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2.1 Programação

2.3.1 Sistemas internacionais de administração das emissoras

A fortes críticas e as recentes reformas a que foi submetida a radiodifusão pública européia motivaram o desenvolvimento de um novo sistema de administração das emissoras, conforme a análise de Coppens e Saeys (2006). Estas reformas tiveram variações em cada país, mas, de forma geral, esses autores identificam três elementos presentes nas novas políticas administrativas da radiodifusão pública.

a) O contrato de serviço público, com validade limitada, assinado entre a emissora e a autoridade competente, traça os compromissos das duas partes. A as responsabilidades do governo são primeiramente financeiras, em compensação pelo comprometimento da emissora em cumprir um conjunto de tarefas num determinado limite de tempo;

b) Essas tarefas são descritas de forma bastante objetiva, compondo os critérios de avaliação de desempenho, que são tanto quantitativos quanto qualitativos e devem abarcar

todos os aspectos da política de radiodifusão pública e são, muitas vezes, acordados formalmente através de documentos – o que não impede que sejam propostos periodicamente pelas emissoras na forma de um compromisso voluntariamente estabelecido;

c) A existência de um sistema baseado em critérios pressupõe um mecanismo de verificação periódica do cumprimento dos termos do acordo. Esse mecanismo, denominado pelos autores como uma análise de desempenho, é um teste que examina se e em que medida os critérios de desempenho estão sendo satisfeitos. Esses mecanismos de análise e controle podem variar nos países da União Européia, indo desde um auto-escrutínio até, uma auditoria externa (COPPENS; SAEYS, 2006, p. 268);

Dada a histórica prevalência do serviço público de radiodifusão na Europa, a grande parte dos profissionais da área construiu suas carreiras nas emissoras públicas, tornando-se plenamente familiarizados com a missão do serviço público antes de ocuparem altas funções executivas, afirmam Coppens e Saeys. A nova orientação mercadológica do sistema tem aumentado o recrutamento de diretores externos, que buscam objetivos mais tangíveis do que os vagos princípios que regiam o modelo, com os quais eles não estão familiarizados. “In other words, public-service contracts give the new generation of PSB managers something to go on. Moreover, other staff members too will find greater clarity about the priorities of the station they work for”42 (COPPENS; SAEYS, 2006, p. 270-271).

Os contratos firmados apresentam uma vantagem significativa em relação à situação, vivenciada por emissoras de radiodifusão pública de muitos países e fortemente atacada por boa parte dos críticos, de dependência dos controladores do fluxo financeiro das emissoras, sejam eles o estado ou o mercado publicitário.

In any case, public service contracts definitely suggest that the broadcaster enjoys greater autonomy in his relations with the government. The government can restrict its interventions to a periodical description of the targets that the public broadcaster must attain. For its part, the broadcaster can formulate policy on how to attain the targets that have been set, and in principle can do so autonomously43 (COPPENS; SAEYS, 2006, p. 271).

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Tradução própria: “Em outras palavras, os contratos de serviço público dão à nova geração de administradores dos serviços públicos de radiodifusão algo para ir adiante. Além disso, outros membros da equipe também encontrarão maior clareza a respeito das prioridades da emissora em que trabalham”.

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Tradução própria: “De qualquer forma, os contratos de serviço público definitivamente sugerem que o radiodifusor se beneficie de maior autonomia nas suas relações com o estado. O governo pode limitar as suas intervenções em uma descrição periódica das metas as quais devem ser concretizadas pelos radiodifusores públicos. Por seu turno, os radiodifusores podem formular políticas quanto a forma adotada para atingir as metas que foram estabelecidas, e, em princípio, pode fazê-lo autonomamente”.

Um problema apresentado pelos autores a respeito dos contratos de serviço público é que eles retiram o centro das decisões políticas a respeito da radiodifusão das discussões no parlamento e do debate público e as colocam nas mãos de técnicos, encobrindo as negociações que acontecem, então, entre um único departamento governamental e a alta administração do sistema de radiodifusão pública, gerando um déficit democrático nessas tomadas de decisão.

Here looms the danger of a democratic deficit. As public service contracts gain more and more significance, renewals of and changes in these contracts should always go hand in hand with an open public debate on the role of PSB in present-day society44 (COPPENS; SAEYS, 2006, p. 271).

O segundo elemento presente no novo sistema administrativo abordado pelos autores, os critérios de desempenho, pode ser estabelecido pelas próprias emissoras, que elaboram sob quais indicadores sua performance pode ser medida. Vários fatores podem influenciar esses indicadores, afirmam Coppens e Saeys. É importante definir se os critérios são impostos pelo governo ou se são estabelecidos pela emissora; se fazem parte das cláusulas do contrato, estabelecendo sanções como cortes de financiamento, em caso de não- cumprimento; se atende ao critério “econômico”, que se refere à apreciação da audiência, produtividade e assuntos financeiros, e ao critério “tradicional”, que trata das funções sociais e da programação da radiodifusão pública; e, finalmente, se os critérios são do tipo quantitativo, que funcionam bem para quase todas as atividades das emissoras, ou qualitativo, que pode expressar melhor a função democrática da radiodifusão (COPPENS; SAEYS, 2006, p. 273-276).

A ferramenta de mensuração mais difundida é a auto-avaliação do sistema em que as emissoras produzem um relatório anual de suas atividades e examinam em que medida atingiram os critérios de desempenho. Neste cenário, há três possibilidades: o relatório pode ser submetido às autoridades políticas, que decidem as atitudes cabíveis subseqüentes; pode haver a apresentação desse relatório aos órgãos reguladores independentes, que recomendarão às autoridades as melhores políticas; ou, por fim, o governo e os órgãos reguladores, avaliarão em conjunto os relatórios e indicarão as atitudes e imporão as sanções adequadas (COPPENS; SAEYS, 2006, p. 277). A auto-avaliação como única ferramenta não é recomendada a longo prazo pelos autores e a aplicação de sanções financeiras devem ser ponderadas:

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Tradução própria: “Aqui se mostra o perigo de um déficit democrático. Na medida em que os contratos de serviço público ganhem mais e mais importância, suas renovações e mudanças devem estar sempre de mãos dadas a um debate público aberto sobre o papel do serviço público de radiodifusão na sociedade de hoje”.

If the assessment does not lead to a financial penalty, it risks being too non- committal and in the longer term it may not be as serious and well considered as it deserves to be; if it does entail financial consequences, it may become too defensive an instrument and thus be not altogether honest. Also, the absence of other parties from the process of evaluation is hardly conducive to an independent judgement, since the performance analysis could easily be used as a tool of political manipulation45 (COPPENS; SAEYS, 2006, p. 278).

Seja qual for o sistema, os autores concluem que a intervenção de um órgão regulador independente é uma condição necessária para a salvaguarda da autonomia das emissoras de radiodifusão pública (COPPENS; SAEYS, 2006, p. 278-279).

Outro ponto que pode ser interessante para a futura análise do controle administrativo do sistema brasileiro é apresentado por Marilyn E. Lashley. Lashley (1992), no intuito de analisar as influências da alternância de governantes na gestão das emissoras de radiodifusão pública, realiza uma pesquisa da realidade das emissoras públicas de televisão nos EUA ao longo de 22 anos. O paradigma derrubado no início do trabalho é a idéia de que as televisões públicas não sofrem com as freqüentes mudanças de estratégias, por não serem confrontadas pelas mudanças na gestão, que seriam comuns nas empresas privadas, pois elas se submetem às decisões e às vontades de seus acionistas:

Although there have been no “purchases of controlling shares" in public broadcasting, executive and legislative turnover has generated a type of” ownership change" that has had greater impact on public television policy than more recent ownership changes may have had on commercial broadcasting46 (LASHLEY, 1992, p. 770).

Essa rotatividade executiva e legislativa demonstra, segundo a autora, que a radiodifusão pública é produto não apenas das forças do mercado econômico, mas também das forças do mercado político (LASHLEY, 1992, p. 771). Embora a regulação e o controle da radiodifusão pública norte-americana estejam nas mãos da Corporation for Public Broadcasting, esta, por sua vez, funciona de acordo com as escolhas dos governantes no poder e suas preferências na proposição de políticas públicas. A constatação mais preocupante é a de que – novamente em comparação com a iniciativa privada –

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Tradução própria: “Se a avaliação não conduz a uma sanção pecuniária, ela corre o risco de ser demasiadamente branda e, a longo prazo, pode não ser tão séria e tão considerada como ela merece ser; e, se ela acarretar conseqüências financeiras, pode se tornar um instrumento demasiado defensivo e, portanto, não ser totalmente honesta. Além disso, a ausência de outros partidos no processo de avaliação é muito pouco propícia a um julgamento independente, uma vez que a análise de desempenho poderia facilmente ser utilizada como um instrumento de manipulação política”.

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Tradução própria: “Embora não tenha havido uma ‘compra de ações controladoras’ na radiodifusão pública, a manobra executiva e legislativa gerou um tipo de ‘mudança na propriedade’ que teve maior impacto sobre a política de televisão pública do que tiveram as mudanças de propriedade mais recentes que ocorreram na radiodifusão comercial”.

Unlike the private organization, in which the consumer is directly linked to the product – and management decides input, throughput, and output – in the public organization, the consumer is detached from the product. Instead, a layer of politicians and bureaucrats determines goals, means, and ends as well as defines what constitutes successful performance47 (LASHLEY, 1992, p. 771).

E, dessa forma, as mudanças na condução das políticas têm grandes efeitos no cotidiano das emissoras públicas como, por exemplo, a hierarquia das decisões, o conjunto de diretores, a alocação de verbas e a designação de rubricas. Segundo a pesquisa de Lashley, os presidentes Johnson, Nixon, Carter e Reagan, por exemplo, “imposed policy preferences that not only determined the appropriation outcomes but also defined the organizational structure, decision-making processes, and programming content of public television”48 (LASHLEY, 1992, p. 772). Os impactos sofridos pelas emissoras em razão das mudanças das políticas nos governos Johnson, Nixon e Carter são assim enumerados por Lashley:

the repeated restructuring of public broadcasting and micromanagement ensued more from presidential policy shifts than from economic forces in the external market – for example, technical demands or monetary costs of the system. Most important, one also recognizes that changes in policy preferences have had tremendous impact on public television managers' ability to achieve the diversity-in- programming mandate. In particular, CPB management's capitulations to executive preferences, which culminated in the partnership agreement, dramatizes the significance of executive turnover for public television policy and programming content49 (LASHLEY, 1992, p. 779-780).

As análises da programação durante o mandato dos presidentes acima mencionados, e o mesmo podendo ser afirmado a respeito do governo Reagan, demonstraram que

Further analysis of the programming broadcast during the Johnson, Nixon, Carter, and Reagan presidencies demonstrates that managers of public television stations largely have been passive respondents to changes in executive and legislative

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Tradução própria: “Diferentemente da organização privada, na qual o consumidor está diretamente relacionado com o produto – e a administração decide a entrada, os meandros e os resultados –, na organização pública, o consumidor é separado do produto. Em vez disso, um conjunto de políticos e burocratas determina metas, meios e fins, bem como define o que constitui um bom desempenho”.

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Tradução própria: “impuseram preferências políticas que não só determinaram o desfecho da apropriação, mas também definiram a estrutura organizacional, os processos de tomada de decisão, a programação e o conteúdo da televisão pública”.

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Tradução própria: “as repetidas reestruturações do serviço público de radiodifusão e de micro-gestão resultaram em mais modificações de políticas presidenciais do que de forças econômicas do mercado externo – por exemplo, exigências técnicas ou de custos financeiros do sistema. Mais importante, também se reconhece que mudanças nas preferências políticas tiveram enorme impacto na capacidade dos gestores das televisões públicas em satisfazer a obrigação de diversidade de programação. Particularmente, a submissão dos administradores da CPB às preferências do Poder Executivo, o que culminou no acordo de parceria, destacou a importância da manobra do Executivo para as políticas de televisão e de conteúdo de programação”.

preferences for public broadcasting policy and have adjusted programming accordingly50 (LASHLEY, 1992, p. 780).

O governo Johnson, entretanto, foi o responsável por incentivar o desenvolvimento de boa parte do caráter inovador da televisão pública. Os críticos avaliados pela autora definem, porém, uma trajetória que começa na programação altamente inovadora dos anos 60 e se transforma, na década de 80, em algo sem valor (cheap, no original). De fato, a sucessão de reviravoltas nas políticas legou à radiodifusão pública a americana uma situação assim descrita por Lashley: “More than any other goal, managers of public broadcasting entities pursue survival. Public broadcasting's programming diversity mandate is subordinate to securing increased appropriations from one year to the next”51 (LASHLEY, 1992, p. 784).