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Questões preliminares acerca do Orçamento Participativo

No documento Orçamento participativo (páginas 92-95)

No capítulo II verificou-se que o tema acerca da descentralização da gestão pública e da participação, apesar de muito antigo, é atual, polêmico e fundamental à questão do processo de democratização do Estado. No presente, a análise será de uma prática orçamentária praticada no Estado do Rio Grande do Sul, mais especificamente no município de Porto Alegre, denominada de Orçamento Participativo.

A implementação do processo do Orçamento Participativo na cidade de Porto Alegre/RS não foi fácil, pois, diante da tradição de, historicamente, o Estado brasileiro possuir duas formas de relacionamento político-administrativo, ambas de caráter centralizado, uma fundada na coerção, na imposição da vontade do governante, e outra alicerçada na política de cooperação e do favor, numa prática de natureza patemalista-clientelista, majoritariamente ocupada por interesses privados, as cidades, diante da crescente urbanização do mundo, encontravam-se sobrecarregadas de problemas.

O processo de Orçamento Participativo enfatiza uma terceira via de relacionamento político-administrativo, devendo-se perguntar acerca do seu caráter e de suas bases de alicerce para entendê-lo como uma esfera pública de co-gestão que pretende ir além das funções e da prática política do tradicional Estado representativo.

A trajetória da implementação e consolidação desta nova prática orçamentária mantém respingos da existência de uma tradição do Estado brasileiro de desprestigiar as instâncias de

representação, com a centralização da ação de grupos de pressão, os quais acabam obtendo dos poderes públicos decisões que favorecem seus interesses.

Como refere Luciano Fedozzi, por vários anos os movimentos de bairro tinham travado intensas lutas com governos municipais por demandas isoladas e específicas para obtenção de saneamento, pavimentação, transporte coletivo e outros investimentos. O atendimento destas demandas por parte da administração dependia menos de sua importância intrínseca do que da capacidade política das associações em pressionar o governo.1

Ao longo de 1989, líderes comunitários das diversas regiões do município de Porto Alegre/RS começaram a discutir com o governo as linhas básicas de um processo de Orçamento Participativo e a traçar um primeiro plano de investimentos. Após muita discussão, movimento e governo negociaram a divisão da cidade em 16 regiões, conforme mapa constante no Anexo XV, escolhidas mediante critérios sócio-espaciais, de acordo com a tradição organizada dos movimentos de moradores da cidade, com o que se verificou uma grande disparidade na proporcionalidade populacional. Na região das ilhas, por exemplo, havia uma população carente de 5.163, enquanto na região central, com uma população de 306.595 habitantes, 7.586 eram carentes. A divisão persiste até hoje, com pequenas modificações. Em assembléias abertas, realizadas em cada uma dessas regiões, os cidadãos puderam então apresentar suas demandas por investimentos.

Segundo Tarso Genro e Ubiratan de Souza, ocorreram 16 assembléias, nas quais a população participou elegendo os primeiros delegados de orçamento na proporção de 1 para cada 5 presentes e sendo formada uma comissão para, em conjunto com a Secretaria de Planejamento Municipal, responsável pelo processo orçamentário, traçar um plano de investimentos para o próximo ano. Essa comissão foi o embrião do que mais tarde se tom ou o Conselho do Orçamento Participativo.2

No primeiro ano do Orçamento Participativo, Tarso Genro e Ubiratan de Souza informam que ocorreu uma grande afluência das comunidades mais pobres da população em

1 FEDOZZI, Luciano. Orçamento Participativo e esfera pública: elementos para um debate conceituai. In: FISCHER, Nilton Bueno; MOLL, Jaqueline (Orgs) Por uma nova esfera pública: a experiência do Orçamento Participativo.Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, pp. 37-38.

2 GENRO, Tarso; SOUZA, Ubiratan de. Orçamento Participativo: a experiência de Porto Alegre. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997, p.23.

todas as plenárias populares, pois "mediante sua participação direta teriam a missão de decidir

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sobre investimentos que eram demandados havia décadas".

Esclarecem ainda os autores que, "como todos queriam tudo ao mesmo tempo",4 foi aprovado um plano de investimentos que previa simplesmente uma lista de reivindicações da população, sem qualquer definição de prioridades e que comprometeria a receita de vários anos.

O governo, porém, não tinha recursos nem projetos. Era preciso, antes, fazer uma profunda reforma tributária, gerar uma poupança local (por meio dos próprios impostos locais) e assim potencializar o governo da cidade para responder às demandas e criar um nível mínimo de credibilidade. Era necessário dialogar com a cidade, criar condições políticas para que os cidadãos acreditassem nos novos métodos de governar, os quais, pela primeira vez na história da cidade, incluiriam os cidadãos comuns.5

Somente em 1990, segundo ano da experiência, foram implementadas reformas fiscais e administrativas que começaram a gerar recursos para investimentos. "Tais modificações tiveram como conseqüência o aumento da capacidade arrecadadora do município (arrecadação própria) que subiu gradativamente de 25% da receita total (arrecadados no primeiro ano, 1989) para algo em tomo de 51% da receita total (em 1996)".6

Dessa maneira, sob pressão dos movimentos populares, a administração começou a investir nas regiões pobres da periferia, mas como o plano de investimento não definiu prioridades, os órgãos executores das obras de infra-estrutura decidiam quais demandas seriam atendidas, a partir de seus critérios políticos e técnicos.

A temática da descentralização do poder não é nova, pois há aproximadamente três décadas a sociologia tem-se fundamentado teoricamente num movimento de revisão conceituai. Este movimento emerge da crítica ao centralismo e autoritarismo, fazendo com que ocorra um deslocamento de conceitos: desenvolvimento, classes sociais, planejamento, Estado do Bem-Estar, sendo substituídos para movimentos sociais, autonomia, poder local, sociedade civil, democracia participativa e descentralização, fazendo com que o processo de democratização seja um dos temas centrais da agenda política nacional. Neste contexto, viu-se

J GENRO, Tarso e SOUZA, Ubiratan. Op. cit., p. 24. 4 Id. Ibid., p. 24.

5 Id. Ibid., pp. 24/25. 6 Id. Ibid., p. 24.

no capítulo II que jamais as temáticas poder local e descentralização estiveram tão valorizadas, principalmente com a Constituição Federal de 1988, que revigorou o papel das comunas através da sua tendência descentralizadora.7

Para Sônia Laranjeira, hoje pode-se falar em cidadão-coletivo, já que a ordem é mover-se no social, participar do social, avançando no estado de consciência social que é o cerne do coletivo, com o fim de que, com o exercício da participação se alcance saber e poder.8

Outrossim, outro veio de investigação possível diz respeito à característica cada vez mais individual da sociedade moderna, o que dificulta sobremaneira o êxito das iniciativas que pressupõem lastro coletivo.

No documento Orçamento participativo (páginas 92-95)