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2. RISCO, RISCO EPIDEMIOLÓGICO, RISCO FARMACOLÓGICO, RISCO SEGUNDO AS CIÊNCIAS SOCIAIS E SOCIEDADE DE RISCO

2.3. A QUANTIFICAÇÃO DO RISCO

O conceito de risco compreende assim múltiplos aspectos, mas é importante acentuar que a noção de risco está associada à sua quantificação, pois:

alicerça-se numa abordagem e um entendimento racionalista da realidade que pressupõem o controlo da incerteza através do desenvolvimento de procedimentos estatísticos e de probabilidades matemáticas. Efectivamente é possível considerar que esta categoria assume uma grande centralidade no contexto da modernidade, pois a crescente industrialização e criação de instituições de controlo e regulação social tornaram imperativa a necessidade de conhecimentos objectivos e o desenvolvimento do pensamento racional (Raposo, 2009:748).

E, ainda, Helder Raposo observa: “não só se verificou a transformação do conceito de risco em termos do seu significado − estando agora vinculado a uma conotação negativa que decorre da ideia de perigo (Gabe, 2004) −, como também se revelou assinalável a crescente capacidade técnica de ‘domesticação do acaso’, fortemente ancorada na expansão dos desenvolvimentos do cálculo probabilístico.”

O conceito de risco não está dissociado da concepção de incerteza, de acordo com Raposo (2009:750, apud Nunes, 2002:291) uma vez que

a distinção entre estas categorias constitui um desafio sério dado que numa situação de risco é possível desenvolver acções preventivas, ao passo que numa situação caracterizada pela incerteza se deve remeter para uma acção de tipo cautelar, de forma a evitar abordagens simplificadas com efeitos potencialmente contraproducentes.

E que a proliferação do conceito de risco evidente nas ciências da saúde, particularmente a biomedicina, representa um indicador da própria cientificidade característica deste campo: “os procedimentos de avaliação e gestão do risco que se têm desenvolvido traduzem uma forma

de apropriação da incerteza através de um conhecimento pericial caracterizado por procedimentos de cálculo baseados na ideia de probabilidade” (Raposo, 2009: 750).

A atuação de um prescritor, ao utilizar-se de produtos farmacêuticos sem efetividade demonstrada ultrapassa os limites da lógica com base no cálculo numérico (a medicina com base em provas) e influi no campo da incerteza, ao se querer alcançar algum propósito válido para o paciente, aumentando-lhe, por exemplo, a sobrevivência (sempre mensurada) que há poucos anos é considerada junto da qualidade de vida, igualmente mensurada.

A consequência é uma situação ética muito complexa: é válido prolongar a vida de um idoso com câncer, submetendo-o a um tratamento que estatisticamente não tem resultado aceitável? Um procedimento neste caso é consequente à “interpretação das incertezas como riscos na sua conversão em probabilidades ” (Raposo, 2009:750). A cautela seria mais aconselhável do que uma intervenção sem demonstração de alguma validade, atitude que não é corriqueira na prática clínica − médica ou cirúrgica − em nosso meio.

O tema será discorrido adiante sob a designação de Prescrição Sadia (ou Prudente) sob o ângulo da intervenção farmacológica.

Raposo (2009:750) enfatiza, ao comentar a mudança dos antigos propósitos da prática médica, que valorizava a singularidade do doente, a tendência de crescente quantificação na medicina:

Assim, perante os progressos exponenciais das ciências biomédicas, torna-se relevante perceber que estão em causa inversões fundamentais na própria medicina clínica e na sua relação privilegiada com o doente individual, pois são cada vez mais voláteis as tensões entre o critério clínico e o critério estatístico decorrente da assinalada tendência da quantificação.

Em suma, segundo Raposo (2009:750 apud Nunes 2002:290):

a biomedicina adoptou o conceito de risco num sentido muito próximo do

que propõe a Royal Society britânica, segundo a qual o risco é “a

probabilidade de que um acontecimento adverso particular ocorra durante um dado período de tempo ou em resultado de um desafio particular. Enquanto probabilidade no sentido em que a entende a teoria estatística, o risco obedece a todas as leis formais da combinação de probabilidades”.

No consagrado Dicionário de Epidemiologia da Associação Internacional de Epidemiologia confirma-se a observação acima (Porta, 2008) e os conceitos advindos da noção de risco, particularmente os fatores de risco:

Risco é a probabilidade de um evento ocorrer, isto é, que um indivíduo tornar-se-á doente ou morrerá em um período de tempo declarado ou em certa idade. Também é um termo não técnico que compreende uma variedade de medidas de probabilidade de um resultado geralmente adverso (ver Probabilidade).

Probabilidade:

1. Probabilidade de Frequência: o limite de frequência relativa de um evento em uma sequência de N ensaios ao acaso como N aproximações ao infinito, isto é, o limite do Número de ocorrências de um evento N .

Fator de risco: (sinônimo, indicador de risco)

1. Um aspecto do comportamento pessoal ou modo de vida, uma exposição ao meio ambiente, ou um característico nato ou herdado que, com base em provas científicas, é conhecido estar associado com afecção(ões) significante(s) relacionadas à saúde. Na era de causas múltiplas do século 20, um sinônimo de ação determinante no plano individual.

2. Um atributo ou exposição que está associado com o aumento da probabilidade de um resultado específico, tal como a ocorrência de uma doença. Não necessariamente um fator causal, pode ser um marcador de risco.

3. Um determinante que pode ser modificado por intervenção, reduzindo assim a probabilidade de ocorrência de doença ou outros resultados. Ele pode ser referido como um fator de risco modificável, e logicamente deve ser a causa da doença.

A intensificação da quantificação da medicina e já extensa difusão da ideia de fatores de risco não só entre profissionais de saúde, mas nas camadas mais escolarizadas da população permitiu que fosse gerada “uma variedade de estratégias que procuram identificar, tratar administrar ou gerir indivíduos, grupos ou lugares em que o risco se considera elevado” (Rose, 2012:155). O autor assinala que “o termo ‘risco’ neste contexto denota um conjunto de modos de pensar e atuar que carregam cálculos a respeito de futuros prováveis, efetuáveis no presente, seguidos de intervenções no presente com o fim de controlar esse futuro possível”.

A prática médica convencida deste enfoque epidemiológico se estrutura para que seja designado “cada indivíduo a uma categoria de risco aplicando um algoritmo constituído pelos fatores de risco” (Rose, 2012:155).

E assim perfis de risco são desenvolvidos a partir da construção de escalas e índices, que são utilizados para identificar indivíduos compreendidos em grupos com graus de risco significantemente maiores que a média, com propósito de execução de intervenções preventivas.

Frise-se quanto é difícil a atribuição de riscos e assim a determinação de quem poderá desenvolver um agravo ou doença. Segundo Rothman et al (2008:12):

Independentemente se interpretamos a probabilidade como frequência relativa ou grau de certeza, a atribuição de riscos iguais reflete meramente o agrupamento particular. Em nossa ignorância, o melhor que podemos fazer na avaliação de risco é classificar as pessoas de acordo com indicadores de risco medidos e então atribuir depois o risco médio observado em uma classe para pessoas dentro da classe. Como o conhecimento ou a especificação de indicadores de risco adicionais se expande, as estimações de risco atribuído a pessoas partirão da média de acordo com a existência ou ausência de outros fatores que predizem o resultado.

A quantificação do risco obedece naturalmente a valores numéricos segundo classificação distribuída, por exemplo, a de Sir Kenneth Calman (Misselbrook e Armstrong, 2002:2), que usa os seguintes termos padrão para os tipos de risco: negligenciável = probabilidade abaixo de 1 em um 1.000.000;

mínimo = menor que 1 em 100.000; muito baixo = menor que 1 em 10.000; baixo = menor que 1 em 1.000;

moderado = menor que 1 em 100; e alto = probabilidade maior que 1 em 100.

Ainda de acordo com Misselbrook e Armstrong (2002):

a esperança de Calman é a de que se todos falamos mais acerca de risco, podemos eventualmente atingir um vocabulário compartilhado. Isto pode parecer imaginário, salvo para o fato de que a avaliação de risco provavelmente se torna um crescente aspecto de todas as nossas vidas quando nos movemos para a “sociedade de risco” do século 21.

Ou seja, a designação enunciada por Beck, citado por eles.

A proposta de Calman pela qual os riscos ficam estabelecidos em categorias, sempre arbitrárias (por que achar que um risco seria moderado quando a probabilidade de ocorrência fosse menor que 1 em 100?), representa um modo de ver da chamada gerência de risco que tem grande influência na atuação médica. A propósito, o início desta percepção foi apontada

por Peter L. Bernstein, em 1996, segundo Kielland (s.d.), que a considerou a origem catalítica da história moderna:

A ideia revolucionária que define o limite entre a modernidade e o passado é o domínio sobre o risco: a noção de que o futuro é mais do que um capricho dos deuses e que os homens e as mulheres não são passivos diante da natureza.

Os riscos são compreendidos por médicos e demais profissionais da saúde como algo associado a característicos que levam alguém à maior probabilidade de ficar doente, que são denominadas fatores de risco. Existem fatores de risco que são incontestáveis como o hábito de fumar, consumo de bebidas alcóolicas em excesso, dirigir sem cinto de segurança, não realizar atividade sexual de modo seguro, nutrir-se de modo irregular e não fazer exercícios físicos com frequência.

A avaliação de quantificação de fatores de risco teve início há cinquenta anos por meio de algoritmo de escore de risco desenvolvido em estudo de coorte na cidade de Framingham, nos Estados Unidos, conhecido como escore de doença cardiovascular de Framingham, com último aperfeiçoamento em 2008, mas antes surgiram escores de doença cardíaca coronária (1998), modelos de acidentes vasculares cerebrais (1994) e a avaliação sistemática de risco coronário (SCORE – Systematic Coronary Risk Evaluation), em 2003 (Bouillon K et al, 2013).

De modo geral, estes algoritmos envolvem a pontuação de fatores de risco cardiovascular (colesterol total, elevado colesterol – lipoproteína de baixa densidade [LDL – low-density lipoprotein], baixo colesterol – lipoproteína de alta densidade [HDL – high-density lipoprotein] e pressão arterial sistólica), associados à existência de afecções que aumentam o risco como o diabete ou complicações de elevação da pressão arterial como retinopatia, junto de fatores de risco como a condição de ser fumante, além de considerar a idade e o sexo (Bouillon K et al, 2013).

Os autores concluem que além da utilidade clínica dos escores de risco cardiovasculares mencionados na predição do risco de doença e morte cardiovascular, este estudo de coorte prospectivo sugere que escores também podem ajudar a identificar pessoas de meia-idade que se beneficiariam de intervenções planejadas para prevenir fragilidade, e assim teriam utilidade na predição de fragilidade (Bouillon K et al, 2013).

Embora possa existir esta utilidade, ela parece estar adstrita à confirmação de indivíduos com elevado risco cardiovascular, mas podem induzir o consumo intensivo de fármacos ao se quantificar o risco por meio de acessórios eletrônicos considerados instrumentos de trabalho como calculadoras de risco cardiovascular que supostamente predizem um risco cardiovascular importante em um período de quatro anos, a exemplo da Advance Risk Engine (http://www.advanceriskengine.com), desenvolvida no The George Institute for Global Health.

À simples digitação de dados como: sexo, a idade em que foi diagnosticado com diabetes, a duração conhecida do diabete, se tem hipertensão arterial tratada, o valor da pressão arterial sistólica, o teor de hemoglobina glicada, se tem fibrilação atrial ou retinopatia, o teor de albuminúria, o valor do colesterol que não seja de lipoproteína de alta densidade, a tela da calculadora mostra o risco que se poderá ter nos próximos quatro anos.

Trata-se de refinamento com base matemática da possibilidade de risco que pode não ter correspondência com a vida real das pessoas, mas induziria aqueles que valorizam este tipo de instrumento (médico e usuário de serviço de saúde) na tomada de decisões sob a influência da quantificação exagerada do risco.

Komesaroff (2003:44) comenta que:

Uma prática clínica ética requer boa comunicação quanto aos riscos de tratamento que causam dano. Uma vez que profissionais de saúde e pacientes têm diferentes percepções de risco, é importante discutir o risco sob expressão que o paciente pode compreender. Mesmo se um paciente deseja assumir riscos, os profissionais de saúde têm uma obrigação ética de não recomendar tratamentos inapropriados que levem a riscos. Dar aos pacientes tempo para refletir sobre o quê uma decisão particular significa para eles é parte importante da informação comunicada acerca de riscos.

E ainda menciona os fatores pessoais, os quais podem estar ligados a valores, que afetam as percepções individuais de risco:

• Fatores demográficos, tais como idade e gênero; • Educação e experiências anteriores;

• Natureza do risco, suas consequências e opções;

• Descrição do risco nos meios de comunicação e na cultura popular; • Disponibilidade de informação;

• O grau de confiança da pessoa nas autoridades de regulação;

Como se percebe, o prescritor ter atitude ética na comunicação de risco é um processo complexo que, apesar de poder ser ser definido por ele em termos matemáticos precisos, por exemplo, a probabilidade da ocorrência de um evento adverso específico, tal definição é interpretada pelo paciente com muita elevada variedade no contexto clínico.