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4.2 A participação da sociedade em esferas institucionais de deliberação pública

4.2.2 Universo de participantes

O segundo aspecto do desenho institucional aqui abordado consiste na composição das esferas deliberativas e os mecanismos de inclusão e seleção de participantes. A maioria dos autores deliberacionistas defende que todos os cidadãos tenham livre acesso às esferas discursivas101. Essa é uma das perspectivas constituintes da noção de publicidade: a

101 Este ponto não é unânime, pois, conforme mencionado anteriormente, John Rawls, por exemplo, reserva a

acessibilidade indiscriminada ao palco da discussão102. Deve-se considerar, entretanto, que, primeiramente, nem todos os cidadãos têm interesse em participar da maneira que esperam os defensores da democracia discursiva, já que alguns indivíduos preferem manifestar seu engajamento político de outras formas. Em segundo lugar, embora se defenda que, quanto maior o número de participantes, maior será a qualidade da deliberação, os deliberacionistas, de fato, esperam assegurar a pluralidade argumentativa das esferas de discussão: “The point of deliberative practice, therefore, is not only to interject new or previously excluded, preset preferences into the bargaining mix but to introduce a qualitatively different voice”103 (HAMLETT, 2003, p. 121). Ou seja, a variedade de razões presentes é mais significativa que a quantidade de pessoas envolvidas no processo (DRYZEK, 2004).

Essa concessão permite que a dificuldade técnica (estabelecida quando se define que o número de participantes deve ser o mais próximo que possível do total de concernidos pelos temas) seja superada. Para John Dryzek (2004), a lida com assuntos de interesse geral pode ser satisfeita a partir de uma “constelação de discursos” – isto é, a garantia da existência de uma pluralidade de visões a respeito de determinada questão, bem como o livre acesso destas reivindicações e razões ao processo de debate, é mais importante do que a “contagem de cabeças deliberantes” (DRYZEK, 2004).

Há, então, mecanismos de seleção que determinam quem toma assento nas discussões das esferas participativas. Conforme aponta Fung (2004, p. 177-178), a estratégia mais comum é a auto-seleção voluntária que ocorre quando a atividade deliberativa é aberta à participação de qualquer indivíduo interessado em tomar parte. É necessário ressaltar, entretanto, que esse tipo deliberação costuma reunir predominantemente aqueles que possuem os recursos necessários para arcar com os custos da participação, e que estes indivíduos dificilmente representam o conjunto da população, pervertendo, assim, a idéia da “constelação de discursos”.

Na tentativa de resolver essa discrepância, Fung sugere que haja uma seleção de participantes específicos que espelhem demograficamente a população em geral, seja através

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O conceito de publicidade traz consigo entendimentos diversos. A publicidade pode ser vista como visibilidade, em oposição ao segredo, e também conforme a perspectiva kantiana da produção da política justa ou legítima (MAIA, 2008). Para Bohman (1996, p. 25), no que diz respeito à publicidade, não só a arena onde se dá a deliberação deve ser acessível àqueles potencialmente afetados pelas decisões, como também o tipo de argumento utilizado deve ser de conhecimento geral e disponível ao escrutínio público. Gutmann e Thompson (1996) afirmam, ainda, que apenas justificativas públicas podem assegurar o consentimento da sociedade, além de serem capazes de ampliar as perspectivas morais e políticas da deliberação.

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Tradução própria: “O ponto da prática deliberativa, portanto, não é só apenas lançar preferências pré- determinadas, sejam elas novas ou anteriormente excluídas, na composição de argumentos da negociação, mas sim introduzir uma voz qualitativamente diferente”.

de cotas de participação, seja incentivando ou facilitando a participação de grupos marginalizados, mantendo-se o caráter voluntário do recrutamento (FUNG, 2004, p. 178).

A estratégia mais comum entre as experiências deliberativas, porém, consiste na adoção de mecanismos de representação, como forma de lidar com a complexidade da sociedade e seus interesses. Conforme a perspectiva de Ligia Lüchmann (2007), o desenho das instituições participativas, principalmente dos conselhos, inclui “um tipo de participação política que ocorre através da representação das organizações da sociedade civil”. O artifício representativo posto em prática nos conselhos, contudo, deve ser questionado, como o faz Avritzer, ao afirmar que “a representação realizada pelos atores da sociedade civil é diferente daquela exercida na instituição representativa por excelência, isto é, no Parlamento. Assim, na maior parte das vezes, a representação da sociedade civil é um processo de superposição de representações sem autorização e/ou monopólio para o exercício da soberania” (AVRITZER, 2007, p. 444). Isso quer dizer que o próprio caráter e as formas de atuação das entidades da sociedade civil nestes conselhos devem ser problematizados de modo a contemplar uma feição genuinamente participativa em tais âmbitos.

Tão importante quanto a participação da esfera civil nos espaços deliberativos é a presença dos agentes estatais. A partir da aproximação do campo social do campo político, é possível a acomodação de interesses, a troca de argumentos a respeito das necessidades dos cidadãos e a viabilidade das políticas públicas recomendadas. O estado, uma vez considerado componente dessa arena, exerceria seu papel implementando políticas, sem ignorar as necessidades da sociedade e as colaborações que ela pode oferecer.

Finalmente, é importante pensar em termos de apostas, ou seja, as expectativas cultivadas por aqueles que se envolvem na deliberação, como propõe Fung (2004). O autor afirma que o engajamento dos participantes seria influenciado pelas questões em debate: assuntos polêmicos, que afetam o bem-estar ou as crenças dos participantes, por exemplo, influiriam na disposição e no interesse dos indivíduos em discutir, negociar e buscar resoluções mutuamente aceitáveis. Fung faz a contraposição entre deliberações quentes e deliberações frias, que estão associadas às apostas altas e baixas que os participantes fazem nas discussões. O autor afirma que

deliberações quentes com participantes que têm muito em jogo tornam possível uma melhor deliberação. Mais participantes serão atraídos para as deliberações quentes e elas serão mais sustentáveis ao longo do tempo. Os participantes investirão mais de sua energia psíquica e recursos no processo e assim o tornarão mais detalhado e criativo. É mais provável que os resultados da deliberação sejam mais vigorosamente apoiados e implementados (FUNG, 2004, p. 181).

É bastante razoável pensar que as expectativas dos diversos envolvidos nas deliberações são diferentes. Limitando-se a apenas um exemplo, os agentes do estado, ao estabelecer uma esfera participativa, expõem-se ao escrutínio público e podem ter o custo de um enfrentamento que seria evitado se não tomassem parte da deliberação. Por outro lado, o estabelecimento desses espaços confere altos índices de legitimidade às políticas – que dificilmente poderiam ser alcançados em decisões unilaterais. As apostas do estado na deliberação, logo, podem recair na administração das demandas dos cidadãos e angariação de apoio popular.

Já os cidadãos, no papel de concernidos pelas políticas, podem desempenhar um papel reivindicatório e propositivo, pois, ao discutir as políticas em um espaço que lhes garante igualdade de condições com outros membros da sociedade e, principalmente, com agentes estatais, podem nutrir a expectativa de influenciar positivamente as decisões governamentais.