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A reconstrução da UNE

No documento gisleneedwigesdelacerda (páginas 64-67)

2.5 A ação estudantil: o ME em tempos de abertura política (1974 a 1984)

2.5.4 A reconstrução da UNE

Após a realização do III ENE, em que foi criada a Comissão nacional Pró-UNE, o passo seguinte do movimento estudantil consistiu em organizar um congresso para, efetivamente, reconstruir a entidade nacional representativa dos estudantes. O congresso de Reconstrução foi realizado em maio de 1979, em Salvador; era o XXXI Congresso da entidade. Ruy César, presidente do DCE da UFBA, organizou toda a logística do congresso. Conseguiu o centro de convenções da Bahia, junto ao governador Antônio Carlos Magalhães, mesmo com parte da direção do movimento estudantil contra, pois não queriam negociar com um governador nomeado pela ditadura militar. A hospedagem para as cinco mil pessoas esperadas no congresso foi em casas de famílias que se inscreveram para receber os estudantes. O fato de Antônio Carlos Magalhães ser governador naquele momento, marcou a memória de militantes entrevistados, como a de Rafael Pimenta. “O congresso de reconstrução da UNE foi em Salvador. O Antônio Carlos Magalhães era prefeito de Salvador15. Mas ele resolveu bancar e o Congresso da UNE foi lá”. (Rafael Pimenta, entrevista de pesquisa).

Além do governo de Antônio Carlos Magalhães, Beatriz Domingues tem a memória da chegada do ônibus com a delegação de Juiz de Fora em Salvador.

Uma coisa que eu to lembrando agora do congresso da UNE, quando, nessa época o Antonio Carlos Magalhães era o governador da Bahia, e quando a gente veio chegando de ônibus, nosso ônibus furou o pneu, tinha uma fila de ônibus com pneu furado. Mandou colocar uns grampos no asfalto, não sei quantos quilômetros antes de chegar em Salvador, então foi aquela fila de ônibus com o pneu furado. Eu me lembro da chegada, depois de uma viagem muito grande andando de ônibus. (Beatriz Domingues, entrevista de pesquisa).

As dificuldades de chegada na cidade de Salvador foram recorrentes na recordação dos ex-militantes. Ônibus com os pneus furados ao longo da estrada que dava acesso à cidade,

15 O entrevistado tem a memória de Antonio Carlos Magalhães como prefeito de Salvador, mas faço a ressalva

marcaram as memórias se apresentando com uma tentativa da ditadura de impedir a realização do congresso ao dificultar o acesso a Salvador. Flávio Cheker atribui ao exército, a iniciativa de provocar danos aos veículos que transportavam os estudantes.

Aquela viagem foi memorável, primeiro porque a gente saiu de JF, foram dois ônibus, e a viagem foi muito tumultuada, me lembro que o exercito jogou na estrada aqueles grampos que são usados em manobras de guerra, e o pneu do ônibus furava com freqüência, eu tenho inclusive um grampo desse guardado comigo, que eu guardo de lembrança, grampo como se fosse um tripé que de qualquer jeito que ele cai ele caiu com uma ponta pra cima, e aí o ônibus parava varias vezes, eram muitas barreira policiais, e todo um zum zum, uma noticia de bastidor que dava conta que eles invadiriam o congresso. (Flávio Cheker, entrevista de pesquisa).

Cheker guarda consigo, como objeto de memória, um dos grampos usados para furar os pneus dos ônibus que levavam os estudantes para Salvador, tentando conter sua chegada. Era o símbolo da repressão do regime que tentava impedir que a luta pela reconstrução da UNE fosse vitoriosa. Os grampos na estrada, porém, geravam a preocupação de que poderia haver uma tentativa de invasão por parte dos militares no congresso, o que causava instabilidade entre os estudantes.

Nós fomos daqui com, tenho dúvida, com dois ou três ônibus, de delegados. E foi gente do Brasil inteiro pra Salvador. Tiramos delegados, eu fui pelas Ciências Sociais, tinha mais gente das Ciências Sociais. (...) E aí foi coisa de dez mil delgados em Salvador. E o governador da Bahia biônico, nomeado pelo regime militar, era o Antonio Carlos Magalhães, era um homem do regime mesmo. Antonio Carlos Magalhães. Ligadíssimo ao general Geisel, era do chamado grupo do Geisel. (...) Pra chegar foi muito difícil, eles espalharam uns grampos de ferro pela estrada, à medida que foi chegando na Bahia, aí começou a espalhar um monte na estrada, furou o pneu de um monte de ônibus, era um monte de ônibus com o pneu furado. O ônibus que eu tava furou três pneus, quatro pneus, foi tudo pra trás, esvaziar, pra atrasar. (Flávio Bitarelo, entrevista de pesquisa).

Flávio Bitarelo recorda, além da dificuldade de acesso ao local do congresso, a quantidade de pessoas da delegação de Juiz de Fora, que foi constituída de dois ônibus com membros de todas as tendências estudantis atuantes na UFJF, e a quantidade de delegados presentes no congresso. José Pimenta lembra que a delegação da cidade era constituída de quarenta e quatro pessoas, representantes dos diferentes cursos, e da intensa disputa, para enviar delegados, entre tendências do ME em Juiz de Fora.

Eu lembro que nós levamos dois ônibus aqui de Juiz de Fora, (...). Então a gente tinha, parece que quarenta e quatro delegados da federal de Juiz de Fora. Aí a gente foi no mesmo ônibus. O Guilhermão, (...), a Raquel que participava de tudo, claro, tava com a gente no DCE, era a nossa secretária de agitação. E o Jorge, o Ignacio16 tava nessa mesma delegação. Bom, tivemos um processo de alta discussão aqui em Juiz de Fora, as assembléias eram enormes, todos os cursos tiveram disputa na eleição de delegado. E a disputa era basicamente esses formadores do PT e um

agrupamento que não era, não fazia parte da formação do PT, mas não necessariamente tinha vínculo com o PMDB, vamos dizer assim, que era aquilo na época (...) era a área de influência, vamos dizer, da AP. (José Pimenta, entrevista de pesquisa).

Assim, percebemos que, apesar da unidade entre as tendências de Juiz de Fora para reorganizar a UNE, e de viajarem juntos, os membros formadores da delegação juizforana divergiam, debatiam e disputavam a eleição de delegados para o congresso da UNE em Salvador, o que marcava esta relação.

Através do texto feito pelos dirigentes da UNE de 1980, em livro editado com o depoimento de ex-militantes, percebo que para os estudantes no ano de 1979, o congresso foi um grande marco para a democracia. Eles o enxergavam como forma de resistência à Ditadura e de agregação estudantil com a sociedade.

O Congresso de Reconstrução em maio de 1979 – Salvador, Bahia – foi classificado na sua abertura como continuidade do 31º Congresso17, feito na clandestinidade me

1971. Homenagem a Honestino Guimarães, último presidente, “desaparecido” pela Ditadura Militar, foi o exemplo maior de bravura, do suor e sangue empregados para manter a bandeira da UNE de pé. O grande apoio dado pela população de várias cidades e a presença marcante de entidades representativas de diversos segmentos sociais comprovaram que a UNE, uma conquista dos estudantes, mora também no coração do nosso povo. (UNE: 1980: 9).

Esse Congresso de Reconstrução aprovou, após muitas discussões, a Carta de Princípios da UNE. Cada tendência havia preparado uma proposta. Eram quinze cartas diferentes, difícil de unificar, e as tendências eram irredutíveis; cada qual defendendo que a sua fosse aprovada como carta de princípios da UNE. No entanto, Ruy César, organizador do Congresso do DCE da UFBA18, interveio, agregando o que era comum em todas, formulando uma nova carta de princípios. Essa, contava com um ítem de cada tendência e foi levada à votação, tendo sido aprovada por 80% da plenária, segundo o mesmo.

Durante o congresso, um atentado deixou o salão do Centro de Convenções às escuras. Foram lançadas bombas de pó químico e a energia elétrica foi cortada. Ruy César, em seu depoimento19, diz que resolveu organizar um coro de 100 pessoas e pediu a elas que repetissem, palavra por palavra o que ele dizia. Flávio Cheker recorda-se dos momentos de tensão vividos durante o atentado e da emoção que os envolvia ao repetir em coro as palavras da mesa diretora, o que simbolizava um momento de intensa unidade entre os estudantes.

17 O movimento estudantil desejava dar ao congresso que simbolizava o recomeço do movimento um sentido de

continuidade e identidade junto ao movimento anterior ao seu silenciamento pelo regime militar. Diferentemente era o movimento operário que desejava uma ruptura total com tudo que vinculasse o novo sindicalismo à forma de organização sindical anterior, fato que justifica nossa abordagem também situando o movimento operário anteriormente.

18 Retirado do livro Memórias estudantis, de Maria Paula Araújo (2007a: 232). 19 Retirado do livro Memórias estudantis, de Maria Paula Araújo (2007a: 232).

O congresso foi realizado onde hoje é o centro de convenções de Salvador, então hoje é tudo urbanizado, mas na época tinha um esqueleto de um prédio era numa praia muito afastada e o congresso foi sendo realizado, entrou noite adentro, e lá pelas tantas, apagaram a luz, então deu aquele black-out como era um lugar afastado, era de madrugada, baixou aquele pânico a gente naquela expectativa de que haveria uma repressão policial, todo mundo achou, então é agora, e como era uma multidão eram milhares de estudantes, a mesa improvisou um coro que foi uma coisa emocionante, ou seja, alguém da mesa falava e um coro composto por uns cinqüenta – sessenta estudantes repetiam aquilo em coro e então potencializava a voz e todo mundo ouvia, e ai foi dando então aquele sentimento de unidade, todo mundo se manteve e outro episódio interessante é que jogaram parece que vidro moído e ventava muito e aquilo entrava no olho das pessoas, mas felizmente não houve nada, além disso. (Flávio Cheker, entrevista de pesquisa).

Em 29 de maio de 1979, através de uma votação formal durante o Congresso de Salvador, a UNE foi reconstruída. No congresso, decidiu-se pela realização de eleições diretas para a diretoria da entidade. Foi eleita uma diretoria provisória com o objetivo de organizar a nova votação. Em outubro foram realizadas as eleições por voto direto em todo o país. Ruy César, candidato à presidência da entidade pela coligação que envolveu o MR-8, a APML e o PC do B, foi vitorioso e se tornou o primeiro presidente da UNE após a sua reconstrução. Na mesma coligação de tendências estava José Pimenta, indicado pela AP como representante do interior de Minas Gerais.

Eu entrei na UNE na primeira diretoria por influência da AP, a AP que propôs duas pessoas em Minas Gerais, um deles foi o Juca, que era da AP de Belo Horizonte e do interior fui eu. Nós fizemos uma assembléia enorme lá, e fizemos na nossa chapa, que era uma chapa composta pela AP, MR-8, PC do B. (José Pimenta, entrevista de pesquisa).

Assim, o movimento estudantil juizforano esteve presente, atuando de forma efetiva, no congresso de reconstrução da UNE, unindo-se a estudantes do Brasil inteiro e lutando pela liberdade democrática para ter de volta sua entidade representativa em nível nacional.

No documento gisleneedwigesdelacerda (páginas 64-67)