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nulidade processual 5.3 O conflito entre o interesse individual e o

Capítulo 5.1. As implicações processuais das provas ilícitas por derivação

5.2. A questão da nulidade processual

Supondo que a prova, embora inadmissível, venha a ser admitida e produzida, ou até mesmo valorada, quais seriam as conseqüências dessa vulneração à regra constitucional?

A Constituição Federal de 1988 explicitou a vedação às provas ilícitas no art. 5°, inciso LVI, considerando-as inadmissíveis no processo, não tendo definido qual a conseqüência decorrente da introdução da prova vedada no processo.

Alcançou-se, assim, pela via constitucional, uma conseqüência que não se poderia presumir a partir do sistema processual penal vigente, que sequer ensejaria a cominação de nulidade absoluta para as provas consideradas inadmissíveis. O mínimo que se poderia afirmar é que, portanto, o ingresso da prova ilícita no

processo, contra a Constituição, importa na nulidade absoluta dessas provas, que não podem ser tomadas como fundamento por nenhuma decisão judicial.306

A produção em juízo da prova ilícita não deve ser admitida. Não se trata de problema de nulidade, mas de não aceitação da prova. Deve-se raciocinar como se a prova não tivesse sido realizada, sendo a solução mais correta o seu desentranhamento dos autos.

Não há no Código de Processo Penal norma genérica a respeito do desentranhamento da prova ilícita. Aplica-se, por interpretação extensiva, o artigo 145, inciso IV, que determina o desentranhamento de documento considerado falso.

As interceptações telefônicas clandestinas constituem, no sistema processual penal, provas documentais e, se obtidas por meios ilícitos, devem ser também desentranhadas.

O mesmo dispositivo serve, por analogia, para o desentranhamento de outras provas obtidas por meios ilícitos.

Verifica-se que o sistema de nulidade do Código de Processo Penal ainda é um sistema taxativo, pelo qual o ato só é nulo quando a lei assim expressamente o declarar (nulla nullitas sine lege).

Os arts. 564, inciso IV, do Código de Processo Penal e 500, inciso IV do Código de Processo Penal Militar, parecem abrigar as nulidades, quando consideram o ato nulo, pela omissão de uma formalidade que constitua elemento essencial do ato ou do processo. Mas essa nulidade dificilmente poderá ser aplicada ao tema das provas ilícitas, não só porque a expressão ‘formalidade essencial do ato ou do processo’ não se adequa ao caso, como ainda porque se trata de nulidade relativa, de nulidade que só será declarada desde que argüida e que o ato não tenha atingido o seu fim. O art. 572, inciso IV, do Código de Processo Penal, referindo-se expressamente ao inciso IV, do art. 564, mostra que se trata de nulidade sanável, o que não soluciona o problema das provas ilícitas.307

A ilicitude original da prova transmite-se, por repercussão, a outros dados probatórios que nela se apoiem, dela derivem ou nela encontrem o seu fundamento

306 GRINOVER, Ada Pellegrini. “Provas ilícitas”, p. 31. 307 Id., ibid., p. 37.

causal (na doutrina portuguesa: efeito-à-distância), contaminando outros elementos probatórios eventualmente coligidos, oriundos direta ou indiretamente de conduta inaceitável.308

Trata-se de situação não-inédita no nosso ordenamento jurídico, como podemos observar no sistema das nulidades no direito processual penal, que adotou o princípio da causalidade, aliás, como reza o artigo 573, § 1° do Código de Processo Penal: a nulidade de um ato, uma vez declarada, causará a dos atos que

dele diretamente dependam ou sejam conseqüência, contaminando as provas em si

mesmas lícitas, mas produzidas a partir de outra ilegalmente obtida.

A ausência de formalidades legais exigidas para perfeição e aproveitamento dos atos probatórios somente ensejará a declaração de sua nulidade se resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa, este é o princípio geral do art. 563 do Código de Processo Penal.

A nulidade do ato probatório é uma sanção de natureza processual, no entanto, as conseqüências das provas ilícitas não se resumem a isso, visto que podem ensejar a qualquer tempo a revisão criminal (art. 621, incisos II e III) e uma justa indenização, nos termos do art. 630 e parágrafos, todos do Código de Processo Penal.309

Analisando a teoria da tipicidade310 - inicialmente concebida em relação ao Direito Penal, de onde é possível extrair que a conduta que não se insere no tipo é juridicamente inexistente - as provas ilícitas, porque consideradas inadmissíveis pela Constituição, não são por esta tomadas como provas. Trata-se de não-ato, não- prova, de um nada jurídico, que as remete à categoria da inexistência jurídica.

A conseqüência da inexistência jurídica consiste em que o ato, carecendo dos elementos que o caracterizariam como ato processual, é ineficaz desde a sua origem. As provas ilícitas, portanto, devem ser consideradas como inexistentes e totalmente ineficazes, retroagindo sua ineficácia ao momento do seu nascimento.

308 ANDRADE, Roque Jeronimo. “Flagrante preparado no âmbito das provas ilícitas”, p. 46.

309 COLUCCI, Maria da Glória Lins da Silva e SILVA, Maria Regina Caffaro. “Provas ilícitas no processo

penal”, p. 248.

310 AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Provas ilícitas: interpretações telefônicas e gravações clandestinas, p.

Por isso, a prova ilícita não surte efeitos, em qualquer momento processual. Caso venha a ser admitida e produzida no processo, e até valorada pela sentença, o Tribunal, em grau de recurso, deve: desconsiderá-la, como de resto já determinou o Supremo Tribunal Federal o seu desentranhamento dos autos. Noutra decisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que a prova ilícita resultante de busca e apreensão efetuada sem mandado judicial, com invasão de domicílio, acarreta a absolvição do réu, por inexistência da prova do fato.311

Em outros casos, se a sentença transitada em julgado baseou-se na prova ilícita, poderá ser decretada em revisão criminal a sua nulidade, em face da inexistência da prova. Em se tratando de habeas corpus, o Tribunal deverá anular a sentença, indicando as provas viciadas e determinando o seu desentranhamento, o mesmo se aplicando à sentença de pronúncia.

No procedimento do júri, as provas ilícitas que tiverem ingressado no processo, mas ainda não foram levadas em consideração na pronúncia, o Presidente determinará o seu desentranhamento. No caso de haver referência a elas em plenário, com violação ao contraditório previsto no art. 475 do Código de Processo Penal, o juiz deverá dissolver o Conselho de Sentença.

A Constituição preocupa-se com o momento da admissibilidade, pretendendo claramente impedir os momentos sucessivos de introdução e valoração da prova ilícita. Mas suponhamos que a prova, embora considerada inadmissível pela Constituição, venha a ser admitida no processo. E que a prova ingresse no processo, vulnerando a regra constitucional. De duas, uma: ou partimos para a idéia de que nesse caso a atipicidade constitucional acarreta, como conseqüência, a nulidade absoluta e, portanto, no plano processual, a prova admitida contra

constitutionem será nula e nula será a sentença que nela se fundar, ou então, numa

interpretação mais consentânea com a norma constitucional, firmamos o

311 Decisões publicadas em RTJ 122/ 47 e RT 670/273. No julgamento do HC nº 69.912-0, publicado no DJ de

26.11.1993, acima referido, o Min. Sepúlveda Pertence assim se manifestou: "A tese subjacente ao parecer da Procuradoria- Geral é que a admissão da prova vedada não gerará a nulidade do processo, se a condenação não estiver fundada exclusivamente nela: bastaria, como está expresso no parecer do Dr. Mardem Costa Pinto, a referência da sentença à existência de outras provas para, pelo menos na via de controle de legalidade do habeas

corpus, já não ser possível, da evidência da inclusão, no processo, de uma prova ilícita, extrair a nulidade da

condenação. Data venia, levada às últimas conseqüências, o entendimento tolheria inteiramente a eficácia da garantia constitucional. Por isso, de minha parte, não iria além de conceder que a admissão da prova ilícita só não induz nulidade, quando irrelevante por seu objeto ou, então, quando se pudesse afirmar seguramente que outras provas, colhidas independentemente da existência daquela proibida, bastariam à condenação (...)”.

entendimento de que a Lei Maior, ao considerar a prova inadmissível, não a considera prova, tem-na como “não prova”, como prova inexistente juridicamente. Nesse caso será simplesmente desconsiderada.

Assim como a noção de nulidade, a de admissibilidade (ou de inadmissibilidade) está referida à questão da validade e eficácia dos atos processuais: a atividade processual deve ser realizada segundo modelos traçados pelo legislador, cuja observância constitui a melhor forma de assegurar a participação dos interessados e a correção dos provimentos jurisdicionais. Por isso, somente a perfeição do ato, confere-lhe aptidão para produzir efeitos; ao contrário, a desconformidade leva à invalidade e ineficácia.312 Ao contrário da nulidade, que visa retirar os efeitos de um ato irregularmente praticado, a inadmissibilidade atua de forma antecipada, impedindo o ingresso no processo do ato irregular.313

Surgindo uma prova ilícita, esta deverá ser expurgada do processo de modo que não venha a desvirtuar sua finalidade e, consequentemente, considerando que o Código de Processo Penal adotou o sistema da instrumentalidade das formas aliado ao princípio da causalidade, o magistrado sempre que declarar a nulidade ou inexistência de uma prova adquirida ou produzida em tais condições também tem o dever de assinalar quais os atos processuais que foram atingidos.314

De fato, além de ilógico, também não é razoável que se admita como válidos outros atos decorrentes da prova ilicitamente produzida. Assim, como o que é nulo

não pode produzir efeito (quod nullum este, nullus efectu producit), a nulidade do ato contamina os atos que dele dependam ou sejam conseqüência, de acordo com o princípio da causalidade, ocorrendo o que se tem denominado de nulidade derivada.315

Antônio Magalhães Gomes Filho assenta as diferenças entre a nulidade e a inadmissibilidade nos seguintes termos:

Enquanto a nulidade é pronunciada num julgamento posterior à realização do ato, no qual se reconhece sua irregularidade e, conseqüentemente, a invalidade e ineficácia, a admissibilidade (ou inadmissibilidade) decorre de uma apreciação feita antecipadamente, impedindo que a irregularidade se consume ... Sob um outro

312 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As

nulidades no processo penal, pp. 18-20.

313 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. “Provas ilícitas e recurso extraordinário”, p. 33. 314 PRADO, Robervani Pierin do. “Provas ilícitas no processo penal”, p. 215.

ângulo, a declaração de nulidade não é automática e o ato praticado irregularmente pode mesmo vir a ser considerado válido e eficaz, se não ocorrentes determinados pressupostos legais para sua invalidação (v.g. a inexistência de prejuízo, a ocorrência de alguma convalidação); já a inadmissibilidade, por operar em momento anterior à pratica ou ao ingresso do ato no processo, impede a produção de qualquer efeito válido, aproximando-se mais da idéia de inexistência (jurídica) do ato vedado pela lei.316

Dessa forma, nos posicionamos pela inexistência da prova, e não a sua nulidade.