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Questões referentes ao ónus da prova

A GARANTIA DE UM PROCEDIMENTO JUSTO NO DIREITO EUROPEU DE ASILO

6. Questões referentes ao ónus da prova

Uma das questões mais complexas referentes aos procedimentos para atribuição do estatuto de refugiado ou de titular de proteção subsidiária diz respeito ao ónus da prova dos factos alegados, nomeadamente no que toca à existência de receio fundado de sujeição a atos de perseguição96. De facto, nem sempre existe prova documental para provar esse receio. Nesse

sentido, alguns autores defendem que a regra geral de distribuição do ónus da prova não se deve aplicar aos pedidos de asilo97.

De acordo com a jurisprudência do TEDH, o ónus da prova pertence, à partida, ao requerente de proteção internacional98. No entanto, em causa de dúvida, o Estado deve socorrer-se de

todos os elementos necessários para a esclarecer99.

No que toca aos elementos de prova relevantes, o TEDH tem adoptado uma perspectiva abrangente. As avaliações devem ser baseadas na análise de todas as leis, factos, documentos e provas relevantes e atualizados, incluindo as informações relativas à situação no país de 96 Sobre este ponto v., em detalhe, UNCHR Report, Beyond Proof, Credibility Assessment in EU Asylum Systems, Maio de 2013.

97 B. Gorlick, “Common Burdens and Standards: Legal Elements in Assessing Claims to Refugee Status”, International Journal of Refugee Law, n.º15, 2003, p. 362.

98 Dec. de 23/10/2012, F.A.K. c. Holanda, queixa n.º 30112/09. 99 Dec. de 09/03/2010, R.C. c. Suécia, queixa n.º 41827/07.

origem. As ofensas que uma pessoa possa ter sofrido no passado podem ser um indício de risco de novas ofensas no futuro100. Os relatórios de ONGs, do Alto Comissariado das NU para

os Refugiados, ou outros elementos que reportem a situação no país de origem devem ser também tidos em conta. Neste contexto merece especial referência a decisão no caso Singh e

outros c. Bélgica101, em que o Tribunal Europeu censurou o facto de as autoridades não terem tido em conta os documentos que acompanhavam um pedido de asilo apresentado por cidadãos afegãos, não tendo procedido a um exame minucioso e rigoroso dos pedidos de asilo. Concluiu, assim, ter existido violação do art. 13.º da CEDH em conjunto com o art. 3.º. O TEDH tem também desenvolvido orientações sobre os documentos que podem ser considerados fiáveis para a análise das condições do país, referindo que os mesmos podem não sê-lo quando as fontes de informação forem desconhecidas e as conclusões incompatíveis com outras informações credíveis102. No que toca a eventuais faltas de informação ou quando existam

motivos para duvidar da veracidade das declarações do requerente, este deve fornecer uma explicação satisfatória103.

Esta orientação corresponde grosso modo ao entendimento do Alto Comissariado das NU para os Refugiados, o qual refere que pode ser dado o “benefício da dúvida” ao requerente, desde que se verifiquem algumas condições104. Desde logo, o requerente tem de ter feito um esforço

genuíno para demonstrar os factos alegados, bem como ter providenciado uma explicação satisfatória para não lograr ter provado alguns dos factos em causa. Por outro lado, os relatos têm de se demonstrar coerentes, o requerente ter pedido asilo o mais cedo possível e o mesmo ser considerado, de forma geral, credível. Aponta-se ainda a necessidade de não se aplicar os fatores mencionados de forma estrita. De acordo com esta última indicação, o art. 10.º, n.º1 da Diretiva Procedimentos determina que os Estados-Membros devem assegurar que um pedido de proteção internacional não seja indeferido apenas pelo facto de não ter sido imediatamente apresentado.

A Diretiva Qualificação estabelece duas regras em matéria de distribuição do ónus da prova. Em primeiro lugar, os Estados-Membros podem considerar, por princípio, ser dever do requerente provar a existência de riscos de perseguição / maus tratos no país de origem. Mas é dever do Estado cooperar com o requerente no que toca a determinar os elementos

100 Dec. de 09/03/2010, no caso R.C. c. Suécia, queixa n.º 41827/07. 101 Dec. de 02/10/2012, Singh e outros c. Bélgica, queixa n.º 33210/11.

102 Dec. de 28/06/2011, Sufi e Elmi c. Reino Unido, queixa n.º 8319/07 e 11449/07. 103 Dec. de 21/06/2005, Matsiukhina e Matsiukhin c. Suécia, queixa n.º 31260/04. 104 UNCHR, Handbook, para. 203-204.

relevantes de um pedido de asilo. Fala-se, neste sentido, de um “dever partilhado”105. O TJUE

já teve oportunidade de esclarecer que este dever significa, em termos práticos, que, se por qualquer motivo, as provas apresentadas pelo requerente não forem completas, atualizadas ou relevantes, as autoridades devem cooperar ativamente com ele, de forma a recolher todas as provas pertinentes106. Este entendimento reflete a convicção de que os Estados-Membros

estão melhor posicionados para aceder a determinados tipos de informação. Neste sentido, o art. 10.º, n.º 3 da Diretiva Procedimentos determina que os Estados obtenham informações precisas e atualizadas junto de várias fontes, como o Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo (EASO), o ACNUR e organizações de direitos humanos pertinentes, quer sobre a situação dos países de origem dos requerentes quer ainda sobre os países por onde estes tenham passado. Devem ainda pedir aconselhamento a peritos em matérias específicas, como questões médicas, culturais, religiosas ou de género.

Do direito da UE deriva também o entendimento, pois, de que as várias autoridades – quer administrativas, quer judiciais -, devem ter em conta todos os elementos disponíveis. Também aqui se adota o entendimento de que o facto de uma pessoa ter sofrido perseguições no passado pode ser um forte indício de futuros riscos em caso de regresso.

Por fim, os factos relevantes para a análise devem ser os existentes ou os conhecidos à data da apreciação do pedido. Assim, nos termos do art. 46.º, n.º3 da Diretiva Procedimentos, no caso de recurso perante um órgão jurisdicional, o mesmo deve proceder a uma análise da matéria de facto e de direito respeitante ao período em que o recurso é decidido.

7. Conclusões

A garantia adjetiva de um procedimento – ou processo - justo é a primeira garantia de efetivação do direito de asilo. Sem a mesma, as pessoas carecidas de proteção internacional nunca poderão exercer o seu mais básico direito de pedir asilo, e as autoridades nunca saberão da necessidade de conceder proteção internacional a quem dela careça.

A jurisprudência do TJUE tem insistido reiteradamente na necessidade de efetivação das garantias analisadas. Pode dizer-se, inclusivamente, que um Estado-Membro que não respeite as mesmas não pode ser considerado um “país seguro”, muito embora exista um dever geral de os Estados-Membros atuarem como tal107. Da jurisprudência de Luxemburgo decorre que,

105 Pieter Boeles, Maarten de Heijer, Gerrie Lodder & Kees Wouters, op. cit., p. 315. 106 Acórdão de 22/11/2012, M.M., proc. n.º C-277/11.

107 Pieter Boeles, Maarten de Heijer, Gerrie Lodder & Kees Wouters, op. cit., p. 260.

nos casos em que existe sistemática violação das regras relativas aos procedimentos de análise dos pedidos de asilo, os demais Estados-Membros devem abster-se de enviar requerentes para esses Estados. Isso pode implicar a não aplicação do Regulamento Dublin, que, inter alia, requer a transferência de requerentes de asilo para os Estados-Membros responsáveis por analisar os respetivos de proteção internacional, quando deduzam esse pedido num Estado não competente108. Essa jurisprudência foi inaugurada com a decisão no caso N.S. e M.E, na

qual o TJUE afirmou que os Estados-Membros não podiam transferir um requerente de asilo para um outro Estado onde existam falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento, de forma que as mesmas pudessem constituir uma violação do art. 4.º da CDFUE109. Ora, um contexto de pressão migratória, como aquele com que os Estados-

Membros se confrontaram em 2015 – e com a qual se podem continuar a confrontar – não pode resultar em diminuição das garantias mencionadas. O próprio TEDH já teve oportunidade de o sublinhar, no já citado caso Khlaifia110, em que os juízes de Estrasburgo referiram estarem

cientes de que na ilha italiana de Lampedusa ocorria uma grave situação de afluxo maciço de migrantes, que levara inclusivamente a Itália a declarar estado de urgência, existindo várias dificuldades de ordem logística e organizacional. No entanto, esses fatores não desoneravam as autoridades do dever de providenciar condições humanas e dignas para acolher as pessoas. O mesmo raciocínio deverá valer para as obrigações procedimentais mínimas, como a proibição de decisões automáticas ou coletivas, a necessidade de audiência ou de recurso da decisão. A forte pressão migratória pode, porém, requerer adaptações à tramitação normal dos procedimentos. Ela clama, deste logo, por uma repartição de esforços entre todos os Estados-Membros, sob pena de se deixar os Estados com fronteiras externas impossibilitados de cumprir as suas obrigações de respeito pelos direitos procedimentais.

108 V. decisão no caso N.S. and M.E., Acórdão de 21/12/2011, casos C-411/10 e 493/10. V. ainda a decisão do TEDH no caso M.S.S. c. Bélgica e Grécia, decisão de 21/01/2011, queixa n. 30696/09. Sobre este último v., em particular, Marc Bossuyt, op. cit., p. 216.

109 V. Ac. de 21/12/2011, N.S. e M.E., proc. n.º C-411/10 e C-493/10. Esta decisão foi emanada após a prolação da Dec. do TEDH de 21/01/2011, M.S.S. c. Bélgica e Grécia, queixa n.º 30696/09, em que os juízes de Estrasburgo decidiram que as condições de vida e de detenção dos requerentes de asilo na Grécia violavam o art. 3.º da CEDH, pelo que a Bélgica, ao reenviar requerentes de asilo para a Grécia, ainda que em cumprimento das normas da UE, violava também essa norma.

110 Khlaifia e outros c. Itália, queixa n.º 16483/12, de 01/09/2015. Para mais detalhes sobre este ponto, v. Ana Rita Gil, op. cit.

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