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4.2 A participação da sociedade em esferas institucionais de deliberação pública

4.2.4 Resultados da deliberação

Em se tratando dos resultados advindos da deliberação pública, pode-se considerá-los de duas naturezas: os que abrangem a função discursiva da deliberação e os que são da ordem da produção da decisão.

O primeiro aspecto mencionado, pertencente à ordem da discussão pública, está ligado conceitualmente à problematização da esfera pública realizada por Habermas. O teórico, assim como seus discípulos, defende a idéia de que a esfera pública é o berço da opinião pública (HABERMAS, 1997). Tributário dessa corrente teórica, o deliberacionismo reconhece a importância da constituição de espaços de discussão pública com o intuito de dotar os cidadãos de ferramentas discursivas e repertório político que lhes permitam desempenhar um papel ativo nas democracias. Essa perspectiva favorece a defesa da existência da deliberação pública em esferas informais e espontâneas, como aquelas nascidas de encontros da sociedade civil em torno de temas e questões que lhes atingem (MARQUES; MAIA, 2008; MARQUES; MENDONÇA; MAIA, 2007). Esta modalidade de deliberação, residindo essencialmente na sociedade civil, está associada ao que Nancy Fraser denomina weak publics, ou públicos fracos – “publics whose deliberative practice consists exclusively in opinion formation and does not also encompass decision making”104, nas palavras da autora (FRASER, 1992, p. 135).

No segundo caso, o deliberacionismo pretende oferecer os instrumentos normativos que contribuirão para a tomada de decisões em um processo legítimo que produzirá, a partir da disputa argumentativa, a decisão mais justa, pois leva em consideração uma ampla gama de interesses (presentes no debate) e discute as conseqüências das políticas implantadas tendo em vista a pluralidade da sociedade, em um processo que garante a publicidade do espaço de discussão, dos argumentos apresentados e das políticas decididas: “Esse processo democrático estabelece um nexo interno entre considerações pragmáticas, compromissos, discursos de auto-entendimento e discursos da justiça, fundamentando a suposição de que é possível chegar a resultados racionais e eqüitativos” (HABERMAS, 1997, p. 19).

Embora se possa ter a impressão de que haja um pressuposto de supressão das discordâncias, a idéia não é a sublimação dos conflitos, mas sim, sua administração a partir de

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Tradução própria: “públicos cuja prática deliberativa consiste exclusivamente na formação da opinião e não engloba a tomada de decisões”.

bases normativas morais, que propicia a acomodação dos interesses (GUTMANN; THOMPSON, 1996; BOHMAN, 1996).

Acceptance of the legitimacy of the positions of others comes not through being persuaded by argument, but through openness to conversion as a result of a particular kind of democratic attitude. The outcome is not agreement but rather relationships that combine continued contestation with deep respect for the adversary—indeed it is not easy to speak in terms of “outcomes”105 (DRYZEK, 2005, p. 220-221).

Se, por um lado, há um compromisso com a fundamentação pública dos argumentos apresentados (o que os torna válidos), por outro, há o compromisso do respeito mútuo, onde os participantes são instigados a se colocar no papel do outro (que se costuma denominar ideal-role-taking) onde as divergências não impedem a continuação da deliberação. De acordo com Habermas,

Está certo que os parceiros da negociação não necessitam dos mesmos argumentos para aceitar o resultado acordado numa negociação. Todavia, as considerações de bom senso e os argumentos que cada uma das partes coloca na sua perspectiva pressupõem tacitamente o reconhecimento mútuo das bases normativas, as quais justificam a imparcialidade do próprio processo, na medida em que explicam por que certos resultados, que surgiram conforme as exigências do processo, podem ser considerados eqüitativos (HABERMAS, 1997, p. 17).

Essa perspectiva de eqüidade dos resultados favorece que os cidadãos permaneçam abertos aos processos deliberativos, pois lhes incute a idéia de que vale a pena engajar-se nessas discussões, mesmo que seu argumento não vença.

Os resultados da deliberação pública que se colocam na ordem da produção da decisão, por outro lado, demandam uma formalidade que os públicos fracos não dispõem. Valendo-se, ainda, das proposições de Fraser (1992), os espaços de deliberação considerados strong publics, ou públicos fortes, abrangem tanto a formação da opinião, quanto o processo de tomada de decisão. Conforme a análise de Fraser, públicos fortes são, tipicamente, os parlamentos, pois este é o lócus da deliberação pública autorizada pelo poder estatal (FRASER, 1992, p. 135). A autora admite, porém, a contemporaneidade das formas híbridas de organização dos públicos, que aliam esferas fortes e fracas.

A postbourgeois conception would enable us to think about strong and weak publics, as well as about various hybrid forms. In addition, it would allow us to theorize the range of possible relations among such publics, which would expand

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Tradução própria: “A aceitação da legitimidade das posições dos outros vem não através da persuasão do argumento, mas sim por meio da abertura à conversão, como resultado de um determinado tipo de atitude democrática. O resultado não é acordo, mas sim relacionamentos que combinam contínua contestação com profundo respeito pelo adversário - aliás, não é fácil falar em termos de ‘resultados’”.

our capacity to envision democratic possibilities beyond the limits of actually existing democracy106 (FRASER, 1992, p. 136).

Aqui, então, apresenta-se mais um possível resultado da deliberação pública em espaços formais: a aproximação das esferas civil e política que, engajadas no processo de discussão promovem uma compreensão das necessidades mútuas e o comprometimento com a acomodação de posicionamentos. Além disso, a conseqüente abertura da esfera política às reivindicações da sociedade (quando há disposição para tanto) confere poder à esfera civil de influenciar as políticas públicas – o “empowerment” demonstrado por Archon Fung (2004).

Uma das características a fazerem parte do conjunto de requisitos para a deliberação pública é a possibilidade de se revisar os argumentos perenemente, permitindo aos participantes serem convencidos pelos argumentos alheios. Tal revisibilidade abrange também o próprio processo deliberativo, já que permite aos participantes do debate não apenas apontar as direções para a solução de suas discordâncias a respeito das políticas públicas, mas também definir qual processo de decisão é mais apropriado.

Por fim, embora haja esta demanda por se tratar de resultados da deliberação pública, os deliberacionistas preferem enfatizar que, considerando a importância que os procedimentos adquirem no modelo, os resultados das eventuais decisões são secundários, pois os ganhos, defende-se, dão-se ao longo do processo deliberativo. Conforme resumem Gutmann e Thompson: “Deliberation is not only a means to an end, but also a means for deciding what means are morally required to pursue our common ends”107 (1996, p. 4).

Não se deve ignorar, entretanto, que a seleção da deliberação como método de produção da decisão deve ser pensada à luz da natureza das questões que se pretende debater e as dimensões da população que se quer envolver. Primeiramente, certas decisões de cunho técnico, ou que requerem medidas urgentes, muitas vezes, não são compatíveis com a morosidade do processo de negociação discursiva entre estado e sociedade (MARQUES, 2008). Em segundo lugar, dificilmente os requisitos elencados para a deliberação pública poderiam ser atingidos quando envolvendo um número muito grande de participantes.

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Tradução própria: “Uma concepção pós-burguesa nos permitiria pensar em públicos fortes e fracos, bem como sobre diversas formas híbridas. Além disso, isso permitiria teorizar a gama de possíveis relações entre esses públicos, que podem expandir a nossa capacidade de prever possibilidades democráticas para além dos limites da democracia realmente existente”.

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Tradução própria: “Deliberação não é apenas um meio para atingir um fim, mas também um meio para decidir quais meios são moralmente requeridos na busca da realização de nossos objetivos comuns”.

Ainda assim, a deliberação pública, entendida como um processo racional normativamente orientado, que congrega diversos atores na busca do melhor argumento e da decisão mais justa, é defendida por seus teóricos como método mais eficaz de produção de políticas públicas.

4.3 INSTITUIÇÕES PARTICIPATIVAS: CONSELHOS GESTORES DE POLÍTICAS