplicável às novas fontes de riquezas, ou, pelo menos, com o alcance que têm em relação aos bens materiais. Se, por exem- plo, analisamos o conceito de Propriedade Industrial, verifi camos que se aplicam a este as condições de absoluta e exclusiva, mas não podemos dizer o mesmo de seu caráter

irrevogável, visto que o direito de patente é eminentemente temporário8.

O mesmo acontece com a propriedade acionária. Com a evolução do direito, torna- se complexa, a ponto de que as condições ou atributos antes referidos não mais se adequam à realidade atual, isso, em virtude do enfraquecimento do caráter exclusivo da propriedade. Nos dias de hoje, o “proprietário” de ações não é necessariamente quem con- trola ou comanda a empresa.

A posse de ações não implica como coro- lário natural o exercício de poder na empre- sa. Existem várias categorias de acionistas sem poder de controle, como é o caso dos possuidores de obrigações negociáveis, cer- tifi cados de inversão e tantos outros papéis comerciais de sociedades. Assim, a própria técnica jurídica é a encarregada de outorgar a esses acionistas uma propriedade excluída da posse e da disposição dos bens da empresa, ou, como afi rma Comparato, uma proprieda-

5 Para uma análise mais detalhada, veja-se: DE AGUINIS, Control de Sociedades. Buenos Aires: Abeledo-Perrot,

1996, em especial o cap. I; GALGANO, Francesco. Historia del Derecho Comercial, Barcelona: Laia, 1980, capítulos II e III.

6 A evolução do conceito de propriedade foi muito bem exposta por Ihering, que, adiantando-se no tempo,

afi rmava: “Nuestra vida jurídica, se sabe, conoce numerosos derechos que el lenguaje ha extendido el término propiedad, aún cuando no tengan la cosa como objeto. Es así que se dice: propiedad literaria, propiedad de misivas, de letras de cambio, entendiendo por tal, no la propiedad del manuscrito, de las copias o del trozo de papel sobre el cual está escrita la carta o la letra de cambio, sino el derecho al contenido intelectual del papel, es decir, la disposición propia, independiente, exclusiva, concerniente a dicho papel, y por consiguiente, el derecho a interdecir su disposición a los demás (derecho de prohibición) que conforma el corolario indispensable. Es en este sentido, también, que pueden ser materia de propiedad ‘comercial’ los nombres y marcas de fábrica. Este lenguaje usual es criticado en la doctrina, y desde el punto de vista didáctico, el profesor hará bien en prevenir al alumno contra el peligro de considerar estos derechos como constitutivos de una propiedad en el sentido propio de la palabra. Pero una vez hecha esta observación, estimo que no hay nada que objetar contra el empleo de estas expresiones. Yo las tengo, por el contrario, por las más precisas y las más exactas y estoy convencido de que, precisamente por este motivo, el lenguaje no deberá dejarse apartar por ese escrúpulo jurídico, Pronto, yo pienso, esas expresiones serán usadas por la ciencia, y se asistirá al fenómeno que ya hemos visto se produjo en el Derecho Romano: las acciones y las formas que originariamente estaban referidas a ‘la cosa’ transladadas a los derechos mismos.

Todos los actos, todas las relaciones de derecho patrimonial han tenido originariamente por objeto la cosa; la cosa visible, palpable, formando el objeto primero y natural del Derecho y de toda disposición jurídica. Empero, desde este punto de partida material, el Derecho es elevado poco a poco a una concepción inmaterial, espiritualista, que coloca a las res incorporalis en la misma línea de la res corporalis. Las nociones y las palabras creadas para estas últimas, en adelante, en todas partes donde se pueda, son transladadas a los derechos. Así la noción de habere, realizado por la venta de una cosa se extiende a la venta de los créditos, de las sucesiones, del usufructo. Así, aun aquéllos de lacatio rei se extienden a la locación de la renta (es decir al ejercicios de los derechos). La noción de jus in re, ella misma se translada de la cosa a los derechos, el derecho de prenda y el usufructo son extendidos a los créditos y a los patrimonios enteros”. In: Actio Injuriam, des Lésions injurieuses en Droit Romain (et en Droit Français), traduit et annoté par O. De Meuleneare, Marescq, Paris, 1888, pag. 145. Citado e traduzido para o espanhol por DE AGUINIS, Control..., p. 9-10.

7 Sobre esses conceitos, veja-se: MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 16 ed. São Paulo,

1980, p. 88 e ss.

8 Sobre o conceito e alcance da Propriedade Industrial veja-se: MICHELLI DE ALMEIDA, Marcus Elidius.

Propriedade Industrial frente à concorrência desleal. In: Adalberto Simão Filho e Newton de Lucca (org.) Direito empresarial contemporâneo. 2 ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 111-141.

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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre • Ano IV • Número 7 • Janeiro - Junho de 2010 de estática, de mera fruição (COMPARATO,

2005, p. 41). Por sua vez, o management e a moderna tecnoestrutura societária criaram sua própria fonte de poder (acordo de acionistas,

leveraged, etc.), que não obedece ao sistema

organicista e democrático sob o qual se fun- daram as bases das legislações societárias. Assim, a propriedade da riqueza separou-se do controle da riqueza9. Se atualmente o po-

der de controle não mais se identifi ca com a propriedade, como distingui-lo?

Para o professor Comparato, querer colo- car o poder de controle dentro do direito de propriedade é uma herança do direito burguês e revolucionário francês, que visava suprimir o domínio eminente da terra – a propriedade estática – e tornar absoluto o domínio útil – a propriedade dinâmica – dos que efetivamente cultivavam a terra e possuíam os instrumentos de trabalho, convergindo num único direito de propriedade sobre o qual se edifi caram a maior parte das legislações pós-napoleô- nicas10, inclusive o Código Civil Brasileiro de

2002, quando estabelece:

Art. 1228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, de direito de reavê-la do poder de quem quer que injusta- mente a possua ou detenha.

Art. 1231. A propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário.

Ser proprietário de ações não signifi ca ter o poder de controle da companhia, mas um direito subjetivo para proteger sua proprieda- de, utilizando-o sempre em interesse próprio. Deve-se destacar que a proteção de seus di- reitos está intimamente vinculada com a ação

judicial para seu reconhecimento, o chamado “direito em pé de guerra” como geralmente é conhecido. É o próprio titular quem o exerce perante terceiros, valendo-se da proteção dada pela lei. Assim, o direito do proprietário integra-se com a ação judicial, e é por força dessa ação que o proprietário poderá conse- guir a reivindicação da propriedade acionária, contestar a ação de seu credor, executar o devedor, etc.11

Quem exerce o poder de controle está numa situação objetiva, constituída por direi- tos e deveres. Trata-se de uma faculdade de produzir efeitos jurídicos pela manifestação de vontade de seu titular e não da propriedade sobre a coisa. De forma mais taxativa: um “autêntico iusum super partes, comportando a suprema determinação da atividade empresa- rial e o consequente poder de disposição dos bens da empresa” (COMPARATO, 1976, p. 106). A faculdade de produzir determinados efeitos jurídicos, em virtude do poder de controle, deve ser exercida em benefício de outrem – neste caso, da empresa – ou, pelo menos, não exclusivamente por aquele que exerce o poder. Dessa forma, os confl itos são de interesses – e não confl itos surgidos do âmbito convencional – entre quem representa o poder e aquele que está representado. Para aquele que o exerce, existem deveres corre- latos, que servem para limitar ou restringir o poder. Como bem ensina De Aguinis, o poder de decidir sobre os bens de outrem é limitado pelo dever de não causar dano, de não enri- quecer sem justa causa. É uma questão de lealdade, que não gera vínculos jurídicos (DE AGUINIS, 1996, p. 29).

Ante a violação dos respectivos deveres por parte do titular do poder, existe a possi-

9 A frase, atribuída a Galgano, é citada por DE AGUINIS, Control..., p. 19.

10 Para esta afi rmação, o autor cita a Jean Carbonnier: CARBONNIER, Jean Droit Civil, vol. 3, 7 ed. Paris, 1973,

p. 88, apud COMPARATO, O poder..., p. 101.

11 Para o desenvolvimento destes conceitos, veja-se ROUBIER, Paul. Droits Subjetifs et Situations Juridiques.

bilidade da ação judicial daquele que tenha sofrido o dano. A intervenção jurisdicional so- mente aplicará a sanção se verifi cado o dano ou o enriquecimento sem causa, bem como a legitimidade do autor da pretensão. A principal diferença com a ação do titular do direito de propriedade reside no fato de não ser o poder de controle uma situação pré-determinada, “é a própria ação de responsabilidade que faz aparecer a situação jurídica. Não há direito anterior” (DE ANGUINIS, 1996, p. 31). Importa destacar que a divisão teórica entre a proprie- dade acionária e o poder de controle socie- tário apresenta-se, na prática, muitas vezes confundida em relações jurídicas complexas que misturam direitos, poderes, deveres, obrigações e prerrogativas de diversa índole.

Falar de “poder de controle” sugere, em primeiro lugar, a existência de um binômio: se existe controle é porque alguém exerce esse poder sobre outrem, neste caso, uma sociedade. A sociedade controlada é o sujeito passivo necessário sobre a qual se atua ou se exerce o poder. Em nenhum caso o controle se manifesta sobre pessoas, o que confi guraria um caso de escravidão. O exercício do poder não é absoluto, já que sempre estará limitado pelos deveres correlatos, pelas circunstâncias e também pela vontade de quem dispõe dele. O direito brasileiro, a partir da Lei das S.A. de 1976, qualifi ca e regulamenta o controle no âmbito societário, e precisamente sobre esta lei nos deteremos adiante.

No documento Endereço para permuta: (páginas 48-51)