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PARTE I ENQUADRAMENTO TEÓRICO

4. A CONTABILIDADE PÚBLICA EM PORTUGAL

4.1. A reforma da contabilidade pública em Portugal: abordagem geral

4.1.2. Da RAFE à aprovação do POCP

De acordo com Matos de Carvalho e Bernardes (2000:2), até à reforma da contabilidade pública dos anos 90, a contabilidade tinha como principal objectivo o cumprimento da legalidade “...a exiguidade dos meios levava a que o controlo se centrasse na legalidade.”. O principal propósito da contabilidade pública, da altura, era servir o Governo no que respeita ao controlo orçamental tendo como aspectos centrais demonstrar a execução do orçamento e o cumprimento da lei (Jorge, 2003; Fernandes e Carvalho, s/d).

Na tentativa de alterar o sistema português de contabilidade pública até então vigente, a partir dos anos 90, iniciou-se um processo de reforma da Administração Pública, que o aproximou ao sistema utilizado pelas empresas privadas, permitindo a introdução de novos sistemas contabilísticos nas diferentes entidades públicas. Com a publicação da Lei de Bases de Contabilidade Pública (Lei n.º 8/90 de 20 de Fevereiro) estabeleceram-se as bases para a criação de um novo regime da administração financeira do Estado, o que viria a permitir a criação do POCP finalmente aprovado em 1997. Foram também publicados outros diplomas legais no âmbito do novo regime:

- Lei n.º 6/91 de 20 de Fevereiro - LEO81; - DL n.º 155/92 de 28 de Julho.

A Lei n.º 8/90 de 20 de Fevereiro tem como objectivo definir o novo regime financeiro dos serviços e organismos da administração central82, as regras de execução orçamental e o controlo e a contabilização das receitas e despesas públicas83.

A referida lei, pressupõe a uniformização dos requisitos contabilísticos84, nomeadamente no domínio da contabilidade de compromissos ou de encargos assumidos (com base no sistema digráfico semelhante ao usado nas empresas privadas) e de uma contabilidade de caixa, mais adequada a uma correcta administração dos recursos financeiros (art.º 15.º). A definição da contabilidade de compromissos85 veio possibilitar uma previsão da tesouraria antecipada e mais rigorosa, bem como uma análise mais cuidada das necessidades de financiamento solicitadas pelos diferentes serviços (Tavares e Branco, 1998).

No seguimento desta reforma é publicada, um ano mais tarde, a Lei n.º 6/91 de 20 de Fevereiro86, que desenvolve os novos princípios orçamentais (anualidade, unidade e universalidade, equilíbrio, não compensação, não consignação, especificação, instrumentos de gestão e publicidade) e métodos de gestão orçamental, através da atribuição da responsabilidade aos dirigentes dos serviços pela execução orçamental e previsão da criação de uma nova Conta Geral do Estado, fazendo coincidir a sua estrutura com a do OE87.

Por forma a complementar a “...arquitectura legislativa da reforma orçamental e de

Contabilidade Pública...” é publicado o DL n.º 155/92 de 28 de Julho através do qual se

estabelece um novo regime de administração financeira do Estado (§1:3502)88. A falta de uma contabilidade de compromissos traduzia-se num dos mais graves problemas de contabilidade

pública, por impedir uma verdadeira gestão orçamental e um adequado controlo

82 Segundo o disposto no art.º 2.º e 6.º da lei em análise, o novo regime dos serviços e organismos da administração central obedece a duas configurações básicas:

a) autonomia administrativa, como regime geral;

b) autonomia administrativa e financeira, como regime excepcional.

Pires Caiado e Pinto (2002:42) caracterizam os serviços que estão dotados de autonomia administrativa “...os serviços que, não tendo receitas próprias suficientes para cobrir parte significativa das despesas, têm administração financeira própria e distinta da administração financeira do Estado.”.

De acordo com o art.º 6.º da mesma lei, os serviços e organismos da administração central só poderão dispor de autonomia administrativa e financeira quando:

- este regime, se justifique para a sua adequada gestão e, cumulativamente,

- as suas receitas próprias atinjam um mínimo de 2/3 das despesas totais, com excepção das despesas co-financiadas pelo orçamento das Comunidades Europeias.

83 Ver art.º 1.º da Lei n.º 8/90 de 20 de Fevereiro. 84 De acordo com o art.º 14.º da presente lei:

“1 - O sistema de contabilidade dos serviços e organismos com autonomia administrativa será unigráfico, devendo ser organizada uma contabilidade analítica indispensável à avaliação dos resultados da gestão.

2 - O sistema de contabilidade dos serviços e organismos dotados de autonomia administrativa e financeira será digráfico e moldado no Plano Oficial de Contabilidade (POC), no plano de contas especialmente aplicável às instituições bancárias ou ainda noutro plano de contas oficial adequado.”.

85 A contabilidade de compromissos consiste no lançamento das obrigações constituídas por actividades, com a indicação da respectiva rubrica de classificação económica (art.º 10.º do DL n.º 155/92 de 28 de Julho).

86 Refira-se que a Lei n.º 6/91 de 20 de Fevereiro veio reformular os art.os 108.º a 110.º da Constituição da República Portuguesa. 87 Ou seja:

- receitas: classificação económica (correntes e de capital); - despesas: classificação orgânica, funcional e económica.

88 As alterações legislativas introduzidas pelo presente DL, visam substituir o sistema de contabilidade pública que havia sido introduzido pelas reformas de 1928-1929 a 1930-1936, revogando 31 diplomas fundamentais que vão desde a 3.ª Carta de Lei, de 1908, até ao presente (§7:3502).

(DL n.º 155/92, §10:3502). Por forma a eliminar este panorama, o diploma em discussão, ao permitir a introdução da contabilidade de compromissos, estrutura uma nova contabilidade de caixa89, mais adequada a uma correcta administração dos recursos financeiros, complementada por uma contabilidade analítica, indispensável a uma verdadeira gestão orçamental e, consequentemente, ao controlo de resultados, conforme estava previsto na lei de bases de contabilidade pública (DL n.º 155/92, §10:3502). A gestão integrada da dívida pública previa a extinção das tesourarias privativas com o pagamento das despesas públicas por transferência bancária ou crédito em conta e com a emissão de cheques de Tesouro (DL n.º 155/92, §11:3502).

O referido diploma estipula que os serviços e os organismos autónomos devem utilizar um sistema de contabilidade que se enquadre no POC, a fim de permitir um controlo orçamental permanente e levar a cabo uma rigorosa verificação da correspondência entre os valores patrimoniais e contabilísticos (art.º 45.º). Como refere Tavares e Branco (1998), o novo modelo de contabilidade orçamental possibilita o conhecimento, com a maior antecedência possível, das necessidades de financiamento.

Posteriormente, a Resolução n.º 1/93 de 21 de Janeiro90 do TC veio definir a forma de apresentação das contas por parte dos organismos dotados de autonomia administrativa e financeira. Neste sentido, passam a ser exigidos alguns documentos com as contas devidamente classificadas na contabilidade pública - contabilidade orçamental e, simultaneamente, com a contabilidade financeira.

As Instruções n.º 2 e 391 de 9 de Janeiro e 3 de Março 1997, respectivamente, do TC, vieram regulamentar a organização e documentação das contas dos serviços e organismos da administração pública (regime geral) integrados na RAFE e a remessa das contas de gerência. Com a RAFE continuamos a observar que no SPA português ainda, predomina o sistema contabilístico de registo unigráfico. A contabilidade privilegia a conformidade legal e o controlo orçamental, tendo como principal objectivo o registo dos fluxos de caixa, ou seja, só são considerados os recebimentos e pagamentos.

A utilização de novas técnicas de gestão, não acompanhadas de uma evolução da contabilidade pública, fez sentir, em determinados serviços públicos, a necessidade da utilização de uma contabilidade patrimonial e analítica aproximada à usada nas empresas privadas estipuladas pelo POC. Por forma a dar resposta às necessidades sentidas, decorrentes

89 A contabilidade de caixa e de compromissos encontra-se definida nos art.os 10.º e 15.º, respectivamente. 90

Revogada pela Instrução n.º 1/04 - 2.ª secção do TC nos termos do disposto na VI parte deste diploma. 91 Ibidem nota anterior.

do desenvolvimento do novo modelo administração financeira, assistimos à criação de vários planos sectoriais de contas para os principais subsectores de serviços públicos92. Assim,

- Por despacho do Ministério da Saúde, foi publicado em 1991, o Plano Oficial de Contas para os Serviços de Saúde (POCSS) tendo sido revisto em 1996;

- Em 1993 foi publicado o Plano Oficial de Contas para os Serviços Municipalizados e Federações de Municípios através do DL n.º 226/93 de 22 de Junho;

- Em 1995 formou-se um grupo de trabalho tendo como objectivo a elaboração de um Plano Oficial de Contas para as Instituições do Ensino Superior Público (POCIES)93.

A generalização do desenvolvimento dos planos sectoriais de contas referidos anteriormente, a necessidade do desenvolvimento de novos instrumentos de informação e controlo e a integração da contabilidade orçamental, criaram as condições necessárias para um novo sistema de contabilidade pública, que começou oficialmente em 1997, com a publicação do POCP.

A reforma da contabilidade pública portuguesa pode ser considerada como um processo multi-faseado, pois são várias as etapas que se definem para a mesma (Jorge, 2003). A análise das medidas desenvolvidas permite dividir o processo da reforma da contabilidade pública em três etapas (Quadro 1.17):

92 Salienta-se o facto de já existirem, antes do novo modelo de administração financeira do Estado, planos de contas aprovados, designadamente o Plano Oficial de Contas para as Instituições de Segurança Social (POCISS) publicado pelo DL n.º 24/88 de 29 de Janeiro e o Plano Oficial de Contas para as Instituições Públicas de Solidariedade Social (POCIPSS) publicado pelo DL n.º 78/89 de 3 de Março. 93 Refira-se que com a publicação do POCP a proposta do POCIES foi substituída pelo POC-Educação.

Quadro 1.17. Etapas da reforma da contabilidade pública desde 1910 até …

1910 - Redacção e publicação de diversas leis nas quais se estabeleceram princípios e regras para a contabilidade pública.

1974 - Revolução de 25 de Abril. Independência do TC.

1986 - Adesão de Portugal à UE.

1988 - DL n.º 112 de 2/04 - aprova o CE das despesas públicas.

DL n.º 450 de 12/12 - aprova o CE das receitas públicas. DL n.º 24 de 29/01- aprova o POCISS.

1989 - DL n.º 410 de 21/11- revisão do POC. DL n.º 78 de 03/03 - aprova do POCIPSS. Lei n.º 86 de 8/09 - reforma do TC.

1990 - Lei n.º 8 de 20/02 - Lei de bases de contabilidade pública.

1991 - Lei n.º 6 de 20/02 - LEO.

Diário da República de 8/10 - Aprova o POCSS.

1992 - DL n.º 155 de 28/07 - Reforma do sistema da contabilidade pública.

1993 - Instruções n.º 2 de 9/01 e Instruções n.º 3 de 3/03 - Regulamentam a prestação de contas do TC para os organismos com contabilidade patrimonial.

Resolução n.º 1 de 21/01 - Define a forma de apresentação das contas por parte dos serviços autónomos (represtinada pela instrução n.º 1/04).

DL n.º 226 de 22/06 - Aprova o POC-Serviços Municipalizados.

1994 - DL n.º 378 de 16/06 - Aprova o Cadastro e Inventário dos Bens Móveis do Estado (revogado pelo CIBE).

1995 - Resolução n.º 23 de 12/06 - Cria a "estrutura de missão" destinada a elaborar o POCP.

1996 - DL n.º 190 de 9/10 - Balanço social para os serviços e organismos da Administração Pública.

Revisão do POCSS (revogado com a entrada em vigor do POCMS).

1997 - Lei n.º 98 de 26/08 - Lei de Organização e Processo do TC (LOPTC).

DL n.º 232 de 3/09 - Aprova a criação do POCP.

1998 - DL n.º 68 de 20/03 - Criação da CNCAP. Lei n.º 42 de 6/08 - Aprova a Lei de Finanças Locais.

1999 - DL n.º 54-A de 22/02 - Aprova o POCAL.

Portaria n.º 116 de 10/02 - Orientação n.º 1 da CNCAP - Orientação genérica.

DL n.º 562 de 21/12 - Revisão do CE das receitas e despesas públicas (nunca chegou a entrar em vigor).

Lei n.º 162 de 14/09 - Aprova a 1.ª alteração ao POCAL.

2000 - Portaria n.º 671 de 17/01 - Aprova o CIBE. Portaria n.º 794 de 20/09 - Aprova o POC-Educação. Portaria n.º 898 de 28/09 - Aprova o POCMS. DL n.º 315 de 2/12 - Aprova a 2.ª alteração ao POCAL.

2001 - Portaria n.º 42 de 19/01 - Orientação n.º 2 da CNCAP - Orientação genérica.

Resolução n.º 4 de 12/07 - Define as instruções para a organização e documentação das contas abrangidas pelo POCAL.

Lei n.º 91 de 20/08 - Revisão da LEO.

Aviso n.º 7466 de 30/05 - Nota interpretativa n.º 1 da CNCAP - Período complementar.

Aviso n.º 7467 de 30/05 - Nota interpretativa n.º 2 da CNCAP - Movimentação da conta 25 do POCP.

2002 - DL n.º 12 de 25/01 - Aprova o POCISSSS.

DL n.º 26 de 14/02- Aprova o actual CE das despesas e receitas públicas (revoga os anteriores CE’s), rectificado pela Declaração n.º 8-F de 28/02.

DL n.º 84-A de 5/04 - Aprova a 3.ª alteração ao POCAL. Circular Série A n.º 1294 da DGO de 15/07.

2003 - DL n.º 54/03 de 28/03 - Aprova a 1.ª alteração ao POC- Educação.

2004 - Instrução n.º 1 de 22/01 - Define as instruções para a organização e documentação das contas abrangidas pelo POCP, POC-Educação, POCMS e POCISSSS.

2004 - Circular Série A n.º 1314 da DGO de 23/12.

A primeira etapa da reforma iniciada em 1910 entroncou numa perspectiva que passava pela regulamentação da contabilidade pública, designadamente através da implementação de várias medidas legislativas. Por outro lado, foi introduzido um novo sistema, em alguns subsectores do sector público, semelhante ao utilizado nas empresas.

A segunda etapa do processo, de 1990 a 1996, visou o aperfeiçoamento do sistema contabilístico utilizado na Administração Pública através de uma planificação contabilística (fixação de regras e princípios contabilísticos).

A terceira etapa iniciada em 1997 passou pela publicação de planos de contabilidade nos quais se estabelece o novo sistema contabilístico a aplicar por cada um dos diferentes subsectores (Educação, Saúde, Administração Local e Regional e Segurança Social).

Segundo Vela Bargues (1996), o processo evolutivo da reforma da contabilidade pública caracteriza-se pelas seguintes linhas de acção:

a) uma clara influência do modelo de normalização da contabilidade privada, quer em aspectos formais quer de conteúdo;

b) uma notável orientação conceptual, sobretudo desde 1990;

c) uma metodologia eminentemente dedutiva na elaboração das normas contabilísticas.