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Reflexões sobre as profissões e o ensino: o contexto da tese

PARTE I – REVISÃO DA LITERATURA

4.4. Reflexões sobre as profissões e o ensino: o contexto da tese

Freidson (1986) escolhe o sistema de credenciação como o suporte institucional fundamental das profissões contemporâneas. A criação de um mercado de trabalho fica subordinada à “capacidade das ocupações para se tornarem grupos organizados de forma independente das empresas e das outras ocupações pertencentes à mesma classe ou estrato”. (Freidson, 1986, pp. 75-76). Para que o mercado de trabalho possa ser mantido, contudo, as profissões terão de definir regras de formação, recrutamento e posicionamento dos seus membros nesse mercado.

West (1996) argumenta que existe um denominador comum a todas as teorias identificadas no âmbito da Sociologia das Profissões: a ênfase atribuída ao conhecimento especializado, à explicação da profissionalização das vocações, aceite como uma característica distintiva das profissões e a principal fonte de poder profissional – o conhecimento especializado. Esse autor atribui um duplo significado ao conhecimento especializado: por um lado, é considerado como o elo de ligação de um conjunto de praticantes num grupo distinto; por outro, confere autoridade aos grupos profissionais na negociação de privilégios com o Estado. O conhecimento formal, ou seja, a instrução nas instituições de ensino “organizado em disciplinas, e objecto de um processo de racionalização” (Friedson, 1986, p. 225) torna–se “um instrumento de poder”. (Friedson, 1986. p. 9).

Siegrist (1990, p. 177) refere-se ao “processo pelo qual uma actividade ou uma ocupação se torna uma profissão” como um conjunto de desenvolvimentos analíticos que se podem suceder em simultâneo. Assim, este processo inclui: o processo pelo qual uma ocupação adquire o carácter de uma profissão acadêmica evidenciado por determinadas competências relevantes, sendo a prática profissional limitada àqueles que obtêm aprovação nos exames e alcançam o respectivo grau de ensino; o processo de separação e exclusão pelo qual a profissão monopoliza as oportunidades e as funções da ocupação por forma a adquirir ou garantir um elevado estatuto social e econômico; o processo de profissionalização inclui a representação coletiva de interesses e estratégias condicionadas mediante uma associação profissional que

define o âmbito da prática profissional, emana normas e valores aos seus membros e luta com outros grupos políticos e sociais pelo reconhecimento geral dos seus conceitos fundamentais.

MacDonald (1995) argumenta explicando que as profissões só começaram a existir quando a sociedade começou a se basear no conhecimento: a natureza do seu conhecimento, e a avaliação sociocultural do seu conhecimento, têm uma importância fundamental. A difusão de profissões é assim um fenômeno relativamente recente e característico das sociedades actuais, nas quais existem a proliferação do mercado de serviços; a generalização do acesso ao ensino e a consequente qualificação dos recursos humanos atestada por títulos; a dinâmica das sociedades e o progresso tecnológico abrem caminho à especialização e à propagação de especialidades, que cada subgrupo advoga ter como garantia de um mercado que lhe pertence, em consequência do saber focalizado nessa área do conhecimento.

As universidades ou outras instituições de formação de nível superior têm como principais recursos o conhecimento que ministram, do qual as profissões podem depender em maior ou menor proporção. Em alguns países, a criação de instituições de formação de nível superior está associada à emergência das próprias profissões, fazendo com que muitas vezes não exista distinção entre os práticos e os acadêmicos (Burrage et al., 1990). Verifica-se, com efeito, que o conhecimento exigido para se acessar à generalidade das profissões é administrado parcialmente pelos acadêmicos e pelos práticos, isto é, as duas componentes de formação se complementam, não obstante uma progressiva e clara propensão para a supremacia reconhecida ao conhecimento formal (Burrage et al., 1990).

Tendo em conta a proposta de Burrage et al. (1990), nesta tese, desenvolve-se, com base nos dados recolhidos, a relação da profissão com os profissionais, o Estado e o ensino. O Estado assumirá um papel decisivo, por ser simultaneamente o regulador, mas também o principal cliente e interessado na informação contábil.

A primeira pergunta de investigação se relaciona com o processo de transformação da ocupação contábil em profissão, sob a perspectiva da criação e evolução do sistema CFC/CRCs, principalmente no que se refere às questões de ensino e formação dos profissionais. Para tanto, assumir-se-á a definição de Burrage et al. (1990, p. 205), que definem profissão como uma ocupação: a) não manual exercida a tempo inteiro; b) cuja prática requer formação escolar, especializada e sistemática; c) cujo acesso requer aprovação em exames e a

consequente obtenção de diplomas; d) que procura um monopólio no mercado de trabalho de serviços especializados; e) que possui autorregulação ou autonomia, isto é, está liberta do controle de terceiros, tais como o Estado, os clientes, os juristas ou outros; f) cuja recompensa dos membros, simbólica e material, está associada não só à sua competência profissional e à ética no mercado de trabalho, mas também à crença de que os seus serviços especializados são de especial importância para a sociedade e o bem-estar público.

Na segunda pergunta de investigação, voltada para o contexto do exame de suficiência do CFC e seus fatores determinantes de aprovação, mostra-se como a profissão, na busca de legitimidade, instituiu o exame profissional num contexto em que as instituições do ensino superior e os cursos de Ciências Contábeis proliferam no Brasil, em que as notas obtidas pelos alunos no ENADE são baixas, revelando deficiências de base, e, ainda, num contexto onde não se verifica uma adequada aposta na formação pós-graduada dos professores do ensino superior, obrigando a profissão também a atuar neste campo.

De acordo com Paolillo e Estes (1982), a profissão contábil só poderá continuar a servir a sua função social se atrair jovens competentes e motivados. Para isso, o esforço de recrutamento e a seleção dos melhores candidatos são requisitos importantes e o exame constitui mais um crivo que pode proporcionar à sociedade os profissionais competentes. Por outro lado, o exame pode ser usado como forma de incrementar a qualidade do ensino em Contabilidade. Além disso, deve-se pensar sempre em desenvolver e adaptar a estrutura curricular do curso, que permite o desenvolvimento dos futuros profissionais. À medida que vão existindo alterações no contexto, as grades curriculares devem ser adaptadas. Muito se evoluiu em termos de desenvolvimento curricular dos cursos de Contabilidade, como se pode observar no Quadro 11. Repare-se o aparecimento da Teoria da Contabilidade na década de 1990 e veja-se o aparecimento dos conhecimentos em sistemas de informação na última grade curricular.

Currículo do Curso Comercial

(1902)

1º Ano: Língua portuguesa; Francês, Inglês ou Alemão; Aritmética; Álgebra; Geometria; Contabilidade.

2º Ano: Contabilidade comercial; Finanças; Estenografia; Desenho.

3º Ano: Geografia econômica e comercial; Regras gerais de Direito; Legislação comercial; Economia política e finanças.

Curso Superior de Contabilidad

e (1948/1951)

1º Ano: Análise matemática; Estatística geral e aplicada; Contabilidade geral; Ciência da Administração; Economia política.

2º Ano: Matemática financeira; Ciência das finanças; Estatística matemática e demográfica; Organização e Contabilidade industrial e agrícola; Instituições de direito público.

3º Ano: Matemática atuarial; Organização e Contabilidade Bancária; Finanças das empresas; Técnica comercial; Instituições de direito civil e comercial.

4º Ano: Organização e Contabilidade de seguro; Contabilidade pública; Revisões e perícia contábil; Instituições de direito social; Legislação tributária e fiscal; Prática de processo civil e comercial. Curso de Ciências Contábeis (Resolução de 08/02/1963)

Ciclo de Formação Básica: Matemática; Estatística; Direito; Economia.

Ciclo de Formação Profissional: Contabilidade geral; Contabilidade comercial; Contabilidade de custos; Auditoria; Análise de balanços; Técnica comercial; Administração; Direito tributário.

Curso de Ciências Contábeis (Resolução

nº 3/92)

Categoria I (Formação geral): Língua portuguesa; Noções de direito; Noções de ciências sociais; Ética Geral e profissional.

Categoria II (Profissionais e Específicas): Administração geral; Economia; Direito aplicado; Matemática; Estatística; Contabilidade geral; Teoria da Contabilidade; Análise das demonstrações contábeis; Auditoria; Perícia contábil; Administração financeira e orçamento empresarial; Contabilidade Pùblica; Contabilidade de custos e análise de custos.

Categoria III (Atividades complementares): Atividades agrícolas e pecuárias; Atividades de seguro; Atividade extrativa; Sociedades cooperativas; Sociedades de previdência privada; Atividade imobiliária; Entidades sindicais; Sociedades e cotas de participação; e outras.

Curso de Ciências Contábeis (Nova Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei nº 9394/96)

Conteúdos de Administração: Teoria geral da administração; Estratégia empresarial; Comportamento organizacional.

Conteúdos de Economia: Teoria da firma; Cenários econômicos e economia internacional; Economia das empresas.

Conteúdos de Direito: Legislação social e trabalhista; Direito tributário; Direito comercial e societário.

Conteúdos de Métodos Quantitativos: Medidas de tendência central e de dispersão; Análise de regressão e correlação; Análise de série temporal; Cálculo integral e diferencial.

Conteúdos de Teoria da Contabilidade: História do pensamento contábil; Ativo e passivo e sua mensuração; Receitas, despesas, perdas e ganhos e suas mensurações; Teorias do patrimônio líquido; Princípios fundamentais de Contabilidade e harmonização internacional.

Conteúdos de Contabilidade Financeira: Princípios, normas e procedimentos de Contabilidade financeira; Elaboração e evidenciação das demonstrações contábeis.

Conteúdos de Contabilidade Tributária: Contabilidade de tributos federais, estaduais e municipais; Planejamento tributário.

Conteúdos de Contabilidade Gerencial: Métodos de custeio; Sistemas de acumulação de custos; Análise de custos; Descentralização (preço de transferência e centro de resultado).

Conteúdos de Auditoria: Controles internos; Princípios, normas e procedimentos de auditoria; Planejamento de auditoria; Papéis de trabalho.

Conteúdos de Controladoria: Sistemas de informações; Processo de planejamento, execução e controle; Avaliação de desempenho; Responsabilidade de prestar contas da gestão perante a sociedade (accountability).

Quadro 11 – Evolução curricular dos cursos de Ciências Contábeis. Fonte: Adaptado de Araújo (2002, pp. 59-76)

Nos EUA, muitas IES usam as classificações obtidas nos exames como uma medida de sucesso, para atrair futuros alunos (Taylor & Rudnick, 2005). Algumas faculdades usam o desempenho no exame como medida da qualidade de um curso (Ashbaugh & Thompson, 1993). Dados expressos por Boone et al. (2006), revelam, no entanto, que apenas 17,5% dos candidatos que se apresentaram pela primeira vez passam no exame completo e apenas 28,8% destes candidatos passaram em pelo menos uma parte do exame CPA administrado de 1998 a 2003. A percentagem da totalidade dos candidatos (ou seja, os que se apresentam pela primeira vez e os restantes) subiu para 30,8% no mesmo período. Neste sentido, o objetivo que se traz na segunda etapa de investigação desta tese se foca nestes aspectos dos determinantes da aprovação no exame de acesso à profissão contábil, ou seja, quais são as variáveis ambientais (econômicas e institucionais) e as variáveis individuais (relacionadas com os alunos) que levam a que uns candidatos passem e outros sejam reprovados no exame de suficiência.

Efetuada a revisão da literatura relativa aos tópicos que são abordados na parte empírica e que se relaciona com os objetivos e perguntas de pesquisa, na seção seguinte são apontadas as opções metodológicas utilizadas nesta tese.