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nulidade processual 5.3 O conflito entre o interesse individual e o

Capítulo 5.1. As implicações processuais das provas ilícitas por derivação

5.1.4. A prova ilícita pro societate

Quanto a admissibilidade da prova ilícita pro societate, discute-se a possibilidade de um membro do Ministério Público, no exercício do jus puniendi, poder utilizar uma prova expressamente vedada no exercício da acusação, com o fim de responsabilizar o infrator.

Nesse aspecto, quase toda a doutrina manifesta-se contrariamente, podendo-se citar: Ada Pellegrini Grinover296 e Antonio Magalhães Gomes Filho297. Raros são os autores que admitem o emprego da prova ilícita a favor da acusação;

293 CARNAÚBA, Maria Cecília Pontes. Prova ilícita, p. 82.

294 FREGAPANI, Guilherme Silva Barbosa. “Prova ilícita no direito pátrio e no direito comparado”, p. 233. 295 Também nesse sentido: MACHADO, Agapito. “Prova ilícita por derivação”, p. 507.

296 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual, p. 66.

parecem admiti-la: Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha298, Antônio Scarance Fernandes299 e Sérgio Demoro Hamilton300.

Guilherme Silva Barbosa Fregapani assim se manifesta:

É certo que, hoje, em nosso ordenamento jurídico, em hipótese alguma, a acusação se pode valer de provas obtidas por meios ilícitos. Em primeiro lugar, porque, neste conflito, o interesse individual prevalece sobre o interesse coletivo na apuração dos crimes, e a norma constitucional é clara nesse sentido. E, em segundo lugar, o aproveitamento dessas provas pelo Estado – leia-se titular da ação penal – constitui a utilização oficial de produto de crime, assim como o receptador, que adquire mercadoria que sabe ser roubada, conduta incompatível com a função de aplicar a lei e promover a justiça.301

Criticando a corrente que só admite prova ilícita em favor da defesa, argüi Barbosa Moreira o seguinte:

Se a defesa – à diferença da acusação – fica isenta do veto à utilização de provas ilegalmente obtidas, não será essa disparidade de tratamento incompatível com o princípio, também de nível constitucional, da igualdade das partes? Quiçá se responda que, bem vistas as coisas, é sempre mais cômoda a posição da acusação, porque os órgãos de repressão penal dispõem de maiores e melhores recursos que o réu. Em tal perspectiva, ao favorecer a atuação da defesa no campo probatório, não obstante posta em xeque a igualdade formal, se estará tratando de restabelecer entre as partes a igualdade substancial. O raciocínio é hábil e, em condições normais, dificilmente se contestará a premissa da superioridade de armas da acusação. Pode suceder, no entanto, que ela deixe de refletir a realidade em situações de expansão e fortalecimento da criminalidade organizada, como tantas que enfrentam as sociedades contemporâneas. É fora de dúvida que atualmente, no Brasil, certos traficantes de drogas estão muito mais bem armados que a polícia e, provavelmente, não lhes será mais difícil que a ela, nem lhes suscitará maiores escrúpulos, munir-se de provas por meios ilegais. Exemplo óbvio é da coação de testemunhas nas zonas controladas pelo narcotráfico: nem passa pela cabeça de ninguém a hipótese de que algum morador da área declare à polícia, ou em juízo, algo diferente do que lhe houver ordenado o ‘poderoso chefão’ local.302

A maioria da doutrina, como menciona Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça303, sustenta a posição adotada pelo legislador constituinte, por meio da qual há expressa proibição quanto à admissibilidade destas provas. Outros fundamentos têm corroborado esse entendimento, sustentando que se tratam de valores positivados no capítulo dos Direitos e Garantias Constitucionais, não

298 ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal, pp. 64-5.

299 FERNANDES, Antônio Scarance. “Lei de Interceptação Telefônica”, pp. 51-2.

300 HAMILTON, Sergio Demoro. “As provas ilícitas, a teoria da proporcionalidade e a autofagia do direito”, p.

64.

301 FREGAPANI, Guilherme Silva Barbosa. “Prova ilícita no direito pátrio e no direito comparado”, p. 232. 302 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “A constituição e as provas ilicitamente adquiridas”, pp. 12-3. 303 MENDONÇA, Rachel Pinheiro de Andrade. Provas ilícitas: limites à licitude probatória, p. 35.

podendo o próprio Estado infringir esta limitação e adentrar na esfera individual protegida.

Não obstante essa posição aparentemente se coadune com a ordem jurídica instaurada, não há dúvida em afirmar que, em certos casos, estaria autorizado o Ministério Público, titular do jus puniendi, a postular pela condenação com base em provas obtidas ilicitamente, podendo o órgão do Poder Judiciário admiti-la, desde que obedecidos os critérios justificadores da aplicação da teoria da proporcionalidade.

Tal posicionamento se baseia na prudência do juiz, que apenas a utilizará quando não houver outro meio de prova, ou quando ocorrer uma situação excepcional, que autorize a admissão da prova ilícita pro societate, com o fim de proteger a ordem pública e a paz na sociedade.

Quando a intenção é proteger a sociedade como um todo, não se tem em mente, a proteção de um ente abstrato, mas ao contrário, a cada um dos membros da coletividade individualmente. Portanto, quando se admite como forma de convencimento uma prova inicialmente contaminada pelo vício da ilicitude, se busca proteger a todos e a cada um dos jurisdicionados em particular que poderão vir a sofrer as conseqüências da atividade delituosa.

Rachel Pinheiro de Andrade Mendonça304 ressalta que há igualdade em ambos os pólos da relação processual, uma vez que, em última análise, se defenderiam os interesses dos indivíduos, personalizada ou conjuntamente, buscando a mesma proteção estatal.

Com a admissão das provas ilícitas pro societate, visa-se resguardar a segurança jurídica, sendo, em certos casos, tão importante quanto a liberdade. Toda essa contraposição de valores resolve-se na aplicação reiterada da teoria da proporcionalidade, que expressará o sentimento de justiça.

Entendemos que se aplica, mais uma vez, a teoria da proporcionalidade em que se confere ao magistrado prudente, o poder de avaliar o bem jurídico mais relevante no caso concreto.

O Superior Tribunal de Justiça tem admitido o emprego da prova ilícita

pro societate. No julgamento do Habeas Corpus n° 3.982-RJ (RSTJ 82/321), admitiu

como válida, para embasar a acusação, prova ilicitamente obtida (no caso, interceptação telefônica autorizada antes da Lei n° 9.296, de 1996).305

A própria Constituição tratou com extrema severidade os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e crimes hediondos (art. 5°, XLII), para combatê-los e, em vista do direito violado no caso concreto (por exemplo, a prova obtida com violação da intimidade), parece-nos admissível, com base na teoria da proporcionalidade, a utilização de prova ilícita pro societate, principalmente se tais crimes forem executados por organizações criminosas. Nesses casos, afasta-se a proibição das provas ilícitas em nome da segurança da coletividade, que também é direito fundamental e o Estado tem o dever constitucional de assegurar.