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Para a análise realizada do Conselho Deliberativo da Fundação Cultural Piratini, algumas lâminas teóricas do deliberacionismo foram acionadas. O objetivo não foi, de forma alguma, testar tais pressupostos teóricos a partir de uma investigação empírica. Ao contrário de validar os méritos normativos do modelo de democracia deliberativa, o estudo proposto pretendeu esclarecer alguns aspectos, estes sim sugeridos pelo modelo, concernentes ao funcionamento e às dinâmicas do Conselho Deliberativo.

Ou seja, não se “adota” o modelo como patamar mínimo, pois, é preciso reconhecer, as instituições não são desenhadas conforme modelos teóricos e sim a partir da identificação de certas necessidades que podem ser resolvidas por dispositivos associados diversos modelos democráticos.

Isto não impede que algumas constatações sejam feitas a partir dessa perspectiva de problema-solução, aplicado ao objeto deste estudo. Uma delas está relacionada ao diagnóstico apresentado inicialmente a respeito das modificações das relações entre estado e sociedade. A deliberação pública, afirma-se, aproximaria tais esferas propiciando a tomada de decisões de forma mais legítima e justa. No caso do Conselho Deliberativo da Fundação Cultural Piratini é possível constatar, realmente, que sua implantação criou não apenas o espaço para a interação entre agentes estatais, radiodifusores e sociedade, como também criou compromissos mútuos que, respaldados pela lei, poderiam tornar mais democráticas as decisões tomadas para a radiodifusão pública estadual. Ainda assim, a plena realização dessa aproximação, conforme demonstrado na reconstituição histórica das atividades do Conselho, depende preponderantemente da disposição desses atores. Logo, a implantação de um processo discursivo de produção de políticas continua refém da disposição dos agentes sociais em se engajar nas deliberações e, principalmente, da abertura dos administradores públicos a interferências externas.

Retomando o que propõe Archon Fung (2004) a respeito da concepção e natureza das esferas deliberativas, é perceptível que o Conselho Deliberativo da Fundação Cultural Piratini reúne as características que o associaria à modalidade denominada conselho consultivo participativo. Primeiramente, o Conselho pode proporcionar aos seus integrantes um espaço propício para a troca de informações que, eventualmente, aperfeiçoe seus conhecimentos acerca dos assuntos pertinentes à radiodifusão pública e ao funcionamento das emissoras mantidas pela Fundação Cultural Piratini. Enquanto os profissionais da área podem colaborar com sua experiência no cotidiano das empresas de comunicação, à sociedade civil cabe relatar suas expectativas e defender o interesse público. Aliados aos atores do estado, que irão, por fim, elaborar as políticas públicas, profissionais e cidadãos devem, em conjunto, avaliar os melhores caminhos a se tomar para o cumprimento dos propósitos da radiodifusão pública.

Há, portanto, um potencial diálogo entre as esferas de decisão das políticas e os beneficiários delas que pode resultar na discussão de políticas públicas, o que coloca o Conselho Deliberativo em um patamar acima dos fóruns educativos. O Conselho carece, porém, de outros poderes que o classificariam nas duas outras categorias apresentadas por Fung (2004), pois ele não tem poderes regimentais para sugerir resoluções para os problemas que acometem a Fundação Cultural Piratini (cooperação para a resolução participativa de

problemas), tampouco influenciar as decisões do governo (governança democrática). Seria injusto dizer que não há pretensão dos conselheiros nesse sentido (os projetos de saneamento financeiro, ou de digitalização do sistema elaborados recentemente comprovam tais iniciativas), porém, essa pretensão não tem nenhum respaldo legal, tampouco acolhimento junto ao Poder Executivo.

A seleção dos participantes, conforme tratado acima, respeita processos formais de representação, definidos estatutariamente. É válido refletir, ainda, sobre as expectativas desses conselheiros quanto à participação no Conselho Deliberativo. O desinteresse crônico de algumas entidades com vagas natas e mesmo de conselheiros eleitos, candidatos voluntários aos assentos, pode se justificar a partir de uma percepção enunciada por Christa Berger (2005), em entrevista, de que há carência de uma cultura da representação, que gera pouco comprometimento nos conselheiros.

Outra discrepância associada a esse problema é o fato de que poucas entidades com assento no Conselho realizam discussões internas que orientem seus representantes a se posicionarem nas questões debatidas naquele espaço (BERGER, 2005; ESCOBAR, 2005; SILVA, 2005). Se não existe esse debate anterior, os conselheiros se limitam a orientar suas decisões conforme suas opiniões particulares. É claro que isso facilita o convencimento e a revisibilidade de posicionamentos, mas, assim, perde-se o respaldo do setor ou grupo que o conselheiro representa.

Ao pensar o escopo da deliberação é válido retomar as atribuições que o Regimento define para o Conselho Deliberativo. Estas atribuições requerem que o tempo de deliberação dos conselheiros seja equilibrado entre as questões de ordem interna, as responsabilidades burocráticas do âmbito da Fundação e as discussões conceituais que não demandam decisões de curto prazo. Se as responsabilidades junto à Fundação são extensas, pois abrangem a apreciação de qualquer decisão administrativa tomada pelo governo ou pelos dirigentes, e as questões de organização interna são inevitáveis, há grandes chances daquele debate conceitual, que confronta perspectivas a respeito dos princípios da radiodifusão pública e das formas de atuação para sua concretização, ser prejudicado. Esse terceiro tipo de atribuição, essencialmente argumentativo, requer mais tempo de discussão e pode demorar mais para surtir resultados visíveis. Esse debate, porém, quando internalizado nos

conselheiros, contamina sua tomada de decisão e, então, realiza-se o aprimoramento das políticas.

As demandas cotidianas e planos de curto prazo parecem limitar o espaço que esse último tipo de deliberação tem no Conselho. Além disso, para alguns conselheiros parece perda de tempo dedicar reuniões inteiras pensando, por exemplo, se a captação de recursos através de apoios culturais está de acordo com a missão da radiodifusão pública, quando se tem tantas questões mais urgentes, que podem surtir efeitos mais rapidamente (como a elaboração de um plano de recuperação financeira), a se dedicar. Perde-se, então, parte da razão de ser da deliberação pública, pois, se não há tempo para trocar argumentos, revisar posições, buscar perspectivas alternativas, se é preciso eficiência, o parecer dos técnicos, talvez, fosse mais útil na tomada de decisões.

Mas o balanço da deliberação no Conselho não é tão pessimista quanto parece, à primeira vista. Quanto aos requisitos deliberacionistas de publicidade, por exemplo, outros aspectos são evidenciados na observação do Conselho Deliberativo. A publicidade dos argumentos é evidenciada nos temas e nos posicionamentos apresentados pelos participantes. Sendo as políticas de radiodifusão obviamente diferentes daquelas tratadas em outros espaços de deliberação pública, como os conselhos que tratam de políticas para a saúde e de alocação de recursos, por exemplo, torna-se mais rara a apresentação de argumentos que não sejam publicamente defensáveis, pois os concernidos pelas decisões são inevitavelmente o conjunto da população.

Em relação, porém, ao outro viés da publicidade, que se relaciona ao acesso ao espaço onde ocorrem as discussões, há certas ressalvas a se fazer. Em primeiro lugar, os conselheiros são determinados pelo Estatuto da Fundação, que criou o Conselho Deliberativo, proposto pelo Poder Executivo e alterado e aprovado pela Assembléia Legislativa. Em nenhum momento possibilitou-se que a determinação dos participantes sofresse interferências de outra natureza. O resultado é que algumas das instituições definidas estatutariamente não demonstram real interesse em ocupar seu assento no Conselho, enquanto outras, excluídas da representação, não dispõem de mecanismos legais para pleitear vagas. Essa limitação contraria a publicidade de acesso das deliberações além de, por ser arbitrariamente definida, não garantir a constituição de uma diversidade argumentativa desejável.

A reciprocidade na argumentação, por sua vez, pode ser observada na medida que as regras estabelecem a participação paritária dos conselheiros. Pode-se pensar, entretanto, que ela não é plenamente satisfeita, quando o estado, também representado no Conselho,

considera-se livre para desrespeitar as decisões tomadas pelo conjunto de conselheiros. Isso demonstra que não há igualdade de condições entre os membros.

A dimensão reduzida do Conselho favorece que haja accountability interna, já que a proximidade dos conselheiros influencia na responsabilização pelos posicionamentos tomados. Além disso, por serem, freqüentemente, personalidades públicas, há também uma preocupação com a preservação de uma reputação positiva entre seus pares e ante a sociedade. Embora não haja dispositivos legais previstos em Regimento que sujeitem o Conselho ao escrutínio público, esta é uma preocupação de seus membros. As atas das reuniões são de domínio público e são periodicamente divulgadas no site da Fundação Cultural Piratini, onde se pode acessar, além dos registros de todas as reuniões realizadas, outros documentos elaborados pelo colegiado, como as diretrizes para as emissoras da Fundação. Além disso, o usuário do site da Fundação tem acesso à lista atualizada de conselheiros e seus respectivos endereços de email para contato.

No âmbito teórico, os resultados esperados da deliberação pública variam muito, de acordo com os níveis de exigência apresentados. Há quem demande uma intervenção evidente da sociedade nas decisões governamentais, e, para estes, nem mesmo o orçamento participativo, exemplo mais aprimorado na visão de Fung (2004), é efetivo, pois lida com pequenas parcelas dos recursos disponíveis para investimentos, ou porque depende demasiadamente do engajamento prévio da comunidade (BAIOCCHI, 2003). Para padrões menos exigentes, até mesmo as situações de conversação apresentam vieses deliberacionistas e podem proporcionar, no mínimo, ganhos epistêmicos (MARQUES; MENDONÇA; MAIA, 2007). Dessa forma, a busca por resultados da deliberação no Conselho da Fundação Cultural Piratini corre o risco de ser um empreendimento inadequado, ou pouco frutífero, pois o diagnóstico varia sensivelmente conforme as convicções de quem o avalia.

A percepção geral dos entrevistados é de que o Conselho Deliberativo não corresponde às funções às quais se destina e frustra as expectativas de quem nele se engaja (BERGER, 2005; ESCOBAR, 2005; FACCIONI, 2005; ZOGBI, 2005). Esses mesmos conselheiros admitem, entretanto, que a própria criação do Conselho trouxe avanços (FACCIONI, 2005; VIEIRA DA CUNHA, 2005) e que, de alguma forma, funcionou como uma etapa de democratização da Fundação, na medida que deu início a uma aproximação entre a sociedade e as emissoras (OSTERMANN, 2005).

Logo, quanto aos patamares mais exigentes, o Conselho se limitou a propor alguns projetos, baseados nas principais dificuldades que acometem a Fundação, que não foram, até o momento, acolhidos pelo governo, influenciando muito pouco nas políticas estaduais de radiodifusão. Quando se reduz essa exigência normativa, porém, os ganhos discursivos foram significativos. Além de submeter à discutibilidade ações do Poder Executivo, a criação do Conselho Deliberativo abriu espaço para a inclusão de novos atores no debate da radiodifusão pública.