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Regime jurídico dos tratados na Constituição Federal de 1988

CAPÍTULO 2 – OS TRATADOS E SUA RECEPÇÃO PELO DIREITO

2.4 Regime jurídico dos tratados na Constituição Federal de 1988

Após análise, ainda que sintética, das correntes doutrinárias que buscam explicar o ingresso, bem como eventual incompatibilidade entre normas internacionais e o direito interno, o presente tópico tem por finalidade explicitar o tratamento dispensado pela Carta de 1988 à matéria.

Pois bem, excetuando a Constituição Imperial de 1824, todas as demais consagraram a participação do Poder Legislativo no procedimento de incorporação _____________

49 REZEK, 2005, p. 5.

50 DALLARI, Pedro, 2003, p. 13.

51 BOSON, Gerson de Britto Mello. Direito internacional público. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey,

de tratados ao direito brasileiro. Entretanto, na prática, sempre existiram dúvidas acerca dos limites dessa atuação, ou seja, se haveria obrigatoriedade ou não de se sujeitar todo e qualquer tipo de tratado ao crivo do Poder Legislativo, gerando, ao longo de várias décadas, infinitas e acirradas discussões sobre a matéria. Nesse aspecto, Mazzuoli destaca que a divergência mais acentuada ocorreu entre Hildebrando Accioly, que defendia a possibilidade de se concluir acordos internacionais sem a aprovação do Congresso Nacional, e Haroldo Valadão, cujo entendimento era no sentido de que todo e qualquer tratado, mesmo os simples ajustes, deveriam passar pelo crivo do Poder Legislativo.52

Certo é que na história republicana do País nunca houve consonância de entendimentos sobre o ingresso de tratados no direito interno. Quando se acenava com a possibilidade de alguma uniformização na parte teórica, a prática do Itamaraty revelava a distinção de tratamentos sobre o assunto, a partir da elaboração de conceitos diferenciados para os “diversos tipos” de tratados.

A Constituição Federal de 1988, ao invés de resolver definitivamente a questão, acabou por trazer maior complexidade ao tema, pois, como ensina Cachapuz de Medeiros, no “[...] encerramento dos trabalhos, a Comissão de Redação não foi fiel à vontade do plenário e provocou o surgimento de dois dispositivos antinômicos: os artigos 49, I, e 84, VIII, da Constituição”.53

Com efeito, após intensos debates políticos e jurídicos, foi apresentada pela Comissão de Redação da Assembléia Nacional Constituinte, em 2 de setembro de 198854, a redação “final” dos dispositivos pertinentes aos tratados, da seguinte

forma:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

I – resolver definitivamente sobre tratados e acordos internacionais ou atos que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional; [...]

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...]

VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;

_____________

52 MAZZUOLI, 2001, p. 160.

53 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. O poder de celebrar tratados. Porto Alegre: Sergio

Antonio Fabris Editor, 1995. p. 339.

Em seguida, foi iniciado o prazo para propostas exclusivamente de redação e, em 20 de setembro de 1988, a Comissão de Redação, a quem competia apenas cuidar dos aspectos formais, da técnica legislativa e da correção de linguagem, exorbitou de suas funções, apresentando o Projeto de Constituição para deliberação final da Assembléia Constituinte com substancial alteração no conteúdo do art. 49, inciso I.55

O texto definitivo e que vigora até a presente data é o seguinte: Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional; [...]

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...]

VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;

Ferreira Filho, interpretando o dispositivo acima transcrito, afirma que a expressão resolver definitivamente significa que após a manifestação do Congresso Nacional, não caberia mais nenhuma intervenção do Poder Executivo.56

Mazzuoli, ao denunciar o equívoco do ilustre constitucionalista, afirma o seguinte:

Ora, ao afirmar que depois da manifestação do Congresso não cabe mais qualquer intervenção do Executivo, significa dizer que o tratado assinado jamais será ratificado e promulgado. Se assim fosse, não se teria a formação de negócio jurídico perfeito. Sem a ratificação, que é ato privativo do Chefe do Executivo, o tratado nunca vigorará, quer interna, quer externamente. Sem a confirmação às outras partes contratantes do propósito do País em aderir a todo o pactuado, não existe tratado válido a obrigar a nação nos cenários nacional e internacional. De sorte que, a última palavra, em matéria de celebração de tratados, é do presidente da República e não do Congresso Nacional.57

A antinomia inicialmente referida se explica da seguinte forma: enquanto o artigo 84, VIII, da CF/88 afirma, sem distinção, que os tratados celebrados pelo Presidente da República se sujeitarão ao crivo do Poder Legislativo, o inciso I do art. 49 da Carta dispõe que compete ao Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou _____________

55 MEDEIROS, 1995, p. 380 e 381.

56 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2. ed.

São Paulo: Saraiva, 1990. v. 1, p. 296-297.

compromissos gravosos ao patrimônio nacional. Portanto, a interpretação literal do inciso I do art. 49 não deixa dúvidas: somente os tratados que acarretarem encargos ou compromissos gravosos é que se sujeitariam à aprovação do Congresso Nacional.

Portanto, enquanto um dispositivo constitucional afirma que todos os tratados deveriam ser aprovados pelo Poder Legislativo, outro dispõe que apenas uma espécie do gênero tratado é que deveria se sujeitar à referida aprovação congressual.

Por conta das várias interpretações possíveis, a doutrina especializada continua a se dividir, uma parte (normalmente formada por constitucionalistas) entendendo que todo e qualquer tratado deverá se sujeitar ao crivo do Poder Legislativo, enquanto que a outra corrente, mais familiarizada com a prática administrativa, entende que apenas os tratados que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional se sujeitariam a tal aprovação.

Como a antinomia antes referenciada ocorre entre normas constitucionais, pelo princípio da unidade da constituição, não há como concluir pela prevalência de uma em detrimento da outra, haja vista que são regras de igual hierarquia, razão pela qual essas aparentes contradições devem ser superadas através das técnicas de interpretação da Constituição.

Em sede de interpretação constitucional, o intérprete deve ter em mente, em primeiro lugar, o princípio da unidade da Constituição. Referido princípio, segundo Sarmento, “[...] demanda o esforço de buscar a conciliação entre normas constitucionais aparentemente conflitantes, evitando as antinomias e colisões. [...] A Constituição não representa um aglomerado de normas isoladas, mas um sistema orgânico, no qual cada parte tem de ser compreendida à luz das demais”.58

Cachapuz de Medeiros afirma que para a solução da incompatibilidade entre os citados dispositivos, não pode ser utilizado o critério cronológico (ambos foram emitidos ao mesmo tempo); nem o critério hierárquico (ambos possuem a mesma _____________

58 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro:

hierarquia); nem o critério da especialidade (não se trata de conflito entre uma lei geral e outra especial, quanto esta anula a primeira).59

Concluindo o seu raciocínio, o professor Cachapuz de Medeiros destaca que: Do ponto de vista lógico-sistemático, há que considerar que os dispositivos em questão fazem parte do mesmo título da Constituição (Da Organização dos Poderes) e são como que as duas faces de uma mesma moeda: o artigo 84, VIII, confere ao Presidente da República o poder de celebrar tratados, convenções e atos internacionais, mas especifica que estão todos sujeitos a referendo do Congresso Nacional; o art. 49, I, destaca que os tratados, acordos ou atos internacionais, assinados por quaisquer autoridades do Governo brasileiro, que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional, precisam ser aprovados pelo Congresso.60

Em verdade, na interpretação de normas constitucionais não se deve utilizar os mesmos critérios ou métodos comumente observados na interpretação de normas infraconstitucionais, tendo em vista a natureza jurídica e também política das normas que integram o texto constitucional.

Nesse sentido a lição de Maximiliano, ao destacar que

[...] a técnica de interpretação muda, desde que se passa das disposições ordinárias para as constitucionais, de alcance menos amplo, por sua própria natureza e em virtude do objetivo colimado, redigida de modo sintético, em termos gerais.61

O método da interpretação literal ou gramatical, não obstante caracterizar-se como o primeiro critério a ser utilizado, por certo que no presente caso mostra-se insuficiente para dirimir a aparente contrariedade entre os dispositivos. Aliás, é a própria interpretação literal que denuncia a aparente incompatibilidade.

Também a interpretação sistemática, que segundo Friede, “[...] consiste no propósito de resolver eventuais conflitos de normas jurídicas, examinando-as sob a ótica de sua localização junto ao Direito que tutela, partindo da própria organização do texto constitucional ínsito na codificação da própria Constituição [...],”62 revela-se insuficiente para afastar a incompatibilidade alhures referenciada.

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59 MEDEIROS, 1995, p. 396. 60 MEDEIROS, 1995, p. 397.

61 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense,

1979. p. 1.

62 FRIEDE, Reis. Curso analítico de direito constitucional e teoria geral do estado. Rio de

Mais eficaz para afastar a aparente antinomia entre o art. 49, I, e o art. 84, VIII, ambos da Constituição Federal de 1988, afigura-se o método da interpretação lógica. A propósito, esclarece Bonavides que a interpretação lógica “[...] é aquela que, sobre examinar a lei em conexidade com as demais leis, investiga-lhe também as condições e os fundamentos de sua origem e elaboração, de modo a determinar a ratio ou mens do legislador. Busca portanto reconstruir o pensamento ou intenção de quem legislou, de modo a alcançar depois a precisa vontade da lei”.63

Nesse aspecto, ressalte-se que após os debates na Assembléia Nacional Constituinte, a intenção dos congressistas, como já visto, era a de submeter apenas os tratados (propriamente ditos) ao crivo do Poder Legislativo, enquanto que para os acordos executivos que não acarretassem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional não haveria tal necessidade. Essa era a intenção do legislador constituinte.

Com base nesse raciocínio, a razão parece estar com a corrente doutrinária – ligada à prática do Itamaraty – que dispensa a aprovação do Poder Legislativo nos chamados acordos de forma simplificada, que recebem tratamento diferenciado, haja vista a não participação do Poder Legislativo no procedimento de incorporação, razão pela qual referidos acordos não são promulgados através de decreto presidencial, mas apenas publicados no Diário Oficial da União.